Suspeitas de corrupção aproximam-se dos filhos do primeiro-ministro turco
Erdogan remodelou metade do seu Governo para ficar rodeado de fiéis e garante que os seus opositores ficarão "de mãos vazias", se tentarem chegar a ele. A luta interna de poder na Turquia intensifica-se.
“Todos os meus colegas e o público devem saber que, enquanto procurador, fui impedido de lançar um inquérito”, declarou Muammer Akkas, num comunicado divulgado pelo jornal em língua inglesa Today’s Zaman, em que apontava o dedo à polícia. O Ministério Público usa os agentes da polícia nos inquéritos judiciais, uma vez que não existe uma polícia judicial na Turquia, mas na semana passada foi emitido um decreto que obriga os chefes de polícia a notificar os seus superiores de todas as investigações iniciadas pelos procuradores – algo visto como uma forma de limitar a independência dos tribunais.
A investigação do procurador Akkas foi travada depois de vários jornais turcos noticiarem que os filhos de Erdogan tinham sido convocados a depor, por vezes até com reproduções do respectivo documento, que anda a correr nas redes sociais. Estaria a ser destruída documentação comprometedora, diziam ainda as notícias.
Segundo a versão turca do Zaman, a Justiça poderá estar interessada nas relações de amizade entre o primeiro-ministro, um dos seus ex-conselheiros, Cuneyt Zapsu, e o empresário saudita Yassine Al-Qadi – sob suspeita de ter ligações à Al-Qaeda. O correspondente na Turquia do Le Monde adianta ainda que o Ministério Público de Ancara terá aberto outro inquérito, contra a Empresa Nacional de Caminhos de Ferro (TCDD), por suspeitas de fraude em concursos públicos.
Guerra sem tréguas
Por trás destas investigações de corrupção está uma guerra que mina os alicerces do regime conservador islâmico mas laico – algo que em princípio seria como um país ocidental governado por um partido democrata-cristão conservador, como o de Angela Merkel – que Erdogan e o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) criaram na Turquia durante a última década. O AKP de Erdogan filia-se politicamente no movimento transnacional da Irmandade Muçulmana, fundado no Egipto em 1928, mas a sua chegada ao poder na Turquia deve bastante aos seguidores do imã Fethullah Gülen, que se exilou nos EUA em 1999.
Erdogan e Gülen foram aliados na construção de uma sociedade turca islâmica laica, amiga do progresso económico, e empenharam-se em desmontar o controlo dos militares sobre a república turca. Mas Gülen tornou-se cada vez mais crítico da forma como Erdogan dirige o país, e o abismo tornou-se real a partir do Verão, com a forma brutal como o primeiro-ministro reprimiu os manifestantes que tomaram a Praça Taksim, para protestar contra a destruição de um jardim, mas muito mais do que isso: contra as empreitadas faraónicas lançadas por toda a Istambul, uma série de leis que interferiam no comportamento das pessoas, como o consumo de álcool na via pública, e uma percepção geral de corrupção e impunidade de empresas e figuras ligadas a Erdogan.
Mas o corte final foi quando o primeiro-ministro ordenou o encerramento das escolas privadas de preparação para os exames de acesso à universidade – muitas delas propriedade do movimento Hizmet (serviço) de Gülen e uma das suas principais fontes de financiamento e de recrutamento.
O Hizmet está muito representado na polícia e na Justiça – diz ter pelo menos um milhão de pessoas nestes sectores. Por isso o avanço do inquérito judicial é encarado como um golpe de Gülen contra Erdogan. O primeiro-ministro tem retaliado contra a polícia e o Ministério Público: foram afastados 170 dirigentes, incluindo o chefe da polícia de Istambul, e 400 outros polícias.
A quatro meses das eleições municipais – e com as eleições presidenciais no Verão, e legislativas em 2015 – a guerra fratricida não dá sinais de abrandar, muito antes pelo contrário. “Não haverá tréguas”, prevê o editorialista liberal do diário Vatan Rusen Cakir. “Pelo contrário, esta guerra vai tornar-se cada vez mais violenta, vai transformar-se numa luta de sobrevivência para cada uma das partes.”
Governo de combate
Os novos ministros nomeados por Erdogan são para um governo de combate, sem figuras que se lhe oponham, acusou Kemal Kilicdaroglu, o líder do CHP, o maior partido da oposição. Efkan Ala, o novo ministro do Interior, até agora subsecretário do primeiro-ministro e ex-governador da província de Diyarbakir (onde vivem sobretudo curdos), é um bom exemplo disso – é considerado o cérebro da repressão das manifestações da Praça Taksim.
“Não seria incorrecto dizer que, com esta nomeação [de Ala], Erdogan assumiu pessoalmente as rédeas dos assuntos internos”, disse à CNN Turk Sedat Ergin, colunista do jornal Hürriyet. Enquanto subsecretário do primeiro-ministro, Efkan Ala advogou o uso da força para dispersar os manifestantes que encheram as ruas de Istambul e outras cidades para protestar contra o autoritarismo de Erdogan, diz a Reuters, citando fontes políticas.
O responsável pelas negociações com Bruxelas para a adesão à União Europeia, Egemen Bagis, também sob suspeita de fraude e corrupção, foi substituído por Mevlüt Cavusoglu, um ex-presidente da assembleia parlamentar do Conselho da Europa, mas que é conhecido pelas posições antieuropeias, diz o Le Monde. Binali Yildirim, que há 11 anos detinha a pasta dos Transportes – e poderá estar sob suspeita, se avançar o inquérito sobre a Empresa Nacional de Caminhos-de-Ferro – foi também substituído. Para a Justiça foi escolhido Bekir Bozdag, um teológo islâmico cujas posições suscitam regularmente controvérsia, diz o jornal francês.