De uma ponta à outra da União Europeia
A mobilidade é um dos temas centrais das eleições europeias de 25 de Maio. ?A dos romenos está no centro da controvérsia. Contamos a vida de três famílias romenas no Algarve: para muitos imigrantes, casa é sinónimo de Portugal.
Ioana Ilie levantou-se ao mesmo tempo que o sol. O dia anda sempre duas horas à frente na Roménia. Tentou não despertar o filho e a nora, adormecidos no quarto ao lado. Caminhou uns dez minutos até ao pomar de sequeiro. Num instante, estava com um gancho numa mão e um balde num braço a apanhar damasco, que no Algarve recebe o nome de albricoque — do árabe al-birqoq.
Era o seu primeiro dia de trabalho desta época. Não tardaria a sentar-se para descascar os frutos demasiado maduros para embarcar. Daqui a umas semanas, estará, com a mesma determinação, a apanhar figo. Entretanto, limpezas na quinta e no hotel rural Companhia das Culturas. Não pode fazer muito mais aquela mulher de 59 anos e ar bondoso que se expressa num romeno só pincelado com português e muitos gestos. Pode fazer massagens como a avó lhe ensinou. Era um talento escondido. Revelou-o certa ocasião, contava dois dias sem ver a patroa, a antropóloga Eglantina Monteiro, nos 40 hectares de pinheiro manso, sobreiro, alfarrobeira, damasqueiro, figueira, laranjeira, oliveira. Quando perguntou por ela, contaram-lhe que não conseguia levantar-se da cama. Desceu a estrada que liga o hotel rural à casa privada. Ao vê-la deitada, queixosa de uma ciática, uma dor que irradia da coluna em direcção às nádegas, ofereceu-lhe uma massagem.
Eglantina já passara por aquilo. Esperava andar meses com aquela dor atroz, paralisante. Ao fim de cinco dias de energética massagem, estava a fazer a sua vida. “Ela salvou-me”, diz ainda agora. De certo modo, era um acerto. Também já a tinha salvado: Ioana trabalhara num restaurante que lhe andara a adiar os pagamentos e tudo se resolvera com um telefonema de Eglantina. Entendem-se bem, apesar de não falarem a mesma língua. E estimam-se tanto que, desde então, em cada ano, se entregam aos abraços risonhos da chegada em Abril e aos abraços chorosos da despedida em Outubro.
Ioana usa os cabelos descobertos, embora presos num rabo-de-cavalo ou numa trança. Pode ver-se por Castro Marim com umas calças e uma camisola de manga curta. Na Roménia, anda sempre com vestidos longos e lenço na cabeça. “Esta é a tradição das mulheres casadas”, explicou a filha, Cláudia. “Lá temos tios, primos. Não podemos ficar à frente deles de calças, a mostrar a forma das nossas pernas.”
Começou a vir em 2009, dois anos depois de a Roménia ter entrado na União Europeia. “Sentia um amargo na boca. Era tão pobre! O que podia fazer?” Durante anos, comprara flores, salsa e endro a produtores para vender no mercado local. Por mais que se esforçasse, não ganhava mais de 700 lei — uns 155 euros, o equivalente ao salário mínimo, retirados os impostos. Nos últimos anos, nem isso.
Não é de baixar os braços. Já por isso Eglantina diz que ela é “a máquina de lavar antes de haver máquina de lavar”. Custara-lhe, mas livrara-se do homem alcoólico e violento com quem tivera os dois filhos mais novos — e de outro antes desse, o pai das duas filhas mais velhas.
Tentou a sorte em Itália. Ambiente adverso o que por lá se respirava. Parecia que os romenos eram responsáveis por todos os crimes praticados no país. Vários acampamentos foram alvo de ataques. O Governo liderado por Sílvio Berlusconi aprovou um pacote de medidas destinadas a travar o fluxo de europeus de etnia cigana.
No outro extremo da Europa, num país chamado Portugal, Cláudia, a filha mais velha de Ioana, a que para lá partira havia dois anos, chamava-a. Em Portugal, ela podia trabalhar, ganhar “bom dinheiro”, pelo menos 20 euros por dia. E Ioana meteu-se na camioneta com o seu sonho: ter uma casa só dela, um sítio para envelhecer em paz, na aldeia de Balaceanca, a 20 quilómetros de Bucareste, tão conhecido por ser morada de um hospital psiquiátrico que há muito quem use Balaceanca como sinónimo de “casa de loucos”.
Partir não era estranho. Há muito que o tempo é de partida na Roménia. Há já 3,5 milhões de romenos no estrangeiro, pelas contas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Apostaram nos países do Sul, de língua latina como a sua. Houve estrondo não só na Itália de Sílvio Berlusconi mas também na França de Nicolas Sarkozy, palco de expulsões que espantaram parte da Europa. Com a crise financeira e económica a fustigar o Sul, viraram-se para o Centro e para o Norte da Europa.
Elisabeta Necker, a quem chamam Erji, foi uma das primeiras romenas a entrar em Portugal. Decorria Abril de 2000, estava o país ainda um tanto fascinado com a ideia de atrair trabalhadores do Leste da Europa, suposto sintoma de prosperidade. Não veio por gosto, ela. Casara-se meio ano antes. “Tinha de acompanhar o marido. Se fosse por mim, tinha ficado ao pé da minha mãe.”
A mãe teria preferido mantê-la por perto, regalando-a com os seus deliciosos pratos, como o “bulz”, mistura de polenta, queijo, natas e toucinho que nos ofereceu quando a visitámos em Timisoara, no extremo Ocidente da Roménia. Compreendeu a decisão do genro. Naquela época, a que vida poderia aspirar um jovem casal?
Tanto que a mãe acreditou que seria diferente, que nenhum filho teria de partir como um dia o marido partira. Afinal, fora ali, num sábado à tarde, que começara a revolução de 1989. Fiéis protestaram contra a transferência do pastor László Tokés, há muito vigiado pela polícia secreta, a Securitate. O protesto alargou-se. Nicolae Ceausescu, “le conducator iubit”, “o chefe bem-amado”, ainda fugiu de helicóptero, mas foi apanhado. E, de repente, o país parecia tão cheio de futuro.
Sem dinheiro, sem terra, sem emprego
A Roménia é um país imenso, rural. Os comunistas quiseram urbanizá-lo. Encaminharam camponeses para fábricas montadas nas cidades e ergueram prédios para os alojar. Após a revolução, desfizeram-se cooperativas, redistribuíram-se propriedades, desmantelaram-se fábricas.
“Se o avô tinha 15 hectares e teve cinco filhos, era preciso dividir a terra em cinco partes. Se cada filho teve dois filhos, o que dava a cada um? Pouco mais de um hectare”, lembrou-nos o antropólogo Vintila Mihailescu, um homem alto, magro, de cabelos grisalhos, desgrenhados, à saída da Universidade de Bucareste. Confrontados com a desindustrialização, muitos operários regressam às aldeias.
Na viragem deste século, dez milhões de romenos viviam no campo e 3,3 milhões dedicavam-se à agricultura. Só que a desigualdade entre eles, vincou Mihailescu, era abissal: de um lado, 2,6 milhões de famílias com menos de um hectare; do outro, umas 2500 fazendas com mais de 500 hectares. Como podia viver quem tinha um hectare ou nenhum?
Quando a Roménia entrou na União, o salário mínimo estava nos 114 euros. Só na Bulgária se ganhava menos. As televisões explicavam que o salário mínimo era 1570 euros no Luxemburgo, 1257 na Bélgica, 1254 em França, 666 em Espanha, 470 em Portugal.
“Sem dinheiro, sem terra, sem emprego, qual era a opção?”, questionava Mihailescu. Foram-se fazendo à estrada, uns atrás dos outros. “O mau? Não eram trabalhadores especializados. O bom? Eram muito flexíveis, podiam fazer/ ser qualquer coisa. É preciso arranjar a casa? Não há problema! Agricultura? Não há problema!”
Era o pouco ganho na construção que cavava insatisfação no marido de Erji, Randi. De ascendência alemã, tinha facilidade em obter um visto no consulado da Alemanha. Já experimentara trabalhar lá, como o pai, mas não gostara. Parecera-lhe tudo tão rígido.
Um amigo do pai de Erji tinha uma empresa de construção em Almancil, frente marítima de Loulé. Ao ouvi-lo, até se podia pensar que o dinheiro crescia nas árvores, contou-nos a mãe dela, senhora grande, de pele avermelhada e cabelos louros muito curtos.
Pediram um visto Schengen. Apanharam camioneta com destino ao Algarve, via Alemanha. A polícia impediu-os de prosseguir em Hendaye, fronteira de França com Espanha. Pedira-lhes que explicassem o motivo da viagem e que provassem que tinham meios para subsistir esses dias. Já não sabe quanto era preciso, sabe que o que levavam ficava muito aquém. “Tínhamos uns 300 marcos.”
Tem fama de ser persistente. Não se lhe pode dizer “não posso”. Quanto muito, poder-se-á dizer-lhe “não quero”. Acha que, quando se quer muito, tudo é possível. “É muito forte”, assegurou-nos Ana Maria, a irmã, seis anos mais nova.
Erji sorri ainda ao lembrar-se daquele episódio. Tinha 24 anos, “era jovem, gira”. No seu “francês de escola”, abordou um taxista. Haveria ali homens com coragem para levar uns 20 romenos por caminhos não controlados? Havia, se pagassem por isso. Pagaram. Pagaram uns cem euros por cabeça. E avançaram para Madrid e de lá para Sevilha. O amigo do pai de Erji mandou lá alguém buscá-los.
Trataram logo de ir ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Pelo menos enquanto o processo decorresse, estariam em situação regular. Randi já tinha mãos calosas, mas Erji acabara de se licenciar em engenharia energética. “Experiência prática: zero. Tinha saído da casa da mãe, não sabia cozinhar, não sabia nada”, diz ela.
Fez de tudo na empresa do amigo do pai. “Era a única mulher.” Vestiu a pele de uma sexy servente de obra. Foi secretária, motorista, estafeta. Tratava de processos de regularização de trabalhadores e ainda ajudava no bar e na cantina. Na hora do almoço, estudava português.
Portugal vivia anos de euforia. A taxa de desemprego rondava os 4,3%. Os portugueses não tinham deixado de emigrar. A emigração tornara-se mais temporária. Partiam muitos homens para a construção. A pouca regulação do sector, observava na altura o sociólogo João Peixoto, da Universidade Técnica de Lisboa, tornava-o “pouco atractivo para os nacionais e interessante para os estrangeiros”. As estratégias migratórias nem seriam diferentes. Os portugueses tinham melhor ponto de partida e maior escolha. Para os de Leste, era consistente a procura de trabalho em Portugal e menor o risco de irregularidade e expulsão.
Em 2000, quando Erji desembarcou, Portugal contava 375 romenos. Discutia-se a existência de milhares de clandestinos vindos de muito lado. Em 2001, uma alteração legal trouxe a possibilidade de regularizar trabalhadores estrangeiros por conta de outrem. A partir daí, a comunidade foi crescendo de forma consistente. No final de 2006, na véspera de a Roménia entrar na União, integrava 11.431.
Os romenos estavam a formar família e a reproduzir-se. Erji também tratou de aumentar a sua, ora auxiliada pela mãe, ora pela sogra, que se tornaram presenças mais assíduas desde que ela teve Diana, há 12 anos.
Está feliz. Encontrou, em Almancil, “uma paz que nem sabia que existia”. Trabalha numa empresa de gestão de propriedades de luxo, o que lhe confere “estabilidade”. Na Doina — Associação de Romenos e Moldavos do Algarve, que co-fundou em 2007, recebe “outro tipo de recompensa”.
A associação está situada no rés-do-chão do mesmo prédio alto de cores claras que lhe serve de morada. Trabalha a integração de crianças e jovens, amiúde já nascidos em Portugal. Não deixa passar uma festividade, uma data importante. Presta apoio jurídico a trabalhadores em apuros. Ali não chegam processos de escravatura, como os que levam o Alentejo às páginas dos jornais, entram queixas de empregadores abusadores na agricultura, na restauração, na construção. “Sobretudo com trabalhos de curta duração, aparecem pessoas que não têm salários pagos.”
Uma certa sensação de boas-vindas
Este não é o país que a acolheu há 14 anos. A construção paralisou. O desemprego está nos 15,3%. Os portugueses estão a emigrar a grande ritmo. Muitos estrangeiros regressam a casa ou saltaram para outros países. Com o plano de ajustamento, o número de romenos caiu pela primeira vez — passou de 39 mil para 35 mil entre 2011 e 2012.
Apesar do estado depressivo, Portugal não perdeu encanto aos olhos dela e de outros romenos. Em casa dela já ninguém conta para a estatística de estrangeiros residentes, já todos têm dupla nacionalidade. Segundo o Ministério da Justiça, nos últimos três anos, mais de dois mil romenos podem dizer o mesmo. E Erji já viu regressar alguns dos que tinham partido para a Alemanha ou para outros países prósperos.
Ainda vai havendo trabalho, sobretudo nos meses de Verão, e uma certa sensação de boas-vindas.
Entrar na União Europeia era o grande desígnio da Roménia pós-Ceausescu. “Os romenos sempre se sentiram europeus”, explicou o antropólogo Mihailescu. “Somos centro da Europa. A nossa identidade nacional é construída a partir do império romano.” Na Antiguidade Tardia, ao Império Romano chamavam “Romania”. “Uma coisa é sentirmo-nos em casa, outra coisa é sentirmo-nos bem em casa. Nós sentimo-nos cada vez pior em casa.”
Por quase toda a parte, partidos extremistas ganham fulgor. Estão bem lançados para o Parlamento Europeu o Partido Independentista do Reino Unido, de Nigel Farage; a Frente Nacional, de Marine Le Pen, em França; o Partido da Liberdade, de Geert Wilders, nos Países Baixos; os Democratas da Suécia, de Jimmy Akesson; e o Partido Nacional Esloveno, de Zmago Jelincic. Apelam todos ao medo do “outro”, do que é “diferente”. E atacam, de modo particular, romenos e búlgaros.
A livre circulação não foi um ganho automático para a Roménia — nem para a Bulgária. O país enfrentou restrições, como a exigência de contrato de trabalho, até ao início deste ano na Bélgica, na Alemanha, na Irlanda, na França, na Itália, no Luxemburgo, na Noruega, na Áustria, no Reino Unido e em Malta.
Não por acaso. A Roménia tem a maior população de etnia cigana da Europa. Estima-se que sejam mais de dois milhões numa população de 21 milhões, embora só 619 mil se identifiquem como tal nos censos de 2011. Lidam mal com censos. Muitos nunca se esqueceram que durante a II Guerra Mundial Ion Antonescu deportou 25 mil para a Transnístria e 11 mil acabaram mortos.
Os media do Reino Unido anunciaram uma invasão a partir de Janeiro. Revelando partilhar a “preocupação” dos britânicos com a possibilidade de entrada de romenos e búlgaros no país, o primeiro-ministro, David Cameron, antecipou o fim das restrições à livre circulação com medidas que dificultam o acesso às prestações sociais, como subsídio de desemprego.
Já se ouvira discurso semelhante na Alemanha. “Temos de impedir a entrada de pessoas que vêm apenas beneficiar dos nossos apoios sociais e que abusam, assim, do direito de livre circulação”, proclamou no ano passado o ministro do Interior Hans-Peter Friedrich. Em França, o agora primeiro-ministro Manuel Valls assumira posição ainda mais polémica, tornando bem claro quem é alvo. “A maioria dos roma devia ser reconduzida à fronteira”, declarou, enquanto ministro do Interior. “É na Roménia e na Bulgária que, em certa medida, os projectos de inserção devem ser desenvolvidos.”
“Só fazem planos de inclusão dos roma para mostrar à União Europeia”, lamenta Ciprian Necula, dirigente da KCMC, uma das organizações que estão a criar um Museu Cultural dos Roma, no sector 6 de Bucareste. “Nesta localidade, nada está feito”, comentava, à porta do edifício, uma estrutura metálica, com ar provisório. “Não é nada, temos alguns resultados, mas não se vê desenvolvimento.”
Na Roménia, os ciganos têm três vezes mais probabilidades de nascerem numa família pobre do que os não ciganos. Um estudo do Banco Mundial, divulgado em Abril último, mostra como a exclusão se reproduz: só 37% das crianças ciganas frequentam o pré-escolar, em comparação com 63% das não ciganas. Aos 16 anos, apenas 29% dos homens e 18% das mulheres continuam na escola. Entre adultos, a taxa de emprego fica-se pelos 42% nos homens e nos 19% nas mulheres.
A Necula parece que a discriminação tem diferentes níveis. Vivendo nas zonas rurais ou na periferia das cidades, as comunidades ciganas têm pouco acesso a serviços básicos. “Vejam esta rua”, pedia, apontando para o asfalto irregular. O eléctrico não passa aqui — volta para trás na última rotunda. “Os moradores querem a mesma coisa que qualquer romeno: água canalizada, luz eléctrica, registo de propriedade… Antes do Natal, tivemos aqui uma reunião, disseram que queriam ter iluminações de Natal, como os outros. São tratados de qualquer maneira. Encontram a sua própria estratégia de sobrevivência. A emigração é uma delas.”
Muitos viajam através de redes de família ou vizinhança, como Ioana. Outros são forçados a partir por estruturas criminosas. Os agiotas têm cada vez mais poder nas zonas mais desfavorecidas. “Eles fazem as regras”, enfatizou Necula. “Quem não paga o que deve é obrigado a trabalhar no que eles quiserem.” E o que eles quiserem até pode ser mendigar ou roubar.
Valeriu Nicolae — fundador do Policy Center for Roma and Minorities, uma organização não governamental que tenta quebrar o ciclo de pobreza extrema a partir do bairro de Ferentári, um “gueto” conhecido pelo tráfico e pelo consumo de drogas — conhece gente que apanha um avião para ir mendigar. Num instante, um mendigo em França ou na Alemanha ganha o mesmo que um médico na Roménia.
Não, não é por gosto que Ioana viaja de um extremo ao outro da União. E quase quatro dias tarda a camioneta de Bucareste a Vila Real de Santo António. Só de quatro em quatro horas pode esticar as pernas, ir à casa de banho. Custa-lhe tanto encontrar posição.
Tem muito em que pensar, Ioana. Está solteira a filha Eliza e tem três crianças pequenas para criar. Está grávida a neta de 14 anos, que a filha Cláudia deixou para trás quando veio para Portugal.
Quando Cláudia veio trabalhar para o Algarve, o filho contava dois anos e três meses. “Estava muito pequenino para deixar”, diz ela, na apertada cozinha do apartamento arrendado em Vila Real de Santo António. A filha tinha quase sete anos. “Estava o primeiro ano na escola. Ficou com minha mãe, minha irmã. Cuidavam dela todos.”
Com trabalho o ano inteiro, Cláudia foi ficando. Quando se quis ir embora, o filho pediu-lhe que voltasse atrás. “O meu pequenino queria estudar aqui. Ele diz que o futuro dele está em Portugal”, conta ela. “Já estava habituado à escola portuguesa”, confirma Marius, rapaz de dez anos que se apresenta como Mário e se expressa num português claro, com sotaque algarvio. “Já tinha andado na pré-primária.” E não eram iguais as condições na escola, não tinha o mar, o areal, os amigos, o Lusitano Futebol Clube.
A filha tornou a ficar com a família, em Balaceanca, num amontoado de casas com paredes por revestir, separadas por muros inacabados, sobrelotadas.
“Ela escondeu a gravidez”, insurgia-se a mãe. A rapariga ouvia-a em silêncio, de cabeça baixa. “Sempre usava blusas largas, com cinta apertada. Quando já não podia esconder, toma! A minha mãe e a minha irmã me contaram tudo. Tinha para aí quatro meses e meio de gravidez. Eu queria que ela tivesse um futuro, fosse à escola, fizesse as coisas como deve ser!”
Imigrantes num país de emigrantes
“Há muito para fazer na Roménia”, resume o embaixador de Portugal, João-Bernardo Weinstein. Pontes, estradas, serviços. Potenciais investidores estrangeiros recuam perante a falta de transparência e a muita corrupção. E “faltam meios e know how para tirar melhor partido dos fundos estruturais da União Europeia”. No ano passado, a taxa de execução ficou-se pelos 33%. No ano anterior, 17%.
O êxodo dos romenos lembra-lhe o de portugueses nas décadas de 1960 e 1970: “Querem ter uma vida melhor. Têm pouca escolaridade, fazem trabalhos básicos. Dão importância à família, gostam de se reunir em pequenas associações, de ir à igreja e de encontrar um padre que fala na sua língua.” Onde há maior concentração de romenos, há igreja ortodoxa — Faro, Portimão, Setúbal, Lisboa, Aveiro e Madeira. Em Faro, o padre Ioan Rasnoveanu celebra na antiga capela do largo de São Sebastião.
Talvez o facto de este ser um país de emigrantes dite a forma como acolhe imigrantes, arriscara o diplomata. Percebemos o quanto isso pode ser literal ao visitar Ioana no apartamento alugado por ela e pelo filho na aldeia de São Bartolomeu, em Castro Marim.
Cláudia quase podia pôr Lisete Martins, a senhoria, num altar. Ela cuidava-lhe do filho pequeno, perdoava-lhe os atrasos na renda, emprestava-lhe dinheiro para o supermercado, se fosse caso disso. “Eu já tinha vivido na pele a emigração, já tinha sido emigrante”, comentou a senhora, espampanante, na sua sala kitsch.
Está cansada. Soma histórias de atrasos. Tem até histórias de rendas por pagar. Ioana nunca lhe falhou. Nem ela nem o filho, Laurentiu, que com ela e a mulher divide o apartamento da cave. “Eles no Verão vêm e não trazem dinheiro. Dou-lhe casa. Quando recebem, pagam.”
Precisam de uma semana para recuperar da viagem de quatro dias. Laurentiu não consegue dormir. Só cede ao terceiro dia. Não aguenta mais os olhos abertos. Torce o nariz só de se lembrar do cheiro a urina, a suor, a comida: “Quando eu vim, vinham quatro pessoas feias, não vou dizer feias, sujas, cheiravam tão mal. Fui lá e disse: ‘Olha, toma, tens aqui papel húmido, desodorizante.’”
Ioana veio para ganhar dinheiro para acabar a casa que está a construir na aldeia. A obra começou há quatro anos. Num ano, abriu os alicerces, noutro ergueu as paredes, noutro fez a cobertura. No ano passado, não veio. Doíam-lhe demasiado as costas.
Sai-se da estrada, segue-se por um caminho de terra desenhado entre ervas, excrementos de cão e algum lixo, e eis o que ela idealizou: uma casa térrea, com uma sala, uma cozinha, dois quartos, uma casa de banho, ainda sem portas nem janelas, com paredes por revestir.
Quer muito terminar a obra. Mesmo assim, o primeiro dinheiro que receber esta época enviará a Eliza. Quer que a rapariga construa uma vedação nas traseiras da casa pequena, sem casa de banho, com uma retrete exterior, de madeira e zinco, que ela partilha com os três filhos pequenos, e aí crie um porco e algumas galinhas.
Quando acabar a casa, irá convidar a antropóloga que a emprega a visitá-la. Teria vergonha de a levar agora. “Quero que ela tenha um sítio para tomar um duche, como ela está habituada”, diz. “Quero que ela tenha a casa de banho dentro de casa, como ela está habituada.”
Lisete admira-lhe a coragem. “Querer construir uma casa naquela idade!” Identifica-se com ela. Ganhou em França o dinheiro para construir a casa. Trabalhava numa fábrica, o marido noutra e quando ele saía ainda ia para uma garagem privada consertar carros. O sonho dela era ter uma casa grande com jardim. Farta de casas pequenas estava ela.
Quando o marido adoeceu, ela teve de se reinventar. E foi àquela casa enorme, amarela, guardada por um leão de louça, numa aldeia de casas pequenas, brancas, que ela se agarrou, como um náufrago: começou a arrendar quartos e apartamentos, primeiro a ucranianos, depois a romenos.
Vintil Mihilescu passou cinco anos a estudar casas de emigrantes na Roménia. “Muito do dinheiro que vem para o país é para comprar terreno, construir casa e comprar tudo o que tem a ver com a casa.” Os residentes no estrangeiro mandaram mais de 2,6 mil milhões de euros em 2012, segundo o Banco Mundial — de Portugal enviaram 15,7 milhões no ano passado, de acordo com o Banco de Portugal.
O marido de Erji também está a acabar de construir casa na terra natal, um sítio pacato, com ruas ladeadas por novas ou bem conservadas casas e grandes quintais, em Becicherecu Mic, a 17 quilómetros de Timisoara. Jacob, o pai, vigia-a, não vá alguém assaltá-la.
Sentado no alpendre, o velho, curvado nos seus 70 anos, perguntava-se por que está o filho a construir aquilo se a nora não quer voltar.
A família inteira já assumiu que Erji não voltará. Fica tudo muito claro na casa de nove divisões que os pais partilham com a irmã, Ana Maria, o marido, Romi, os filhos, Anabelle e Alexandru, a gata Miranda e os cães Pufi e Bruno. “As referências dela agora estão em Portugal”, diz a Ana Maria. “Voltando, só teria a família.”
Aos 38 anos, com uma filha de 12 e outra de dois,
Erji é mais cautelosa. Encolhe-se no seu gabinete, em Almancil, sorri, diz “para já, não”, “para já, nem pensar”. Porquê? “É o Algarve. A praia é a mesma para nós e para aqueles que têm fortunas. Também tem a ver com a associação. Nós construímos tantos sonhos aqui dentro…”
Compreende-a tão bem a vizinha Adina Mark, com 35 anos. Saiu cansada da Roménia. Qualquer coisa de que precisasse tinha de recorrer à mãe, que fora funcionária do exército e era polícia de fronteira. “Ali toda a gente trabalha assim.” E tivera tantos problemas com a sogra. “Queríamos estar sozinhos, governar a nossa vida.”
Desembarcaram a 1 de Maio de 2001, Dia do Trabalhador. Instalaram-se num barracão a abarrotar de romenos, muitos em situação irregular. Volvido um dia, estava ele “a apanhar laranjas para um velhinho”. Volvia uma dúzia, estava ela numa pastelaria. “Amei Portugal desde o primeiro dia.” Agora, casa é Portugal. Gosta do clima, gosta das pessoas, gosta dos serviços, gosta do modo de estar.
Pior é a mãe, Florica Voichita. Passou grandes temporadas em Portugal quando nasceram os gémeos, Dennis e Emma, há dois anos, e antes deles a irmã, Brigite, de oito. “Ela aqui não tem amigos, não percebe um cinema, não percebe um teatro”, notou Adina. “Ela aprende tudo, é uma esponja, mas tem resistência a aprender português. Se calhar porque ela sente que Portugal lhe roubou a família.”
A solidão fez Florica falar como se não houvesse amanhã quando a encontrámos no seu apartamento espaçoso, no centro de Timisoara. Lembra-se tão bem do dia em que se despediu da única filha e do único genro. Era como se eles estivessem a ir para o fim do mundo. “Respeitei a decisão deles. Só lhes disse que Portugal é longe. Mas claro que foi muito difícil para mim. No princípio, eles disseram que seriam só uns anos. Mais tarde, disseram que não têm nada para o que voltar. Eu concordo. Portugal pode não ser o país mais civilizado do mundo, mas pelo menos tem ordem, as pessoas têm palavra, não dizem uma coisa hoje e outra amanhã. Eu lamento que a minha única filha não queira voltar para a Roménia. O meu coração parte-se quando penso nisso. Teria ficado muito triste se eles tivessem desistido de falar romeno com as crianças, o que nunca fizeram. Quero vê-los, falar com eles. E é por isso que eu tento muito aprender esta coisa do Skype…”
Esta reportagem resulta de uma bolsa obtida pelos jornalistas no âmbito de um programa da União Europeia e do Conselho da Europa intitulado Mediane — Media in Europe for Diversity Inclusiveness.