Plataforma informática dos tribunais começa a ressuscitar, mas com falhas

Ministério da Justiça prepara legislação para suspender prazos processuais e anuncia que Açores foi a primeira comarca onde Citius voltou a funcionar.

Foto
Fernando Veludo/arquivo

Há um mês praticamente sem funcionar, a plataforma informática dos tribunais — o Citius — começou esta terça-feira a ressuscitar, embora por enquanto apenas na comarca dos Açores.

“Iniciámos hoje o processo de levantamento das comarcas. A comarca dos Açores foi a primeira a ficar disponível para tratamento informático de todos os processos”, anuncia uma nota informativa do Ministério da Justiça.

“Seguir-se-á o levantamento das restantes 22 comarcas, isoladamente ou em grupos, em função da sua dimensão. Sempre durante o período da noite e aos fins-de-semana, para não interferir com o normal funcionamento dos tribunais e não causar novos constrangimentos ao trabalho diário de juízes, procuradores, oficiais de justiça e advogados”, refere a mesma nota, que dá ainda conta de que o Ministério da Justiça deu ouvidos aos protestos de advogados e magistrados no que diz respeito à necessidade de suspender os prazos processuais por causa do crash informático: “Está já preparado um projecto legislativo destinado a salvaguardar eventuais problemas decorrentes dos transtornos gerados”.

O juiz-presidente da comarca dos Açores, Moreira das Neves, diz que “a migração foi aparentemente um sucesso”, mas admite que ainda existem “algumas pequenas falhas” a condicionar a tramitação dos processos no sistema. Segundo este responsável, alguns magistrados não conseguiram concluir despachos e, noutros casos, “não conseguiram devolver o processo informaticamente à secretaria” do tribunal, o que continua a impedir o andamento dos processos.

Outra das coisas que também falhou foi a transferência electrónica dos processos antigos anteriores a 2000, ano em que o Citius começou a funcionar: “Os processos antigos têm agora de ser introduzidos à mão, um a um. São casos como por exemplo os relativos a menores [de regulação de poder paternal]  que então foram iniciados em papel e ainda decorrem porque o menor ainda não tem 18 anos”, relata Moreira das Neves. Esses processos “equivalem a 1%” de todos os casos, mas noutras comarcas como em Lisboa o seu número é muito maior”, acrescenta. A comarca dos Açores tem 71 mil processos no total. Entre estes, 59 mil estão já em fase de julgamento, enquanto os restantes 12 mil se encontram no Ministério Público.  

Este teste e consequente migração informática foram preparados em segredo. Na sexta-feira passada, fontes judiciais adiantaram ao PÚBLICO que a operação deveria ocorrer precisamente durante o fim-de-semana na comarca dos Açores, por ser uma das mais pequenas. Mas o Ministério da Justiça desmentiu essa informação e o Conselho Superior da Magistratura também não a confirmou.

“Na passada sexta-feira eu não sabia de nada. Fui informado durante o fim-de-semana”, diz o próprio juiz que dirige a comarca dos Açores. “O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça esteve a fazer testes informáticos na comarca a partir de Lisboa durante sábado e domingo. Esta madrugada foi feita a migração total dos processos para a nova plataforma informática”.

Moreira das Neves avança com algumas explicações para este secretismo. “Pode ter sido por estarmos longe e rodeados de mar e se as coisas corressem mal ninguém saberia", ironiza. "Também pode ter sido por ser uma das comarcas mais pequenas e por as coisas aqui correrem sempre bem”.

Efectivamente a comarca dos Açores é uma das menores do país, mas não a mais pequena. “Existem oito muito mais pequenas do que esta, mas ficam no continente”, exemplifica o juiz, “como Beja e Castelo Branco, que têm menos processos” que a dos Açores. A comarca do arquipélago tem 33 juízes e 160 funcionários judiciais. “O quadro de funcionários é de 240. Esse é o maior problema de todos. É grave. Faltam funcionários e vai demorar anos a resolver isso”, acrescenta Moreira das Neves.

Segundo o Ministério da Justiça, "houve necessidade de fazer alguns acertos durante a manhã, que podem ter motivado a limitação momentânea a alguns processos", mas a questão "já foi ultrapassada". Quanto ao facto de alguns funcionários não conseguirem aceder ao sistema, "está relacionado com a acreditação (perfis de utilizador)", será resolvido "após o administrador judiciário reportar a situação" à tutela.

Já ao final do dia de trabalho Moreira das Neves dizia que os problemas detectados de manhã e ao início da tarde “estavam ultrapassados”, embora continuassem por resolver algumas “questões residuais”. Mas seriam, na sua maioria, erros não relacionados com o Citius, como “o caso em que um processo de um juiz foi parar a outro juiz”.

 “Estou orgulhoso por a solução para esta situação ter começado pelos Açores e diria que até incrédulo, mas a verdade é que eu fui ao sistema e vi que está tudo a funcionar”, referia o magistrado, assegurando que todos os processos foram distribuídos. O problema dos processos anteriores a 2000, esse mantinha-se ainda.

O panorama descrito pelos funcionários era, porém, menos cor-de-rosa.  Uma dirigente sindical explicava que nem magistrados nem oficiais de justiça conseguiam ainda, à hora de fecho dos tribunais, aceder a todos os seus processos, embora a situação tivesse vindo a melhorar ao longo do dia. “Segundo a informação que me foi dada, só esta quarta-feira os processos ficarão todos transferidos” para a nova comarca dos Açores, resumia.

Da parte quer dos advogados quer dos juízes a palavra de ordem é esperar para ver. "Depois de tudo quanto aconteceu é difícil dar credibilidade ao Ministério da Justiça no que ao Citius diz respeito", observa a bastonária dos advogados, Elina Fraga, que se congratula por a reivindicação que fez no final da primeira semana de Setembro de suspensão dos prazos processuais ter finalmente tido acolhimento.

A Ordem dos Advogados criou esta segunda-feira no seu seio o Instituto das Tecnologias da Justiça. Liderado por três advogados, um dos quais o criador do blog Estado de Citius, o objectivo deste novo órgão é "fornecer contributos ao Ministério da Justiça para melhoria das diversas plataformas informáticas que este gere", e nas quais os advogados também têm de trabalhar. Além do Citius, a plataforma dos registos civil, predial e comercial também tem apresentado alguns problemas, embora de menor gravidade.

"Vamos esperar para ver", diz também o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Mouraz Lopes, chamando a atenção para o facto de ser necessário tomar medidas para ultrapassar as consequências do que se tem vindo a passar, uma vez que "uma dia de atraso pode significar dez" de demora acrescida nos processos pendentes nos tribunais.

Desde 1 de Setembro que os tribunais de primeira instância se encontram com grandes problemas de funcionamento, por a plataforma informática onde se encontravam cerca de 3,5 milhões de processos ter deixado de permitir o acesso de advogados, funcionários e magistrados aos documentos. O facto de ser também através do Citius que se gravavam os julgamentos fez com que as audiências tivessem que ser adiadas ou passado a ser registadas com velhos gravadores. A entrada em vigor da nova reorganização judiciária há um mês obrigou ainda a transferir muitos milhares de processos em papel entre tribunais. Por falta de espaço de arrumação nos seus novos destinos, muitos deles estão a ocupar salas de audiências.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários