Prendas e dinheiro para políticos acabam em condenação histórica

Nem um dos 36 arguidos foi absolvido e 11 deles foram condenados a penas efectivas de prisão.

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Os quase três anos que durou o julgamento de um dos mais mediáticos casos de corrupção em Portugal terminaram ontem com diversas penas de prisão pesadas numa medida invulgar da Justiça Portuguesa. Dos 36 arguidos, nem um conseguiu sair do processo ilibado.

Manuel Godinho, o homem que ficou conhecido como o sucateiro de Ovar e cujo universo empresarial controlou durante seis anos, através de prendas e envelopes em dinheiro, diversas empresas públicas, foi condenado com à pena mais grave. No total, 17 anos e seis meses de prisão efectiva por 49 crimes de associação criminosa, corrupção activa, tráfico de influências, burla qualificada, perturbação de arrematação pública e furto qualificado. Terá ainda de indemnizar, solidariamente com outros arguidos, em mais de 1,2 milhões de euros empresas como a Refer e a então designada Petrogal.

Os juízes deram razão a quase todos os argumentos e crimes elencados pelo Ministério Público. Godinho era, consideraram os magistrados, o centro de uma teia de corrupção que tinha como objectivo favorecer o universo empresarial que geria a partir de Ovar. Uma das mais mencionadas empresas neste esquema era a O2 – Tratamento e limpezas Ambientais, mas Godinho geria ainda outras dez empresas de recolha e comércio de resíduos, transportes internacionais, comércio de produtos eléctricos e reparação naval.

O Tribunal de Aveiro considerou provado que esse universo empresarial se alimentava preferencialmente das relações de privilégio que foi construindo entre 2002 e 2009 com empresas como a REN, Refer, CP, Estradas de Portugal, EDP, Lisnave, Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, Estaleiros de Viana do Castelo e Petróleos de Portugal.  

Segundo o extenso acórdão, com 2781 páginas, Godinho urdiu um plano meticuloso para conseguir o favorecimento das suas empresas. Fê-lo entregando prendas e dinheiro a “titulares de cargos políticos” e a gestores que poderiam decidir a seu favor.

É o caso do ex-ministro socialista e o ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos e do Millennium BCP Armando Vara. Foi condenado a cinco anos de prisão efectiva por três crimes de tráfico de influência. A sala de julgamento ficou em choque quando o juiz proferiu a decisão. Todos ficaram de olhos fitos no socialista que não contava com aquela pena e logo sugeriu estar a ser alvo de um julgamento politico. “Estou em choque, confesso. A sentença não é sobre as acusações. A sentença tem muito a ver com a minha circunstância. Não apenas com isso [ter sido governante] mas com a minha circunstância”, afirmou Armando Vara, visivelmente abatido, depois de ter ouvido a leitura do acórdão.

Encontrou-se várias vezes com Godinho de quem recebeu 25 mil euros, cifrados de “25 mil quilómetros” nas conversas que a Polícia Judiciária interceptou entre ele e o sucateiro de Ovar. A mesma quantia recebeu Lopes Barreira, empresário, consultor e membro fundador da Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária. Foi condenado a três anos e nove meses com a condição de pagar 25 mil euros a uma instituição de solidariedade social.

Ambos aceitaram influenciar o então ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Mário Lino, para que fosse superado um diferendo com a Refer. Os negócios entre a Refer e a O2 estavam inquinados. Dúvidas sobre a sobrefacturação nos serviços prestados levavam ao iminente corte das relações comerciais. Godinho pretendia que o presidente do conselho de administração da Refer fosse afastado e prometeu até aumentar os donativos em dinheiro feitos ao Partido Socialista.

Lino questionou a então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino sobre o assunto, sublinhando que pessoas “importantes do PS” estavam preocupadas com o que se passava na Refer. Esse plano, porém, não funcionou. Muito porque Ana Paula Vitorino foi o grande obstáculo, não colaborando e até, mais tarde, denunciado na Justiça a situação. Lino, porém, ficou de fora do rol de arguidos do Face Oculta.

Naquela empresa, Godinho tinha também José Valentim. O funcionário que assegurava os interesses do sucateiro na Refer dando-lhe informação privilegiada e garantindo-lhe assim que a vitória nos concursos públicos era quase certa, foi condenado a três anos e três meses de prisão suspensa, com a condição de pagar cinco mil euros a uma instituição de solidariedade.

Já na REN, Godinho chegou ao presidente da empresa, José Penedos, através do seu filho, o advogado Paulo Penedos. Dizem os juízes que por Paulo Penedos passaram cerca de 1,2 milhões euros, tendo apenas quase 500 mil ficado para beneficio do advogado que sempre negou que o pai tenha favorecido o sucateiro nos negócios com a REN. Certo é que nos interrogatórios realizados após as detenções da PJ, José Penedos, mostrou-se surpreendido com tudo. Paulo Penedos foi ontem condenado a quatro anos e seis meses de prisão por um único crime de tráfico de influências. Na sessão, o juiz-presidente teve a necessidade de explicar-se. “Foi um único crime mas que perdurou muito no tempo”, disse.

Ricardo Sá Fernandes, o seu advogado, admitiu também a surpresa. "Não estava à espera de uma pena efectiva de prisão, mas era uma das possibilidades que estavam em aberto. Encaro este resultado com respeito, mas com discordância", disse Sá Fernandes, recusando fazer " juízos de valor" sobre as ligações políticas deste caso e mostrando-se convencido de que "esta decisão não é definitiva". José Penedos foi condenado a cinco anos de prisão efectiva por corrupção e participação económica em negócio.

"Estou desapontado. Cinco anos neste processo é o mesmo que cinco dias. Qualquer condenação para mim seria muito. Discordamos em absoluto da decisão", reagiu Rui Patrício, advogado do antigo presidente da REN.

Entre os arguidos condenados com penas de prisão mais pesadas e efectivas estão Hugo Godinho (sobrinho do empresário), que era o operacional no terreno condenado a cinco anos e seis meses de prisão, António da Silva Correia, ex-funcionário da Refer, condenado a quatro anos e seis meses, o ex-administrador da EDP imobiliária, condenado a cinco anos, João Tavares, funcionário da Petrogal, que foi sentenciado em cinco anos e nove meses de prisão efectiva.  

O universo empresarial de Godinho acabou por implodir pela mão do seu braço direito. Namércio Cunha, contabilista, colaborou intensivamente com a investigação fornecendo inúmeras informações. Ficou conhecido como o “arrependido” e não é por isso de estranhar que a sua pena seja apenas de 18 meses de prisão e suspensa, sem qualquer condição. O próprio juiz o destacou. Era ele que elaborava as listas de homens do poder a influenciar através de prendas preparando até dossiers sobre como o fazer. “Eu só tenho a agradecer a toda a minha família, a todos os meus amigos próximos que desde a primeira hora estiveram comigo. Eu gostava de não ter estado cá. Isto é uma lição de vida que fica comigo e não desejo a ninguém”.

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