A Internet democratizou a genealogia
A genealogia tem os seus três "D": digitalizar, disponibilizar online, democratizar o acesso. Um curso livre organizado na Póvoa de Varzim atraiu já uma centena de pessoas, de vários pontos do país. Com ou sem nobreza nos costados, há mais portugueses que, nos arquivos online, procuram saber de onde vêm. Algo que hoje é bem mais barato e rápido de fazer do que antigamente, em que a busca implicava longas e caras deslocações.
Pode ser do preço. Doze euros, para, em cinco sessões nocturnas, se aprender o básico da pesquisa genealógica é barato. Mas chega isso para explicar a atracção de uma centena de pessoas, boa parte delas de outros concelhos, por esta disciplina? A procura por outras iniciativas mais caras e com outro arcaboiço, como o curso que a Associação Portuguesa de Genealogia organizou na Universidade Autónoma de Lisboa, e a grande adesão aos workshops de um dia que esta entidade (que reúne interessados e estudiosos desta área) organizou, no ano passado, na capital e em Coimbra, pedem outra explicação.
O neurologista Rui Faria, poveiro conhecido pelo seu trabalho com a paramiloidose, há-de ainda este mês ir a Valença, consultar um documento que o ajudará a fazer a ligação entre uma mulher nascida em 1710 e antepassados que já identificou. Perderá provavelmente um dia a vasculhar num arquivo paroquial que, por acaso, ainda não está digitalizado ou, se está, que ainda não foi disponibilizado online. Ora, um pouco por todo o país, quase todos os assentos paroquiais estão na Internet, facilitando, e de que maneira, esta viagem ao passado, tendo em conta que, desde final do século XVI, após o Concílio de Trento, as paróquias foram obrigadas a deixar registo escrito de baptismos, casamentos e óbitos.
A Net, admitem as várias fontes – jornalísticas, não-genealógicas – contactadas pelo PUBLICO, foi a grande revolução. De repente, um tipo de pesquisa que poderia demorar anos, se feita em folgas e férias, e que poderia custar milhares de euros em deslocações sucessivas a vários arquivos locais ou distritais, no caso de famílias territorialmente dispersas, está disponível a qualquer hora e em qualquer lugar. E esta democratização do acesso pode bem ter sido a chave que abriu a porta da genealogia – que era antigamente coisa de nobre gente em busca da sua nobre linhagem – a qualquer interessado. Pelo menos nos primeiros passos que não impliquem textos em português arcaico, a pedir já conhecimentos em paleografia e apoio de um profissional ou de um estudioso no assunto.
Há muito por onde pesquisar. Os registos paroquiais estão nos sites dos arquivos distritais, dando acesso fácil a dados do século XVI ao início do século XX, altura em que esse registo passou a ser feito nas conservatórias. Ou seja, se precisa de informação de um baptismo ou casamento posteriores a este período, para saber, por exemplo, o nome e a origem dos bisavós, aí será mesmo necessário ir a uma repartição. E, para além dos paroquiais de grande parte do país, dos quais há listagens com links no site Quinta do Mosteiro ou no e.tombo.pt, há publicações de outro tipo acessíveis também online na Torre do Tombo, na Direcção-Geral de Arquivos ou em organismos como o Núcleo de Estudos da População e Sociedade, para os quais há ligações nos sítios referidos.
Plataformas como o Geneall.net, onde é possível, por subscrição, ter acesso a informação já trabalhada por milhares de pessoas e comprar obras importantes para o estudo aprofundado da origem de diversos nomes, ou a mundialmente conhecida Family Search – o motor de pesquisa fundado pelos mórmons –, de acesso gratuito e com bases de dados de todo o planeta, são outros recursos importantes para quem está a dar os primeiros passos. E são muitos a fazê-lo.
O Arquivo Distrital de Braga, que tem em curso a digitalização do seu espólio, e que já tem parte desse trabalho disponível em http://pesquisa.adb.uminho.pt/, assumia, no início deste ano, ser muito procurado por gente interessada em genealogia. E, no Facebook, Ricardo Bessa Teixeira e um companheiro destas andanças criaram vários grupos de discussão sobre genealogias lisboetas e portuenses, da Póvoa de Varzim, do Tâmega, do Douro Sul, do Alto e do Baixo Minho.
Mudança de paradigma
Do alto dos seus 50 anos de experiência no estudo genealógico, Fernando de Abranches Correia da Silva, secretário-geral da APG, assume esta mudança de paradigma. Ele que vê gente bem diferente a percorrer os corredores da Torre do Tombo em busca dos antepassados, explica que há umas décadas a arte funcionava um pouco em circuito fechado, entre curiosos, amadores e estudiosos como ele e outros, entre eles o amigo Armando de Sacadura Falcão, de quem guarda um poema que, verso a verso, define, na prática, muito do que é fazer genealogia em Portugal. Um mergulho no passado, no qual não faltam surpresas e engulhos, alguns difíceis de ultrapassar.
Um aviso. Tal como o poeta, quem começa arrisca-se a não mais parar. “É um vício bom”, define Correia da Silva. Chegados a uma geração, a vontade de descobrir a anterior pode levar-nos dos registos paroquiais ao Santo Ofício e às inquirições de Genere – em que padres tinham de assegurar que não estava “infecto” o seu sangue, por via da prova genealógica. Claro que podemos esbarrar com um filho natural, “ilegítimo”, muitas vezes de um clérigo, mas cujo baptismo apenas indica a mãe. E, se tivermos o azar de ter um antepassado “exposto na roda”, ou seja, abandonado numa igreja ou convento, a viagem para trás pode ficar mesmo comprometida se não encontrarmos fontes alternativas que nos digam de quem, efectivamente, descende.
No caso do médico que trabalha com uma doença hereditária, ela própria com uma genealogia conhecida que coloca a sua origem aqui mesmo, na Póvoa de Varzim, o seu puzzle familiar foi quebrado por outros motivos. O seu trisavô, um farmacêutico maçon, decidiu limpar-se de todo o rasto de nobreza e de José Avelino da Costa Faria Lobo de Melo Bacelar ficou como José Avelino Faria, diz o trineto. Até o brasão da família foi destruído, mas deste sobrou um pergaminho que, tendo chegado às mãos do trineto, o ajudou já a pôr-se no encalço da sua nobre ascendência.
Já Henriette Verahen, uma holandesa que, semana a semana, fez os 50 quilómetros entre Miramar, Gaia, e a Póvoa para descobrir mais sobre a família do genro, um poveiro, gosta bem de olhar para as ovelhas negras da ascendência. Com um olhar azul profundo, sorriso maroto, abre o Legacy – um dos vários programas informáticos de construção de bases de dados e árvores genealógicas – e vai em busca de um antepassado do marido, da zona de Oliveira de Azeméis, para nos contar como ele engravidou uma rapariga com quem só se casou depois de os pais dela lhe terem oferecido um dote. “Devia ser terrível para a família este rapaz”, pressupõe esta mulher de 75 anos, descendente de franceses que, dos Verahen, tem informação “até 1700 e troca o passo”.
Henriette não queria que aos netos, com estes dados do lado da mãe, lhes faltasse informação sobre o lado paterno, muito ligado à pesca. E tomou ela em mãos a tarefa de lançar as redes e completar o quadro. Hoje, confirma Ricardo Bessa Teixeira, que, além de ser professor de Química numa escola local, vai fazendo árvores genealógicas para outros, há quem encomende o trabalho para o oferecer a um familiar. O secretário-geral da APG considera “feliz” essa ideia de prenda, pois, assinala, a genealogia é o património mais universal da humanidade. Como explica, todos temos dois pais, quatro avós e oito bisavós – e por aí adiante, numa progressão geométrica que 20 gerações para trás nos põe em contacto com um milhão de pessoas.
Dados para a história local
Mário Palmeira está longe deste número. Mas está longe também da maior parte dos que participaram nos dois primeiros cursos do Arquivo da Póvoa de Varzim. Da sua pesquisa de oito anos, os mesmos que leva na reforma, este bracarense e antigo engenheiro electrotécnico guarda já uns 20 mil nomes do lado dos seus pais, a que acresce uns quatro mil dos ascendentes da esposa. “Parei em D. Afonso Henriques. Podia ir mais para trás, mas acho que chega”, explica-se este homem de 67 anos cujo bisavô saiu de Palmeira, freguesia de Braga, para o Brasil, como João da Costa e de lá regressou com o apelido Palmeira, que perdura.
Mário, que diariamente trabalha seis a oito horas a estudar documentos, descobriu, através deles, mais do que uma linhagem, histórias que entroncam na História de Portugal, como a de um antepassado de Vila do Conde, Pedro Carneiro Gaio, que, no mar, no Brasil, atacado por holandeses, se fez explodir sentado num barril de pólvora. Morreu, mas afundou dois navios inimigos, o que levou o rei a agraciar um seu irmão com terras no concelho vizinho, doação que, documentada, como seria de esperar, nos garantiu que Pedro não fosse apenas mais um nome na extensa linhagem de Mário, mas uma personagem especial da sua e da nossa História.
Aliás, Fernando de Abranches Correia da Silva releva esta relação entre a genealogia, a história das populações e a história local. Mais do que uma sucessão de nomes, semelhante à bem conhecida ladainha genealógica lida nas missas de Natal, acerca da linhagem de Jesus Cristo, a genealogia pode ajudar a compreender relações entre famílias, a mobilidade geográfica e social numa dada comunidade, assinala o dirigente da APG e antigo quadro da TAP, que está a fazer doutoramento em História Medieval, com uma tese em curso sobre o povoamento da serra do Açor, zona de onde vieram os seus antepassados.
Nas suas deambulações por Vila do Conde, Mário Palmeira descobriu algo que pode bem ser a próxima revolução na pesquisa genealógica em Portugal. Hoje, qualquer um de nós pode fazer pesquisa online, mas terá de ler os assentos paroquiais, página a página, nos anos pretendidos, ou estimados, procurando o nome de um seu ascendente. Pois bem. Um colaborador do arquivo dos Descobrimentos, instalado na antiga Alfândega Régia, dedicou-se a transcrever para uma folha Excel os dados constantes de todos os baptismos, casamentos e óbitos de Vila do Conde, e já tem parte do mesmo trabalho feito para a Póvoa de Varzim. Ou seja, aqui presencialmente, porque o serviço não está disponível online, bastou ao bracarense escrever Carneiro Gaio para logo lhe aparecer informação sobre todos os registos existentes com esses nomes ao longo de quatro séculos.
Este serviço, semelhante ao que alguns portugueses estão a levar a cabo no site Genregis, chamou a atenção do director do Centro de História da Família de Braga da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias. Reconhecidos mundialmente como os maiores cultores da genealogia, por motivos religiosos, os mórmons, que já fazem o favor de nos guardar microfilmes dos arquivos portugueses no Utah, estão, em Portugal como noutros países, a empreender esse trabalho de indexação, numa base de dados, dos microfilmes entretanto digitalizados. A questão, explica Ricardo Lima, é que o projecto depende da boa vontade de pessoas que se oferecem para o levar a cabo e não tem um prazo definido.
Quem quiser pode participar, escolhendo a opção indexing no Family Search. Em Portugal, há voluntários nos distritos do Porto, Portalegre e Setúbal apostados em facilitar a vida a quem pretenda conhecer melhor os antepassados. Perante este interesse crescente, Ricardo Bessa Teixeira já pensa organizar acções de formação no Porto. E, depois do sucesso dos cursos que está a levar a cabo, o Arquivo da Póvoa de Varzim quer criar, com este formador, a noite da genealogia, momento mensal de tertúlia e apoio às investigações dos que se acometeram a esta tarefa de vasculhar o passado, em busca da sua história.