Mutilação dos olhos é um tipo de agressão bastante raro

As agressões oculares e genitais e a longa duração do crime sugerem que Carlos Castro pode ter sido morto durante uma crise de delírio do agressor. E pode ser inimputável. Texto publicado no PÚBLICO a 14 de Janeiro de 2011

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O crime ocorreu quando Renato Seabra (na foto) passava férias com Carlos Castro em Nova Iorque Lucas Jackson/Reuters

Na literatura científica, a mutilação dos olhos quase não é abordada. Francisca Rebocho, de 30 anos, especialista em crimes sexuais, doutorada na Universidade do Minho, deparou com um único estudo publicado em 1999, na revista Journal of the American Academy of Psychiatry and Law. E esse artigo baseia-se só em dez casos na Rússia e nos Estados Unidos.

"É um fenómeno extremamente raro. Deve haver outros dados, mas não estão tratados. Os dez casos são todo o universo que há, não são uma amostra. Isto diz-nos da raridade deste comportamento e do seu valor interpretativo", realça a psicóloga, especializada em perfis psicológicos e geográficos.

Nos dez casos (cinco dos agressores eram psicopatas, um tinha uma deficiência mental e os restantes quatro eram psicóticos), a equipa do russo Alexander Bukhanovsky, que incluía cientistas americanos, estudou a patologia mental dos agressores, a idade, o género, a motivação para o crime ou o instrumento usado: "Os resultados indicam que a mutilação dos globos oculares, extremamente rara, é mais frequente em ofensores psicopatas ou psicóticos, do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 20 e os 30 anos".

"Este tipo de mutilação surge na quase totalidade dos casos no contexto de um homicídio sexual, com uma motivação associada à raiva, sendo as armas de eleição instrumentos afiados. Em cerca de metade dos casos, ocorreu mutilação de outras áreas corporais", diz.

No caso do homicídio de Carlos Castro, de 65 anos, a 7 de Janeiro, os tablóides New York Post e New York Daily News adiantam que o modelo Renato Seabra, de 21 anos, com quem o cronista social passava férias em Nova Iorque, confessou a autoria do crime.

Avançam que, antes de o atacar, Renato Seabra ter-lhe-á dito: "Já não sou homossexual!" À polícia, justificou as mutilações dizendo que queria livrar-se "dos demónios, do vírus".

Ambos partilhavam um quarto num hotel em Times Square. Os amigos de Carlos Castro dizem que eles tinham uma relação sexual; a família de Renato Seabra nega que ele seja homossexual. No domingo, a polícia de Nova Iorque acusou-o de homicídio em segundo grau, uma vez que o crime não teria sido premeditado. O Gabinete de Medicina Legal de Nova Iorque só confirmou que a morte se deveu a "lesões por impacto brusco na cabeça" e "compressão na garganta".

A família, que já reconheceu o corpo, confirmou a mutilação dos olhos.

Os demónios e a psicose

A propósito dos demónios, a psicóloga frisa as conclusões do estudo de Bukhanovsky para os agressores psicóticos, ou seja, os que tinham uma doença mental que os desligou da realidade e os encerrou num mundo de delírios e fantasias. "Descreviam os olhos das vítimas como representações de demónios ou do mal, verificando-se a mutilação de outras partes do corpo. Como no discurso de Renato, os olhos são representações do demónio. Eventualmente, terá sido por isso que fez este tipo de mutilação."

Como é que a psicóloga vê, então, este homicídio? "Numa análise comportamental, este crime sugere uma clara motivação sexual e afectiva, com grande libertação de raiva. A duração sugere a libertação de uma raiva acumulada, dado que a maioria dos crimes motivados pela raiva é caracterizada pela breve duração", responde.

"O tipo de mutilação envolvida, associado à duração, a escolha de uma arma de oportunidade e a opção pelo estrangulamento como modo de matar são indicadores do que o FBI descreve como um ofensor desorganizado – na maioria dos casos, são sujeitos portadores de patologia mental severa do espectro psicótico." 

Renato Seabra poderá ter tido o primeiro surto psicótico, que acabou num crime violento. Estes doentes vivem num mundo diferente quando deliram, o que pode durar dias ou semanas, e nessa fase podem ser perigosos para si e os outros. "É como se tivessem umas lentes especiais para ver o mundo." Nos filmes, por vezes vemos doentes psicóticos com medo que os vizinhos lhes roubem os pensamentos. "E aparecem com papel de alumínio na cabeça", conta, explicando que há vários subtipos de psicose, como a esquizofrenia e a paranóide.

"O discurso de Renato Seabra acerca dos demónios parece corroborar a hipótese de surto psicótico, ainda que nada seja certo até uma perícia médico-legal avaliar as suas faculdades mentais", ressalva.

Às vezes, uma crise psicótica começa com alterações dos sentidos, que duram horas ou dias. Segundo a família do modelo, ele disse à mãe, ao telefone dos EUA, que a comida estava estranha. "Começam a sentir estranheza em coisas como a comida e os cheiros." Noutros casos, o surto é fulminante "e as pessoas ficam espantadas como aquilo aconteceu."

Portanto, os olhos de Carlos Castro podem ter representado o demónio para quem o matou. "Uma convicção delirante que associa a homossexualidade – vivenciada como algo negativo – a demónios é consistente com a mutilação dos globos oculares da vítima. São muitas vezes associados a representações demoníacas ou maléficas pelos homicidas psicóticos. Num homossexual em conflito consigo mesmo devido à sua orientação sexual, pode gerar-se um nível de tensão passível de desencadear um surto psicótico."

Por tudo isto, Francisca Rebocho considera "bastante provável" que o modelo tenha sofrido uma crise de delírio, até porque a literatura científica relativa à psicose e aos perfis criminais é unânime em relação aos crimes com as características deste. "Estes primeiros surtos tendem a surgir na faixa etária de Renato Seabra, e podem levar a crimes violentos, caracterizados pela bizarria e violência exacerbada, com presença relativamente frequente de mutilação dos órgãos genitais. Embora não seja a única hipótese interpretativa, face à informação disponível, parece-me uma hipótese plausível." E como Renato Seabra foi levado para uma instituição psiquiátrica, o Hospital Bellevue, para a psicóloga, isso pode ser visto como um indício de que as autoridades terão pensado tratar-se de um indivíduo psicótico.

Mas, como há excepções, pode ser um indivíduo normal que teve um acesso de raiva excessiva por alguma razão. Porém, há aspectos do homicídio de Carlos Castro que, se se confirmarem, não encaixam nesta hipótese.

"Geralmente, esses crimes são breves e não envolvem mutilação dos órgãos genitais. As pessoas acumulam muito stress e raiva, passam-se da cabeça e cometem um crime. Há violência extrema, mas abrange todo o corpo. Não é apontada a zonas específicas."

Motivação contrafóbica

Outra hipótese ainda é a mutilação dos órgãos genitais ter tido uma motivação contrafóbica em relação à homossexualidade. Ou seja, o agressor, um homossexual em negação ou em conflito interno quanto à sua sexualidade, fez tudo ao seu alcance para controlar esses impulsos. "Sentiu-se mal, acumulou raiva contra si e os outros homossexuais e, face a um acontecimento que induziu stress acrescido, cometeu o crime num acesso de fúria." Ou, ainda, pode ter tido uma motivação homofóbica.

Kim Rossmo, da Universidade Estadual do Texas, contou um exemplo desse comportamento a Francisca Rebocho, descrevendo-lhe uma cena de crime com um cadáver deitado no sofá, estrangulado, com os órgãos genitais amputados e inseridos na boca, os braços sobre o peito numa pose ritualista e cortes verticais na face. "Este crime resultou do avanço de um homossexual, a vítima, a um heterossexual, o agressor, ao ponto de o ofensor ir a casa da vítima e lhe amputar os órgãos genitais, como forma de neutralizar aquilo que percebia como uma ameaça. Introduziu-lhos na boca como forma de expressar repulsa pelas práticas sexuais homossexuais."

Embora mais inclinada para o surto psicótico, Francisca Rebocho diz que, se a patologia mental não for comprovada, poderá estar-se perante um indivíduo com uma atitude contrafóbica. Até porque, após o crime, terá dito que já não era homossexual, o que denotará um sentimento de libertação.

Também a duração do crime reforça a hipótese da psicose, na opinião da psicóloga, e torna pouco provável que o agressor seja psicopata. "Uma hora a bater num indivíduo não é um comportamento psicopata. Os psicopatas são instrumentais na maneira como cometem o crime: é para matar. Podem pretender torturar, mas é de forma sistemática e organizada. Neste caso, a mutilação foi grosseira."

Um surto psicótico pode tornar o homicida inimputável? "Pode. Se ficar provado que estava delirante durante o crime, não tinha consciência do que fazia, o que configura a inimputabilidade." Em vez da prisão, ficará num hospital psiquiátrico forense.
 

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