Nascido da revolução

O realizador Ossama Mohammed partilha a autoria do filme “Água Prateada” com Simav, a jovem curda que lhe pediu ajuda para filmar a cidade cercada de Homs. Simav é uma entre os “1001 sírios” que fazem este filme. Ossama diz que são todos cineastas.

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No princípio, há um fio de água, e um bebé a nascer. No fim, Omar, o miúdo pequeno que podia ser aquele bebé e que agora caminha pelas ruas destruídas da cidade de Homs, a mais massacrada de todas as cidades da Síria, e a neve, manchada de sangue. Pelo meio, “1001 imagens, gravadas por 1001 sírios e sírias” e pela jovem professora curda Wiam Simav Bedixan. “E por mim”, diz-nos, no ecrã, o realizador, o sírio Ossama Mohammed.

Água Prateada – Um Auto-retrato da Síria é o resultado do trabalho de um guardador de imagens. Foi esse o papel que o cineasta encontrou para si depois do início da revolução do seu país, em Março de 2011. “Pensei muito no que devia fazer. Sou realizador, em princípio devia estar na rua a filmar. Mas todos os sírios tinham telemóveis e gravaram o que se passava. Percebi que esta era a revolução dos cineastas”, diz, numa conversa por Skype a partir de Paris.
No início, recorda, quem saía à rua “estava cheio de esperanças novas, do cheiro da beleza que a vida tem quando se começa a descobrir a vida verdadeira, sem medo”. “Vamos continuar a viver debaixo do despotismo ou vamos mudar as nossas vidas?”, era a pergunta que crescia entre os sírios até só poder ter uma resposta. O regime respondeu a matar e as manifestações não pararam de crescer. A primeira vítima caiu na cidade de Deraa, no Sul, e outras cidades saíram à rua em solidariedade com Deraa.

O Governo de Bashar al-Assad, “anunciou imediatamente a sua visão da história, tornou as vítimas terroristas, enquanto matava civis que se limitavam a experimentar viver, realmente, pela primeira vez”. “Era como matar o ser humano duas vezes, primeiro tirava-lhe a vida, depois a sua moralidade.”
Foi para contrariar essa narrativa e homenagear as vítimas que Ossama começou a guardar todas as imagens de todos os manifestantes que podia. “A grande Síria, a Síria multicultural, estava na rua. E toda a gente estava a filmar. Tornou-se numa tragédia, mas levanta-nos grandes questões sobre a vida e sobre o cinema. Historicamente, para mim, a revolução marca o nascimento de um novo cinema, o nascimento de uma nova Síria.”
Há muito horror neste filme, há tortura, há filas de corpos mortos na rua e às vezes esses corpos são de crianças. Há planos que terminam com a morte de quem os começou a filmar. Um jovem diz “não sei filmar, é a primeira vez que o faço”, e depois morre. Antes, afirma Ossama, “foi livre”.

Este filme talvez não existisse se o cineasta não tivesse aceite um convite para ir a Cannes, em 2011. No início de Maio desse ano, foi um dos signatários de uma declaração de realizadores onde se denunciava a repressão do regime. “Sírios pacíficos estão a ser mortos por pedirem direitos e liberdades básicas”, dizia-se no texto, assinado por Jean-Luc Gogard, Costa Gravas, Catherine Deneuve ou Juliette Binoche.
Na Síria, para além de Ossama, assinou Mohammad Malas e outros que, como eles, tinham trabalhado com o realizador Omar Amiralay em obras sobre as consequências políticas e sociais do regime do Partido Baas, no poder desde um golpe liderado por Hafez al-Assad, pai de Bashar, em 1970. Amiralay morreu em Fevereiro, um mês antes da revolução. “Vivo num país que marcha a bom ritmo e pelos seus próprios pés para o seu desaparecimento, traído pelos seus líderes, abandonado pelos seus cérebros e pelos seus intelectuais”, dissera, pouco antes.

Afinal, a Síria respondia e recusava desaparecer. Foi para dizer isso que Ossama aceitou ir a Cannes e deixou a Síria, a 9 de Maio de 2011. Foi lá que soube que tinha o seu nome numa “lista negra” e que ouviu a um amigo “não voltes, não sejas louco”. No início, Ossama não conseguia aceitar que não voltaria. “Nem sequer disse à minha mulher. Ela perguntava, ‘então, quando é que voltamos’, e eu ia inventando desculpas. Uma noite, estava a conversar com um amigo na sala e pensei que ela estivesse a dormir. Perguntava a esse meu amigo se ele achava que o meu nome continuaria na tal lista e, de repente, percebi que ela estava atrás de mim a ouvir.”
Os tempos que se seguiram “foram os piores” da vida de Ossama. “Eu, que sempre me opusera ao regime, que me orgulhava de nunca ter feito nada que comprometesse os meus princípios, estava longe da Síria no momento em que a Síria mais precisava de mim”, diz. Foi como se deixasse de merecer o seu nome – Ossama significa leão em árabe.

Um momento particularmente duro aconteceu ao ler as palavras de uma amiga, “uma grande síria, que continua em Damasco”. “Por que é que não estão aqui? Não nos deixem sozinhos”, escreveu no Facebook aos amigos no exílio. “Essa foi a noite pior”, diz Ossama. Logo depois, surgiu-lhe, via Facebook, a curda Wiam Simav. “Apareceu no momento em que eu precisava que ela aparecesse. Nós precisámos um do outro para criar uma nova vida. E eu percebi que me podia salvar se ajudasse a história do que estava a acontecer”
Simav vivia em Homs, a cidade sujeita a um cerco que começou em 2011 e só acabou totalmente este ano. Foi chamada “capital da revolução” e o regime fez o que pôde para a vergar, tomando jornalistas como alvo, bombardeamento edifícios de habitação, matando milhares de civis. Hoje, Homs é pouco mais do que um monte de escombros.

Foi nesses escombros que Simav decidiu ficar, quando a família fugiu. Queria começar a filmar e pediu ajuda a Ossama – “O que filmarias se estivesses aqui?”, perguntou-lhe. O cineasta decidiu que ela não precisava da sua ajuda, só dos seus sentidos. “A primeira frase da primeira mensagem que recebi dela chegou para perceber que é uma grande escritora, que tinha uma grande sensibilidade artística. Recusei falar com ela como professor.”

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Simav comprou uma câmara e começou a filmar. Ossama e a mulher, a cantora lírica Noma Omran que dá voz à banda sonora do filme, começaram a passar cada noite à espera de mensagens de Simav. “Quando o filme ficou terminado, a Simav perguntou-me por que é que o nome dela aparecia como realizadora. Para mim era claro, ela é uma realizadora. É uma das 1001 pessoas que fizeram este filme, mas surge em primeiro plano. Não me seguiu e alcançou a sua independência, é realmente co-realizadora.”
É Simav que filma Omar, o pequeno de Homs que a avisa para a presença de atiradores furtivos enquanto passeiam pela cidade, a criança que apanha flores para ir deixar à campa do pai e que colhe frutos para Simav. É a Omar que Ossama dedica o filme e é Simav (água prateada, em curdo) que lhe dá o nome.

Ossama e Simav conheceram-se pessoalmente em Cannes, este ano, onde Água Prateada passou fora de competição. O cerco a Homs acabou mesmo a tempo. No festival, um membro do júri confidenciou ao jornal Le Monde que tinha visto o filme todo de olhos fechados “para que nenhuma das imagens lhe ficasse para sempre gravada na memória”.

Mais perturbador é encontrar beleza nesses planos de horror. “Muitas pessoas dizem-me isso, que vêem o filme como um poema. Eu penso que muito vem da música da Noma, que a escreveu na sala de montagem. Mas a beleza também vem do sonho de todas aquelas pessoas. Cada plano não é só o que vemos, é também quem o filma”, diz Ossama. “Eu não decidi que o filme ia ser poético, os sírios é que são poéticos, a Síria tornou-se na sociedade dos poetas mortos.”

O país de Ossama e Simav é um dos berços da civilização. Tem as cidades há mais tempo habitadas no mundo, Alepo e Damasco. Foi em Raqqa, uma cidade que hoje faz parte da Síria, que o califa abássida Harun al-Rashid construiu o seu palácio no fim do século XVIII. Foi a corte de Rashid que inspirou as Mil e uma Noites. É também por isso que Ossama se diz optimista. “Neste filme, há um plano em que pessoas arriscam a vida para resgatarem um corpo da rua. Não há nada mais bonito do que isso. Eles estão a tentar salvar a dignidade daquele corpo. Pessoas que fazem isso têm de ter direito a um futuro.”

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