Governo quer dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa

O decreto agora aprovado é um gesto anti-patriótico, um gesto contra a segurança social e um gesto contra os pobres.

A publicação é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para conferir a uma lei a sua dignidade e a sua validade porque a publicação, o conhecimento pelo povo, é a condição primeira da participação e da escolha democrática.

Mas este está longe de ser o único caso em que a publicação, a transparência, a exposição ao julgamento público é considerada essencial à validade de um processo político ou jurídico. Todos conhecemos o caso dos casamentos, contratos públicos, onde é obrigatória a publicação prévia de banhos e a sua celebração de porta aberta, ou o caso dos julgamentos, cerimónias públicas por excelência, onde apenas circunstâncias excepcionais, relacionadas com a protecção de valores superiores e devidamente justificadas (protecção de menores, por exemplo) podem permitir a sua realização de porta fechada.

Mesmo no caso das leis, a publicação não é um procedimento apenas devido após a conclusão do processo. Numa democracia, todo o processo de produção das leis tem de ser absolutamente transparente e estar sempre exposto ao escrutínio público. O povo tem o direito a saber quem propôs uma lei, quem escreveu a proposta, quem foi ouvido para a sua preparação, que discussão teve lugar, quem defendeu que posição e com que argumentos, que alterações lhe foram introduzidas durante a discussão, quem a aprovou, quem votou contra e quem se absteve e com que argumentos, etc.

E esta transparência não se pode restringir à discussão nos plenários do Parlamento, que é a parte mais espectacular mas a mais superficial da produção legislativa. Ela tem de incluir todos os trâmites processuais, incluindo as posições das inúmeras entidades cuja consulta os deputados considerem necessária e que deveriam ser sempre disponibilizadas para consulta dos cidadãos, no dossier de documentos preparatórios que deveria estar disponível nos sites do Parlamento e do Governo para consulta pública, ao lado de cada diploma em discussão ou aprovado.

Qualquer sonegação de informação, qualquer encobrimento habilidoso fere de morte o processo legislativo e descredibiliza os políticos e, por arrasto, a própria democracia. É por isso que é sempre particularmente grave ver o mês de Agosto ou o período do Natal serem aproveitados para "enfiar" à sucapa algumas leis controversas ou uns concursos destinados apenas a alguns amigos avisados, enquanto o povo está distraído, em férias e festas. É esse o caso da FCT, que abre e fecha em Agosto um concurso para bolsas de gestão de ciência e tecnologia ou, o que é muito mais grave, o caso do decreto da Assembleia da República de 25 de Julho que "autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online".

Na prática, como já foi denunciado nomeadamente por José Ribeiro e Castro (único deputado da maioria a votar contra, honra lhe seja feita) este decreto, contestado por toda a oposição, abre a porta à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o Euromilhões, com a desculpa aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa pela sua liberalização. É falso, mas o lobby do jogo, que possui muitos milhões para influenciar vontades, não tem olhado a meios nem a despesas para enfiar esta cunha através da qual espera conseguir finalmente destruir o monopólio da Misericórdia de Lisboa e apoderar-se dos seus enormes lucros, que actualmente alimentam a Segurança Social.

A iniciativa legislativa que pretende dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa é do secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, e a ideia é simples. O que se pretende é abrir uma excepção no domínio dos jogos de azar, permitindo a entrada de entidades privadas, de forma a destruir aquela que tem sido a argumentação do Estado português na União Europeia em defesa do monopólio do jogo por parte da Misericórdia - o seu objectivo social, a necessidade de não promover o vício do jogo, etc...

A actual situação portuguesa é perfeitamente compatível com as regras da UE (ao contrário do que dizem as vozes seduzidas pelo lobby) mas deixará de o ser se o próprio Estado abrir uma excepção. O decreto agora aprovado é por isso um gesto anti-patriótico, que mina uma posição de defesa nacional; um gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo, que assim conquistam mais uma ferramenta de alienação e de exploração dos trabalhadores. Uma das portas que o novo decreto abre é, sintomática e tristemente, a publicidade ao jogo, numa era onde se tenta restringir cada vez mais a publicidade ao tabaco e ao álcool por razões de saúde pública.

O jovem Adolfo Mesquita Nunes está orgulhoso porque sabe que, com esta fulgurante medida, a sua carreira política e o seu futuro estão garantidos. O Governo, por seu lado, exulta, com mais uma medida que nos vai roubar a todos mais umas centenas de milhões de euros por ano e enfiá-los no bolso de grandes senhores da finança.

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