Centro da Memória Judaica do Porto chumba no QREN, mas mantém a fé

Pároco da Vitória espera cativar judeus para o projecto do centro interpretativo no Encontro Diálogo e Reconciliação que decorre no dia 14 nesta freguesia do centro histórico do Porto.

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Ehal, um nicho de pedra lavrada onde a comunidade judaica guardava a Torá BÁRBARA RAQUEL MOREIRA

O padre Agostinho Jardim Moreira já imaginava que “só por milagre” se conseguiria concluir o projecto do Centro Interpretativo da Memória Judaica e Cristã-Nova do Porto a tempo de ele beneficiar dos fundos europeus do Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN). O prazo era demasiado curto para cumprir os trâmites.

O velho edifício, virado para a Rua de São Miguel, a mais importante do tempo da Judiaria do Porto, foi cedido à paróquia de Nossa Senhora da Vitória pela autarquia em Julho de 2013. “Conseguimos fazer o levantamento e o projecto; o projecto foi aprovado pela Sociedade de Reabilitação Urbana; apresentámos a candidatura ao QREN, mas foi desclassificada, por não estar amadurecida”, diz. “Não tinha ainda as especialidades todas. Fez-se tudo em cima do joelho.”

Uma nova candidatura está a ser trabalhada a pensar no Quadro Comunitário de Apoio 2014-2020, que foi aprovado em Novembro pelo Parlamento Europeu. Desta vez, Jardim Moreira terá tempo para cuidar de cada detalhe. E parece-lhe que não tem sentido avançar sem o apoio dos judeus.

No próximo dia 14 de Janeiro, no Palacete dos Viscondes de Balsemão, no Porto, o pároco da Vitória e o líder da Rede de Judiarias de Portugal deverão acolher os participantes no Encontro Diálogo e Reconciliação, no qual, “pela primeira vez”, a oração Shemá Israel, a base das religiões monoteístas e abramistas, será cantada a uma só voz por “responsáveis da Igreja católica, rabinos e dirigentes de comunidades judaicas portuguesas e bispos das Igrejas anglicana e luterana”.

No encontro – organizado para ser “um exemplo de diálogo inter-religioso e de fomento da paz entre os povos e as culturas do mundo” –, Jardim Moreira discursará sobre o projecto, orçado em 1,6 milhões de euros. Está convencido da sua importância. “No ano passado, recebi mais de 300 judeus do Canadá, dos EUA, do México, da Alemanha, de Israel”, comenta. O interesse dos turistas tinha um ponto muito específico. No número 9 da Rua de São Miguel foi descoberto há 12 anos um ehal, um nicho de pedra lavrada onde a comunidade judaica guardava a Torá.

O edifício fora adquirido pelo Centro Social e Paroquial de Nossa Senhora da Vitória em 1997 para fazer um lar de idosos e um centro de dia. Na primeira fase da obra, ao limpar as paredes, depararam-se com um muro falso. Retiradas as pequenas pedras e as partes de barro, deram com o que resta de um armário litúrgico no qual se presume que seriam guardados os textos sagrados.

O nicho sobressai no refeitório do lar e centro de dia. Dos azulejos que lhe cobriam o fundo e da decoração envolvente subsistem apenas alguns fragmentos. Era ali que funcionava a sinagoga da Judiaria do Olival. De vez em quando, telefona algum guia de um grupo de judeus que o quer visitar.

Amiúde, perguntam a Jardim Moreira por que se interessa tanto um padre católico por este assunto. Na linha de Kiko Argüello, um dos fundadores do Caminho Neocatecumenal na Igreja Católica Apostólica Romana, responde que sem judaísmo não haveria cristianismo. “Temos uma história comum, embora essa história tenha partes que não orgulham ninguém”, reconhece.

Os primeiros reis de Portugal protegeram os judeus. Havendo mais de dez, podia ser criada uma comuna e uma sinagoga. Em 1319, nova etapa: qualquer comunidade com mais de dez membros teria de viver longe dos cristãos. Em 1477, quando Dom Manuel subiu ao trono, já em Espanha havia Inquisição. Solicitou regime semelhante. Publicou o édito de expulsão dos judeus em 1493, mas o chamado Santo Ofício foi estabelecido já no tempo de Dom João III, em 1536.

Foi naquele contexto de segregação que nasceu a sinagoga da Rua de São Miguel. Há, explicou aquando da sua descoberta a historiadora Elvira Mea, “garantia histórica” de que existiu ainda no século XVI, ou seja, após a expulsão dos judeus. No livro Nomologia o Discursos Legales, publicado em Amesterdão, em 1629, Immanuel Aboab refere o bairro do Olival, no qual havia uma sinagoga.

Em 2012, o ehal foi classificado como monumento de interesse público por Francisco José Viegas, então secretário de Estado da Cultura. Em Julho, Câmara do Porto e Assembleia Municipal aprovaram a cedência do imóvel devoluto, na mesma rua, uns números abaixo, para que ali nascesse o Centro Interpretativo da Memória Judaica e Cristã-Nova do Porto.

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