Cavaco, oito anos à procura da relação institucional perfeita

Na sua convivência com dois primeiros-ministros, Cavaco Silva teve vários conflitos e inúmeras tensões para gerir.

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Nuno Ferreira Santos

Aníbal Cavaco Silva foi reeleito Presidente da República a 23 de Janeiro de 2011 e fez, nessa noite, um dos mais agressivos discursos da sua vida política, reagindo de forma emocional e ressentida ao que considerou como ataques à sua honra feitos durante a campanha. Em causa estavam as notícias sobre a compra de uma propriedade sua no Algarve, mas o episódio acumulava-se a anos de tensão conflituosa em crescendo com o PS e com o então primeiro-ministro, José Sócrates.

Foi um pico de conflito em que Cavaco Silva deixou transparecer a sua irritação e em que ficou patente que não haveria mais espaço para conciliações com os socialistas, por parte de um presidente que tinha tentado, durante parte do seu primeiro mandato, encontrar a relação institucional perfeita com o então primeiro-ministro socialista, como depois de 5 de Junho de 2011 tem tentado com o actual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. Isto, sem nunca ceder nas suas posições e no que considera central para o país, nem abdicar do seu perfil interventor e assertivo na gestão do poder institucional que constitucionalmente está entregue ao Presidente da República.

O homem ressentido com os adversários políticos que falou da varanda do Centro Cultural de Belém na noite da sua reeleição, há três anos, pode ser visto como a excepção e o contraponto do que foi um perfil de intervenção que, desde o primeiro momento, procurou unificar o país e assumir-se, a seu modo, como "o Presidente de todos os portugueses". Para isso, logo em 2006, ao fazer o seu primeiro discurso de 25 de Abril, na Assembleia da República, elegeu como compromisso do seu mandato a inclusão social, de que fez tema de Roteiros, levantando então o problema das crescentes desigualdades sociais em Portugal, que em seu entender são um entrave ao desenvolvimento.

Cavaco procurava assim, ao entrar em Belém, centrar a sua figura mais à esquerda que a área natural da sua eleição, definia-se ideologicamente como social-democrata de origem e tentava temperar a imagem de economista que até tinha aberto a porta ao neoliberalismo quando primeiro-ministro, ao fazer a revisão constitucional em 1989 e a lei de bases da saúde em 1990. A sua tentativa de ser o árbitro dos conflitos e da busca do bem social leva-o mesmo a estabelecer relações privilegiadas com as centrais sindicais, UGT e CGTP. Uma relação discreta e respeitosa que só é quebrada com a CGTP quando Arménio Carlos, em 2012, substitui Carvalho da Silva na central sindical de inspiração comunista e surgem as primeiras manifestações de sindicatos à espera de Cavaco.

Desconfiança crescente
A procura da relação institucional perfeita leva Cavaco Silva a iniciar o que classificou de "cooperação estratégica" com José Sócrates. E a relação foi quase perfeita nos primeiros anos, com Cavaco até a tecer elogios ao carácter reformista do Governo e à obra de Maria de Lurdes Rodrigues na Educação e de Vieira da Silva no Trabalho e Segurança Social. Até que, em 2008, surgem os primeiros sinais de falta de sintonia. Numa visita à Casa de Camilo Castelo Branco, em Famalicão, o Presidente pronunciará palavras de alerta para a necessidade de mudar o modelo económico. E nos bastidores começam então os problemas de relacionamento entre Cavaco e Sócrates e a desconfiança crescente entre ambos.

A tensão expressa-se então em omissões e em atrasos. Sócrates não passa todas as informações a Cavaco sobre a governação, chegando elas a Belém por outras vias. E começa a ser vulgar a manifestação até de desrespeito institucional, com atrasos recorrentes na chegada do primeiro--ministro a Belém para as reuniões semanais. Houve mesmo uma reunião que foi adiada por ordem do Presidente. A marcação de terreno surge na visita de Cavaco à Madeira, onde o PS vigia qualquer eventual favorecimento do Presidente ao seu "companheiro" de PSD, Alberto João Jardim.

As desconfianças de eventual favorecimento do Presidente ao seu antigo partido, o PSD, regressam ainda em 2008, quando Manuela Ferreira Leite é eleita presidente do PSD. A amizade entre ambos, bem como o facto de vários assessores de Cavaco serem também amigos pessoais da líder do PSD, é razão de rumores, nomeadamente sobre alegados aconselhamentos a Manuela Ferreira Leite prestados por Susana Toscano, David Justino e Sevinate Pinto.

Para o país, a má relação com o Governo Sócrates torna-se evidente no Verão de 2008, a propósito da revisão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores. Uma alteração à lei que obrigava o Presidente a ouvir o governo regional no caso de querer dissolver os órgãos regionais. A questão era menor, mas Cavaco considerou que esta alteração abria um precedente para, por lei ordinária, se mexer nos poderes constitucionais do Presidente da República, pois estava a alterar-se o elenco de audiências que estes poderes e deveres continham. Cavaco falou com Sócrates, que disse que ia ter em conta a posição do Presidente. Não teve. E Cavaco, depois de enviar a lei ao Tribunal Constitucional, acabou por a vetar politicamente, obrigando a Assembleia a reafirmar a mudança, em segunda aprovação em hemiciclo.

Na escalada da tensão segue-se, em 2009, o caso da divulgação pelo PÚBLICO da notícia de que o Presidente e os assessores deste estavam a ser alvo de vigilância. Tratava-se de pessoas seguidas e de violação de emails – como o próprio Presidente acabaria por confirmar numa comunicação ao país –, mas o caso acabou por ficar classificado pela imprensa em geral como o "caso das escutas".

Contribuindo para agudizar a dificuldade da relação, perdurou no tempo o caso BPN. Não só porque o Presidente levantou dúvidas à sua nacionalização, como também pelo facto de este banco ser um negócio onde se juntavam vários amigos do Presidente, como Dias Loureiro e Oliveira Costa, tendo o próprio Cavaco e o seu genro Luís Montez sido accionistas. Um outro momento, já em 2009, ajudou à tensão Belém-São Bento: a forma como Cavaco se opôs e impediu que a Prisa vendesse a TVI primeiro à Portugal Telecom e depois à Ongoing, num negócio bem visto pelo executivo. Cavaco tenta manter a verticalidade institucional e, face ao Governo minoritário do PS, apadrinha as negociações para o Orçamento do Estado de 2011, em que o seu antigo ministro Eduardo Catroga encabeça, pelo PSD, as negociações com o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos.

O Presidente tutela também o entendimento entre PS e PSD para a revisão do Programa de Estabilidade e Crescimento. A crise económica está na ordem do dia e Cavaco é reeleito a 9 de Março de 2011. Ao tomar posse na Assembleia da República, faz um discurso profundamente crítico para a governação de Sócrates e avisa: "Há limites para os sacrifícios que se podem pedir ao comum dos cidadãos." De costas voltadas, Cavaco e Sócrates consumam a ruptura.

O primeiro-ministro negoceia com o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, com a anuência de Angela Merkel, o PEC IV. Sem dizer nada ao Presidente, a quem devia "lealdade institucional". O PSD de Passos Coelho assumia nos bastidores que não apoiaria mais nada e que iria fazer tudo para ter eleições no Verão. Sócrates vê o seu PEC IV chumbado no Parlamento a 23 de Março e demite-se nessa noite. Cavaco não hesitou em aceitar a demissão e, de imediato, anuncia eleições.

A 5 de Junho de 2011, vê sair das urnas o PSD vitorioso, a cujo Governo – de coligação com o CDS e chefiado por Pedro Passos Coelho – dará posse a 21 de Junho. Trinta anos depois, perante o país parece surgir a hipótese de realização do sonho político do líder fundador do PSD, Francisco Sá Carneiro: um presidente, uma maioria, um governo.

Negar Sá Carneiro
Pura ilusão. O perfil de Passos Coelho e do próprio Cavaco Silva, bem como o historial de relações entre ambos não seriam favoráveis a que tal se realizasse. Havia um adquirido de desentendimento e distância entre o antigo primeiro-ministro e líder do PSD e o ex-líder da JSD. Além disso, se Cavaco era ideologicamente um social-democrata, Passos estava rendido ao neoliberalismo. E se antes Cavaco enfrentara um emocional Sócrates, agora enfrentava um frio e cerebral Passos Coelho.

As relações institucionais serão perfeitas até hoje, mesmo que muitas vezes o Presidente se sinta ignorado pelo primeiro-ministro. E Cavaco procurou mesmo regressar à sua pose de "cooperação estratégica", sem nunca voltar a utilizar a expressão. Até se reaproximou institucionalmente do líder do segundo partido da coligação, Paulo Portas, de quem estava distante desde que o antigo jornalista zurzira a sua governação como director do semanário O Independente.

Na prática, Passos nunca hostilizará Cavaco, sempre demonstrará respeito institucional, mas não se deixa influenciar pelas intervenções do Presidente, antes as ignora respeitosamente. E até o elogia, como quando agradeceu o seu contributo para o acordo de concertação assinado com a UGT em 2012.

Com o país a viver um momento inédito na democracia e governado sob o guião do memorando de entendimento negociado pelo PS, o PSD e o CDS, com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, Cavaco desempenha uma preponderância inerente ao seu cargo e procura um novo equilíbrio para o exercício da sua função: não se deixar meter no bolso por um governo maioritário, mas também não esticar a corda crítica à acção do primeiro-ministro.

Daí que, num primeiro momento, as suas discordâncias em relação às orientações orçamentais se tenham manifestado de forma leve. A 19 Outubro de 2011, à saída do Congresso dos Economistas, o Presidente afirma que Orçamento do Estado para 2012 não tem política de investimento e não respeita o princípio constitucional da equidade fiscal. Mas deixará aos partidos da oposição a iniciativa de recorrerem ao Tribunal Constitucional. E quando da crise do aumento da TSU cria condições para um conselho de Estado, Passos Coelho abandona a medida.

O descontentamento no país alastra e começa a criar erosão na imagem do próprio Presidente e na sua posição nas sondagens. Um pico é atingido a 20 de Janeiro de 2012, no Porto, quando Cavaco critica os cortes nas pensões e dá o exemplo da sua, confessando: "Tudo somado não dá para pagar as despesas." Dois dias depois, em Guimarães, o Presidente, que abdicara do salário inerente ao cargo para optar pela sua pensão de reforma financeiramente mais compensadora, é pela primeira vez assobiado em público.

O cartão amarelo ao Governo será mostrado por Cavaco a Passos Coelho um ano depois. A 1 de Janeiro de 2013, na mensagem de Ano Novo ao país, o Presidente anuncia na televisão que enviará para fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional as contas do Estado. Mas quando o TC chumba medidas, Cavaco recebe de imediato o primeiro-ministro e o ministro das Finanças para reafirmar o apoio ao Governo.

Não pode, porém, voltar a mandar o OE para o TC. Por um lado, o chumbo por unanimidade da convergência das pensões em 2013 era demasiado violento e definitivo para Cavaco repetir a dose. E a imagem externa, do Presidente e do país, é demasiado valorizada por Cavaco para se expor às críticas internacionais e a ser identificado como força de bloqueio.

Forçar o acordo
O momento de forçar um há muito por si desejado pacto de regime, que permitisse o país atravessar as águas agitadas da crise e cumprir as metas acordadas com os credores, surge-lhe quando se vê perante a demissão de Vítor Gaspar e de Paulo Portas, em Julho de 2013. Um risco calculado, pois sabia que, se corresse mal, teria sempre o recurso de aceitar a remodelação – como aconteceu.

Por outro lado, sabe que deixou uma janela aberta para ser tentado novo entendimento sobre o que venha a ser "um programa cautelar light", com um nome inócuo e não estigmatizante, o qual é facilitado pela excelente relação entretanto construída entre Passos Coelho e Angela Merkel e pelo facto de a Comissão Europeia querer contribuir para o sucesso do caso português.

Cavaco só não conseguiu evitar que o líder do PS lhe fugisse à última hora. As relações institucionais entre ambos eram excelentes e Cavaco recebeu de António José Seguro a anuência para lançar o repto do pacto. Em troca garantia ao PS eleições em 2014. Mas, quando o acordo tutelado pelo assessor presidencial David Justino estava pronto, o PS recuou. Faltava passar a escrito as medidas acordadas que garantiam logo ali a poupança de dois milhões e meio, quando a meta eram quatro milhões e meio. Mas Seguro não aceitou. A ala socrática do partido pressionou-o e Mário Soares saiu a terreiro a criticar o acordo. O falhanço fez com que Presidente e líder do PS não se voltassem a falar. Até hoje.  
 

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