Com um novo caso de ébola em Nova Iorque, aumenta o surto de ansiedade nos EUA
A confirmação do primeiro caso de ébola em Nova Iorque, na noite de quinta-feira, deixou grande parte da população ainda mais apreensiva. Na capital, Washington D. C., a comunidade liberiana é uma das principais vítimas dos mal-entendidos sobre a doença.
Consultora de imagem, perdida de amores pela moda e coleccionadora de Barbies, Vannette Tolbert é neta do antigo Presidente da Libéria William Tolbert, que liderou o país entre 1971 e 1980, ano em que foi assassinado no palácio presidencial num golpe de Estado liderado por Samuel Doe. “Tenho a certeza de que a actual situação sanitária e a falta de protocolos na Libéria iria deixá-lo muito triste. A Libéria afastou-se muito da visão que ele tinha para o país”, elogia a neta.
Há três meses, a família de Vannette Tolbert voltou a ocupar as páginas dos jornais, quando um dos seus primos, Nathaniel Dennis, de 24 anos, engrossou a lista das vítimas do ébola durante uma visita à Libéria. Colocado em isolamento, Dennis acabou por morrer na Libéria, depois de o Gana lhe ter fechado as portas.
“Tem havido casos de injustiças contra liberianos nos Estados Unidos como resultado directo do surto de ébola”, diz ao PÚBLICO Vannette Tolbert. “É fácil perguntar por que é que continuamos a deixar entrar liberianos nos aviões. É uma boa pergunta, mas não é uma pergunta justa”, afirma, dando como exemplo o caso do seu primo.
“O Nathaniel ficou preso na Libéria, em coma durante muitos dias antes de morrer devido a um tratamento médico desadequado. Para mim, isto é uma injustiça. O facto de os governos dos EUA e da Libéria não terem conseguido trabalhar em conjunto para levarem o Nathaniel da Libéria para um país com melhores condições é ridículo e ambos os governos deveriam sentir-se envergonhados”, acusa.
Por estes dias, os liberianos sofrem de duas formas – no seu país enfrentam a violência do surto de ébola; nos Estados Unidos são o alvo preferencial do medo que se tem espalhado muito mais depressa do que o vírus.
“A ignorânia em relação ao ébola levou à alienação dos liberianos na América e em todo o mundo. Ouço piadas sobre o ébola na rádio. Vejo imagens nas redes sociais com piadas sobre o vírus. Os apresentadores de talk shows falam sobre isto num tom humorístico. É decepcionante que em 2014 haja ainda pessoas tão ignorantes que não conseguem perceber a real dimensão deste problema”, lamenta Vannette Tolbert.
Apesar de criticar a desconfiança apontada aos liberianos, Tolbert considera que as pessoas têm razão para sentirem medo. “Acho que a enorme cobertura por parte do meios de comunicação social alimentou a histeria nacional. Os americanos sabem muito pouco sobre a Libéria, para além de ser um país devastado pela guerra. Como foi um liberiano que trouxe o vírus do ébola para os Estados Unidos, é normal que tenham medo.”
Tolbert refere-se a Thomas Eric Duncan, o liberiano que chegou aos Estados Unidos no dia 20 de Setembro e que viria a tornar-se o primeiro caso de ébola confirmado no país. Antes de ter sido diagnosticado, Duncan, que viria a morrer no dia 8 de Outubro, esteve em contacto com mais de 40 pessoas numa altura em que já tinha sintomas da doença, mas nenhuma delas contraiu o vírus. Duas das enfermeiras que trataram do cidadão liberiano adoeceram, mas uma delas já está livre de perigo e a outra está a recuperar bem.
É seguro jogar bowling?
Na noite de quinta-feira, o estado de ansiedade nos Estados Unidos subiu mais um degrau, depois de um médico norte-americano que passou um mês na Guiné-Conacri a tratar pessoas infectadas com o vírus do ébola ter sido colocado em isolamento no Hospital Bellevue, em Nova Iorque, tornando-se o primeiro caso confirmado da doença na cidade mais populosa do país.
Craig Spencer, da organização Médicos sem Fronteiras, chegou aos Estados Unidos no dia 17 de Outubro, depois de uma escala em Bruxelas, na Bélgica. Não apresentava quaisquer sintomas quando saiu da Libéria e quando aterrou no aeroporto JFK, em Nova Iorque. Apesar de ter saído de casa várias vezes – foi correr, jogou bowling, andou no metro e jantou num restaurante com amigos –, o médico controlava a sua temperatura duas vezes por dia e contactou as autoridades sanitárias assim que teve febre.
Numa conferência de imprensa na noite de quinta-feira, o mayor da cidade de Nova Iorque, Bill de Blasio, e o governador do estado, Andrew Cuomo, dedicaram metade do tempo das suas intervenções a tentarem impedir que o pânico se instale definitivamente no país. Os dois responsáveis repetiram o que os especialistas garantem: o ébola só é transmissível por contacto directo com líquidos orgânicos de doentes que apresentam sintomas como febre; por isso, os cidadãos de Nova Iorque podem continuar a andar de metro, a jogar bowling e a jantar fora sem receio de serem infectados, garantiram.
Testemunha da ignorância
De regresso a Washington D. C., Marlene Cooper Vasilic, nascida em Monróvia, capital da Libéria, apresenta-se ao PÚBLICO como uma testemunha da “ignorância baseada em mal-entendidos sobre a doença”.
Como liberiana e vice-presidente do think tank Center for American Progress, Vasilic tem ouvido “muitas histórias perturbadoras”, e foi mesmo o centro das atenções nalgumas delas. “Alguns estranhos e conhecidos chegaram a afastar-se fisicamente de mim quando descobriram que eu sou liberiana, apesar de não ir à Libéria há mais de um ano.”
“Os media e até membros do Congresso têm transmitido tanta informação irresponsável e incorrecta sobre a doença que muitas pessoas nos Estados Unidos têm entrado em pânico. Sei de muitos casos provocados por mal-entendidos e ignorância sobre África em geral. Como o caso de dois alunos que foram obrigados a ficar em casa em quarentena porque são do Ruanda, apesar de o Ruanda ficar a quase 5000 quilómetros do surto na África Ocidental.”
O problema afecta em particular a comunidade liberiana, porque é sentido como um sofrimento que se soma à fuga de um país devastado por uma guerra civil na década de 1990. “Eles já passaram por horrores inimagináveis para muitos americanos, e agora a doença está a estigmatizá-los ainda mais”, lamenta Vasilic.
Tanto Vannette Tolbert como Marlene Cooper Vasilic concordam que o problema é grave, e que muito tem de ser feito para combater duas correntes de opinião opostas – por um lado, os que desvalorizam a gravidade do surto de ébola na África Ocidental; por outro, os que pretendem combatê-lo com o isolamento das populações mais afectadas.
“A proibição das viagens apenas iria exacerbar ainda mais a situação. Seria ainda mais difícil receber voluntários e profissionais de saúde de organizações internacionais na Libéria, iria desestabilizar ainda mais o país e provocar graves problemas económicos”, argumenta a vice-presidente do Center for American Progress.
Conversa de taxista
Rachid Oubenali, taxista habituado a transportar passageiros entre o aeroporto de Dulles e Washington D. C., fala também com desenvoltura sobre o medo que as notícias levaram para os Estados Unidos. A chuva e as manobras arriscadas de outros automobilistas são coisa pouca para quem gosta de falar com os olhos colados ao retrovisor, num diálogo animado com o passageiro que transporta no banco de trás e que chegara um dia antes à capital federal dos Estados Unidos, vindo de Lisboa. Depois de quebrado o gelo, o passageiro decide testar os limites da paciência do simpático taxista: “Cheguei num voo que partiu de Bruxelas. Vim com um casal de liberianos sentado mesmo à minha frente.” Oubenali mantém o sorriso e passa com distinção no teste da ansiedade, mas a resposta não chega propriamente embrulhada em conhecimento científico. “Fico um pouco preocupado quando transporto pessoas de pele mais escura, percebe?”
Nascido em Marrocos há 52 anos e a viver nos Estados Unidos há mais de duas décadas, Rachid Oubenali é um bom exemplo de como se pode estar tão longe do caos onde o ébola mata milhares e tão perto do medo que verga milhões.
“Na semana passada transportei um cidadão da Libéria que veio para uma reunião do Banco Mundial e admito que fiquei muito nervoso. Quando ele saiu, fiquei apreensivo. Uma pessoa não sabe bem o que fazer. Os media estão sempre a falar do ébola e é isso que provoca o pânico.”
Para agravar o cenário, Oubenali vive com os seus dois filhos adolescentes em Bethesda, já no estado do Maryland, mas a apenas uma dezena de quilómetros das ruas que se habituou a cruzar de táxi ao longo dos últimos 23 anos. Bethesda, onde os filhos de Rachid Oubenali frequentam a escola, é também a residência temporária da enfermeira Nina Pham, a primeira pessoa a ser infectada com o vírus do ébola nos Estados Unidos.
Depois de ter adoecido ao tratar o liberiano Thomas Eric Duncan, Nina Pham recupera agora no National Institutes of Health, uma agência do Departamento de Saúde do Governo dos EUA localizada precisamente em Bethesda.
“Ficámos todos assustados quando soubemos que ela vinha para cá. Os meus filhos disseram que tinha chegado a ‘senhora do ébola', é assim que as pessoas lhe chamam.”
O ébola na campanha
O medo espalha-se também ao ritmo da campanha para as eleições intercalares de 4 de Novembro, para as duas câmaras do Congresso – o Senado e a Câmara dos Representantes. Quando se fala em ébola, o principal debate faz-se entre os que querem proibir a entrada nos EUA dos cidadãos de países como a Libéria, a Serra Leoa ou a Guiné-Conacri, e os que acham que essa medida só iria agravar o problema.
É uma luta desigual, difícil de travar para quem quer discutir o assunto de forma calma e ponderada: de um lado, o medo, os debates nas televisões com títulos como “Ébola: o ISIS dos agentes biológicos?” e o esperado aproveitamento político em época de eleições; do outro, um grupo de especialistas obrigados a perder mais tempo a rebater teorias da conspiração do que a informar um país inteiro com argumentos científicos transmitidos de forma inteligível.
A meio da semana, um grupo de médicos eleitos para a Câmara dos Representantes pelo Partido Republicano enviou uma carta ao Presidente Barack Obama a pedir-lhe que feche as fronteiras dos EUA “a indivíduos que sejam cidadãos ou que tenham viajado para os países afectados na África Ocidental”.
A pressão sobre a Casa Branca para adoptar medidas mais radicais cresce de dia para dia, e os críticos da forma como Washington tem lidado com o problema defendem que o melhor é cortar o mal pela raiz. O problema é que ninguém se entende sobre até onde chega essa raiz.
“Já tivemos de reforçar as nossas medidas preventivas porque os protocolos iniciais foram insuficientes para impedir que a doença se espalhasse. Para tranquilizar a crescente ansiedade pública sobre uma potencial crise de saúde – e para assegurar que estaremos bem preparados se o pior acontecer –, apelamos à sua Administração que tome medidas pró-activas para educar, equipar e treinar as autoridades de saúde pública para conter esta doença de forma eficaz”, lê-se na carta enviada ao Presidente Barack Obama, assinada por 16 membros da Câmara dos Representantes eleitos pelo Partido Republicano.
O difícil equilíbrio entre o que deve ser feito por razões médicas e o que deve ser feito para refrear o medo e a ansiedade tem levado a Casa Branca a rever o seu protocolo para lidar com a entrada de pessoas provenientes da Libéria, da Serra Leoa e da Guiné, resistindo até agora aos apelos para o fecho das fronteiras.
Desde quarta-feira, todas as pessoas que partem daqueles três países só podem desembarcar em cinco aeroportos norte-americanos: no JFK, em Nova Iorque; em Newark; em Dulles, na Virginia; em Atlanta; e em Chicago. Para além dos testes a que são submetidos nos seus países de origem, passam agora também por um segundo controlo à chegada e são acompanhados pelas autoridades até ao final do período de 21 dias desde a sua potencial infecção.
O casal de liberianos que viajou no voo de Bruxelas para o aeroporto de Dulles, na terça-feira, passou pelo controlo de fronteira sem problemas. O papel que todos os passageiros têm de preencher ainda a bordo do avião indicava claramente o seu país de origem, mas nada à chegada ao aeroporto indicava que o pânico tinha tomado de assalto uma parte do país. O aeroporto de Dulles era uma espécie de limbo, a 7500 quilómetros da verdadeira tragédia e a poucos metros da apreensão do taxista Rachid Oubenali. Alguns ecrãs mostravam informações sobre os sintomas do ébola, mas misturadas com avisos semelhantes sobre a síndrome respiratória do Médio Oriente ou o sarampo.
"Uma boa história viral"
A uma hora de comboio de D. C., em Baltimore, encontramos o português Raul Saraiva, aluno de doutoramento na Escola Pública de Saúde da Universidade Johns Hopkins. Num pequeno gabinete do Departamento de Microbiologia Molecular e Imunologia, o jovem de 25 anos frisa que passa os dias a estudar a malária, mas admite que as discussões sobre o ébola são por estes dias o prato principal.
Debaixo de toda a informação que debita com clareza sobre o tema do momento, numa conversa que dura quase uma hora, Raul Saraiva resume semanas de ansiedade nos Estados Unidos e na Europa numa curta frase, quando questionado sobre a capacidade da comunidade científica para esclarecer a população: “Nós tentamos fazer o nosso melhor, mas uma boa história viral irá sempre superar a capacidade para refrear os ânimos.”
É uma força imparável, já vista noutros casos, mas amplificada pela elevada taxa de mortalidade do ébola, “apesar de o contágio não ser de transmissão muito fácil”, salienta.
Sobre a questão que mais espaço ocupa nas televisões e nos debates políticos nos EUA quando se fala no ébola (devem ou não as autoridades norte-americanas proibir a entrada e saída de pessoas dos países mais afectados?), Raul Saraiva admite que um isolamento pode ser desnecessário e até contraproducente, tal como defende a liberiana Marlene Cooper Vasilic.
“Se vamos procurar isolar essas populações, estamos a contribuir para agravar o problema social que é a causa de tudo o resto. Se tomarmos essas medidas, estamos a fugir do domínio científico e a entrar no campo da política. Se vamos condicionar a mobilidade daquelas pessoas, e também a mobilidade de pessoas dos Estados Unidos para lá, mais difícil se torna o trabalho no terreno para controlar a situação.”