Sherlock & Watson, versão J.K. Rowling

Autora da saga Harry Potter tirou um bom policial do chapéu

Comecemos por Cormoran Strike, o detective de Quando o Cuco Chama. Imagine-se um Mike Hammer de aspecto ainda mais abrutalhado do que o de Mickey Spillane, mas com a vulnerabilidade emocional do Philip Marlowe de Raymond Chandler. E com menos meia perna do que qualquer um deles. Perdeu-a no Afeganistão e trocou-a por uma prótese que até passaria despercebida se não se desse o caso de toda a gente parecer ter ouvido falar nela. É o preço que Strike paga pela notoriedade do pai, uma lenda viva da música pop.

O Watson de Strike é uma jovem de bons sentimentos, agradável à vista sem ser propriamente bela, esperta, competente, dotada de um talento especial para o improviso, e com um gosto romântico pela aventura que não colide excessivamente com o seu muito britânico sentido prático. Uma variação da Tuppence de Agatha Christie, que nesta sua nova encarnação se chama Robin Ellacott.

Foi a esta improvável dupla que Robert Galbraith confiou a investigação do suicídio-ou-talvez-não da top model Lula Landry em Quando o Cuco Chama. Como por esta altura já toda a gente sabe — de resto, a edição portuguesa do livro explica-o na contracapa e na badana —, Robert Galbraith é J. K. Rowling, a autora da saga Harry Potter. O romance não tinha saído há muito tempo quando o pseudónimo foi revelado, ao que parece por uma amiga de um advogado da autora. Até essa altura, vendera 8500 exemplares no Reino Unido, de acordo com os números avançados pela editora. E tivera várias críticas simpáticas em jornais ingleses.

Na semana em que se soube que Galbraith era J. K. Rowling, o livro tornou-se um best seller, como já acontecera com Uma Morte Súbita, apesar das muitas críticas negativas que mereceu essa sua primeira tentativa de se libertar de feiticeiros e vassouras mágicas. Mas desta vez Rowling parece ter acertado: antes e depois da revelação do pseudónimo, Quando o Cuco Chama foi elogiado como um policial competente. E Rowling já anunciou que Strike & Robin regressarão em 2014 para solucionar um novo mistério.

Apesar das inevitáveis insinuações de que tudo não passou de um estratagema publicitário, parece provável que a autora tenha mesmo querido ocultar-se, pelo menos a título provisório, sob o manto da invisibilidade que Robert Galbraith lhe proporcionava. Rowling não dependia propriamente das vendas deste romance para sobreviver, e o fracasso crítico de Uma Morte Súbita poderá tê-la convencido a jogar pelo seguro. Mas havia uma outra boa razão para não assumir a autoria do livro: é que todo ele se passa nesse estranho mundo das celebridades, um universo claustrofóbico de top models e cineastas, de ídolos da música pop e paparazzi, de vernissages, discotecas da moda e drogas duras. E é um bocadinho diferente ler estas páginas sabendo à partida que quem assim retrata os desequilíbrios e disfunções dos ricos e famosos é, ela mesmo, um ilustre membro desse selecto clube.

Claro que depois de se saber que Rowling escreveu o livro não é difícil encontrar nele sinais que apontariam para a autora das histórias de Harry Potter. O próprio Strike tem qualquer coisa de Hagrid, e a hiper-organizada e voluntariosa Robin não é isenta de afinidades com Hermione. No entanto, até ao leitor mais desprevenido poderia ocorrer, isso sim, que certas passagens deste policial sugerem uma imaginação feminina. Veja-se a hilariante cena inicial, quando o detective trava conhecimento com a sua ajudante. O corpulento Strike, ao sair intempestivamente do seu escritório, quase atira Robin (que vem preencher uma vaga como secretária temporária) pelas escadas do prédio abaixo. Consegue segurá-la no último momento, mas o pedaço de anatomia que a sua poderosa manápula inadvertidamente agarra é a mama esquerda de Robin, o que torna a salvação da jovem deveras dolorosa. Que mente masculina seria tão perversa que concebesse a ideia de agarrar uma mama por azar?

Em todo o caso, é nestas embaraçosas circunstâncias — o humor é um dos pontos fortes do livro — que o Sherlock de Rowling conhece a sua Watson. A história é depois alternadamente narrada por Strike e Robin — ao contrário da muito glosada receita de Conan Doyle do ajudante que relata os feitos do mestre —, o que obriga a autora a criar para ambos um discurso interior credível. E Rowling fá-lo bem.

Apesar de a aparência de Strike estar mesmo a pedir uma intriga ao estilo hard-boiled, com sexo e violência q.b., Quando o Cuco Chama está mais próximo da tradição inglesa do whodunit, do policial de dedução. E Rowling não desonra um género praticado por precursoras tão ilustres como Agatha Christie ou Dorothy L. Sayers. Escreve francamente bem, sabe construir um enredo complexo, e cria facilmente personagens secundárias com densidade psicológica e dotadas de um discurso próprio.

O que se possa criticar a este livro decorre quase sempre do uso excessivo de virtudes. O leitor experimentado de policiais gosta de complexidade, mas o livro é um pouco extenso de mais e talvez dispensasse algumas cenas e personagens. E se Rowling, ao contrário de muitos pseudo-romancistas actuais, sabe que toda a gente tem uma maneira própria de falar, tende a tornar demasiado óbvias as muletas que usa para tornar identificável o discurso de cada personagem. E talvez pudesse ter poupado nos envios literários, expressos ou encapotados, ainda que não os use gratuitamente.

Tal como os livros de Harry Potter, com as suas vassouras mágicas Nimbus 2000 a satirizar a constante actualização dos gadgets tecnológicos, Quando o Cuco Chama passa-se ostensivamente nos dias de hoje, mas talvez não fosse necessária uma presença tão constante de telemóveis e emails para o deixar claro.

Os leitores mais especializados no policial tenderão ainda a detectar duas fraquezas suplementares. Tratando-se de um daqueles livros em que o detective detecta de forma convencional, falando sucessivamente com toda a gente envolvida, e em que o leitor vai seguindo passo a passo as diligências do investigador, é difícil perceber, mesmo retrospectivamente, o que leva Strike, e em que momento, a dar com a solução.

A outra fraqueza tem a justamente a ver com a solução. O palpite deste viciado em romances policiais é que os leitores mais rodados no género adivinharão antes do desenlace de quem é a culpa, mesmo que não consigam — e provavelmente não conseguirão — deduzir o motivo e o modus operandi.

Dito isto, Quando o Cuco Chama é um entretenimento mais sofisticado e satisfatório do que a maioria dos romances policiais que hoje se publicam, e o anunciado regresso de Strike & Robin é uma boa notícia.

 

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