Quando Ulrich Seidl desce as escadas...

O realizador austríaco apresenta In the Basement, o seu filme sobre a verdade que está por baixo da norma social que se aceita, por baixo da camada de verniz, por baixo mesmo da sala de visitas: a cave austríaca.

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In the Basement dr
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Ulrich Seidl no Festival de Veneza AFP PHOTO / GABRIEL BOUYS

Ele dirá que é ali que está a verdade, muito privada, por baixo da norma social que se aceita, sob a camada de verniz, por baixo mesmo da sala de visitas: a cave. O espaço que pode ser concebido para um campo de tiro, que se adorna com retratos de Adolf Hitler ou com o aquário da jibóia no momento do ataque ao rato, ou onde se espraia o desejo da dominatrix, que ali se liberta completamente da ternura, emoção que só tem a medida das partes superiores da casa...

Na cave podem ser exactamente aquilo que querem ser a masoquista que gosta de agulhas e de ser espancada e que trabalha na Cáritas em benefício de mulheres violentadas pelos maridos, a cinquentenária que guarda os “seus” bebés em caixas de cartão, o nostálgico do III Reich e da sua iconografia, o cantor de ópera sem voz. Ulrich Seidl diz que há uma relação específica dos austríacos com as caves, que esse é o espaço onde passam muito tempo, provavelmente mais do que nos outros países, atribuindo-lhe, na hierarquia da casa, uma vocação libertadora: pais, mães, casais, filhos, donas de casas ou homens sozinhos mergulham ali a sua vertigem.

Se começamos já, a propósito de In the Basement, a pensar nos casos de pedofilia na Áustria que vieram a público, Seidl pode avisar-nos que, embora nada possa hoje contra essa associação inevitável na memória do espectador, o seu projecto data de 2001, altura de Dog Days. E que poderia continuar a sua investigação pelas caves do seu país muito para além do efeito de choque do fait-divers, se quisesse continuar a descer as escadas, a encontrar algumas respostas e certamente a fazer com isso nascer mais perguntas.

Essa é a vida do espectador face a In The Basement (fora de concurso), como em relação a todos os filmes de Ulrich Seidl: uma dúvida permanente perante a experiência, sempre muito silenciosa mas sempre lúcida, de nós próprios – uma inquietação que talvez nos faça, para nos sentirmos menos expostos, aliviar o incómodo devolvendo as dúvidas para os “métodos” do realizador austríaco.

Há um plano que pode dar alguma resposta, o último de In the Basement: uma mulher que se enfiou dentro de uma caixa de grades, a movimentar-se, a contorcer-se, não para sair dali, talvez para sentir a claustrofobia, o metal, a prisão. Rima, estranhamente ou não, com um dos planos iniciais, o de uma jibóia no seu aquário a medir o momento do ataque ao alimento. O bestiário de Ulrich Seidl, diz-nos esse último plano, lateja, não se trata de naturezas-mortas; lateja de solidão, de vida, é um work in progress – e o espectador tambem é um work in progress face ao espelho que é o ecrã. Por isso este plano de In the Basement, afinal, talvez não seja uma resposta, mas o início de outras perguntas.

E geralmente os planos dos filmes são meros pontos de chegada – por exemplo, na competição, 99 Homes, de Ramin Bahrani, cineasta de origem iraniana a trabalhar nos Estados Unidos, tal como o seu argumentista, Amir Naderi. Andrew Garfield, Michael Shannon, Laura Dern, os intérpretes, são colocados no centro da crise americana, da economia e do american dream, que está a criar uma multidão de homelesses.

É uma história de perversão: a de um tubarão do imobiliário (Shanon) que corrompe uma das suas antigas “vítimas”, que ele recupera para o seu negócio. Há uma intenção de argumento de apontar o dedo à crise de um ideal, uma denúncia do presente. É impossível não recordar um filme que Naderi, o argumentista, realizou e que foi apresentado em Veneza em 2008 (Vegas: Based on a True Story, que era uma espécie de Frank Capra pervertido) e também é impossível não pensar que Naderi é o realizador do documentário Mise en Scène with Arthur Penn (a conversation), homenagem à obra de um cineasta que expôs a violência da construção americana – um documentário programado para esta edição.

Mas os planos, as sequências, as interpretações e as emoções de 99 Homes estão formatadas sem possibilidade de folga para a surpresa, a originalidade ou a vertigem do desconhecido. Tal como o italiano Anime Nere, de Franceso Munzi, apesar da investigação no local, a Calábria, e do trabalho com actores do Sul italiano e com não profissionais calabreses,não consegue justificar, para além do labor em prol da autenticidade, a existência de mais um filme em que a tragédia implode no seio da Máfia.

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