Fontes jornalísticas, especulações e manipulação

Tenho muitas dúvidas sobre se jornalistas chamados a um ministério por uma fonte informativa não abstracta mas identificável tenham de guardar sigilo sobre a fonte reveladora.

Lamentável. Simplesmente lamentável este episódio da reunião do secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, com alguns jornalistas convocados ao Ministério das Finanças para dar conta de que o Governo está (ou estava?) a estudar uma nova fórmula do cálculo das pensões que passaria a ter em conta duas variáveis: crescimento económico e indicadores demográficos.

Havia, porém, uma condição: os jornalistas poderiam noticiar o assunto, mas sem identificar nomes ou personalidades. Poderiam apenas atribuir a revelação do assunto a uma fonte do Ministério das Finanças. E mais: os temas tratados tinham um embargo de divulgação até à meia-noite de quarta-feira (26 de Março de 2014). Para quê, a partir de agora, tenho eu de fazer a reserva sobre a identificação exacta da fonte, se esta já e do conhecimento público?

Os jornalistas no cumprimento de uma trave mestra do exercício da sua profissão – o sigilo devido às suas fontes confidenciais de informação – observaram, com todo o rigor, o compromisso assumido. Passado o tempo do embargo, vários meios de comunicação social na manhã de quinta-feira, entre os quais o PÚBLICO, deram a conhecer aos seus públicos o assunto, um tema de grande impacto que, como ontem vimos, até perturba o próprio Presidente da República. O primeiro-ministro ausente em Moçambique, em visita oficial, alarmado com a notícia ou com a sua divulgação fora de tempo, e mal informado pela fonte do Ministério da Economia, reagiu dizendo que só poderia ser “especulação”. Por sua vez, no habitual encontro com jornalistas, após o Conselho de Ministros, e como seu porta-voz, o ministro Luís Marques Guedes afirmou que o Governo ainda não tomara uma decisão sobre as alternativas à contribuição extraordinária de solidariedade (CES). Mas, em vez de ficar por aqui, excedeu-se ao considerar que as notícias divulgadas não poderiam ser interpretadas como “especulação”, mas como “manipulação”. Entretanto, já ontem, o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, veio dizer: “O que se aconteceu foi um erro.” Provavelmente, senhor ministro, um erro irrevogável. Por fim, nesta escalada de sim e não, com uma louvável atitude de assumir o erro, ele, que é responsável pela coordenação da comunicação do Governo, o ministro Poiares Maduro, lamentava o “ruído” desta vez causado, efectivamente, pelo próprio Governo.

Não obstante, o esclarecimento, sexta-feira publicado na última página pelo PÚBLICO e subscrito por sete outros meios de comunicação, ligados à tal confidência da fonte do Ministério das Finanças (agência Lusa, Correio da Manhã, Diário Económico, Diário de Notícias, Dinheiro Vivo, Jornal de Notícias e PÚBLICO), sem nunca identificar o secretário de Estado, reafirmou que, pela sua parte, os meios de comunicação em questão haviam cumprido o compromisso. Aliás, o PÚBLICO na própria peça de ontem dá conta do embaraço criado no Governo com este berbicacho a propósito das iniciativas para mudar os descontos provisórios em permanentes, sem nunca identificar o governante responsável.

Todo este suceder de declarações que dão enredo ao caso já foram notícia e objecto dos mais diversos comentários. Eu retomo o assunto na qualidade de provedor do Leitor do PÚBLICO para tratar da questão das fontes.

A questão das fontes e do respeito da sua confidencialidade, ou seja, do sigilo profissional dos jornalistas, é um tema que tem merecido especial tratamento pelas instituições que regulam o direito à liberdade de informar. Organizações internacionais e dos mais diversos países consagram ao segredo profissional do jornalista disposições regulamentares e legislativas. O Conselho da Europa estabelece o segredo sobre as fontes como um direito do jornalista se negar a revelar a identificação do autor da informação ao seu próprio empregador, às entidades públicas e judiciais. Este direito, como esclarece a doutrina sobre esta prerrogativa, não resulta de um privilégio ou de uma desobrigação para esta categoria profissional, mas é uma condição para exercer, de modo pleno, a função de informar. Em Portugal, esse direito tem salvaguarda constitucional e é garantido na legislação sobre comunicação social.

Porém, a defesa intransigente deste direito em prol da liberdade responsável de informar não deve esconder problemáticas muito actuais levantadas por esta questão. O novo contexto em que se move a comunicação pública não pode deixar de considerar os usos e abusos que se faz das fontes “geralmente bem informadas”. Nem tão-pouco a utilização que os autores dessas fontes, conservando ou pedindo o anonimato, delas fazem. Não podemos ignorar que, hoje, governos, empresas, corporações, organizações dos mais diferentes sectores, do financeiro ao desportivo, têm gabinetes de informação com profissionais do ofício e com estratégias comunicacionais organizadas prosseguindo os mais diversos objectivos. Há hoje um novo jogo de política de informação pública. Neste jogo de interesses, de insofismável necessidade ao bem superior de manter uma sociedade informada, entre os novos spin doctors e os jornalistas nem sempre são estes que saem por cima. As estratégias pré-persuasivas “vamos a ver se isto passa” são cada vez mais uma prática corrente. É preciso reconhecer – e não sermos ingénuos provedor e jornalistas – que estamos num terreno pantanoso. Eu sei o que sobre o segredo profissional diz o Código Deontológico do Jornalista e o que estabelecem os Princípios e Normas de Conduta Profissional para os jornalistas de o PÚBLICO, e até vou fazer essas citações à parte. Mas creio que, neste contexto gelatinoso, em que poder político e outros poderes se encontram nas actuais democracias europeias e mundiais “em profunda recessão democrática”, este debate sobre a questão das fontes terá de ser objecto de imensa discussão. Apelo à maior atenção do tema por parte dos jornalistas do PÚBLICO.

No caso concreto que originou estas considerações, acho injusto se acontecer a prestável fonte informativa, a quem não atribuo ingenuidade ou insubordinação, ser transformada em bode expiatório. Contudo, sinceramente, tenho muitas dúvidas sobre se jornalistas chamados a um ministério por uma fonte informativa não abstracta mas identificável tenham de guardar sigilo sobre a fonte reveladora.

A PROPÓSITO DAS FONTES INFORMATIVAS

“O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes. O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o tentarem usar para canalizar informações falsas. As opiniões devem ser sempre atribuídas.”
DO CÓDIGO DEONTOLÓGICO DO JORNALISTA

“O jornalista do PÚBLICO deve alimentar uma relação assídua com as suas fontes de informação, na base da responsabilização, confiança e respeito mútuos. Uma relação de independência implica que se evitem informações exclusivamente recolhidas em briefings e se recuse de forma lapidar a combinação de notícias ou em qualquer género de campanha.”
 DOS PRINCÍPIOS E NORMAS DE CONDUTA PROFISSIONAL PARA OS JORNALISTAS DO PÚBLICO.

“A propaganda é o aspecto patológico da comunicação política.”
 
LUCIEN SFEZ, in La Symbolique Politique, Paris, PUF, 1996.

“Há uma crescente desconfiança na capacidade de as instituições democráticas conseguirem encontrar as soluções para os seus problemas.”

LARRY DIAMOND, editor do Journal of Democracy, em entrevista ao PÚBLICO de 23/03/2014.

 
 

   

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