Reportagem: quem é que atirou a primeira pedra?

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A actuação da polícia está no centro da polémica Patrícia de Melo Moreira/AFP

Talvez estivessem demasiado exaltados para pensar nisso, mas os poucos manifestantes que permaneciam, ora de cócoras, ora de joelhos, a arrancar pedras da calçada em frente à Assembleia da República faziam-no com a ambição de um operário que gosta do seu trabalho.

A analogia não é assim tão descabida. Estabeleceu-se ali, a 15 metros do cordão policial, uma autêntica e espontânea linha de montagem, em que as pedras da calçada, prontamente arrancadas do chão, eram entregues a outros que as atiravam em direcção ao cordão policial e à Assembleia da República. Adequava-se a pergunta, com a dicção arrastada de Sérgio Godinho com José Mário Branco ao lado: “Que força é essa, que força essa, que trazes nos braços?”

Mas, talvez pela ausência de um maestro, nem todos os manifestantes cantavam a mesma canção. Alguns, primeiro de forma isolada e depois em conjunto, opuseram-se à expressão violenta adoptada por não mais do que 40 manifestantes. Um deles, subiu aos poucos degraus que o cordão policial ainda tinha poupado e gritou para os manifestantes: “Por favor, parem já com isso! Não lhes façam essa vontade!”. “Sai daí, palhaço!”, gritaram-lhe alguns dos manifestantes que tinham pedras nas mãos. “Se for preciso eu morro aqui, mas assim não!”, respondeu-lhes, sem efeito.

Nessa altura, faltavam 15 minutos para a polícia começar a carregar sobre os manifestantes. Já no dia seguinte, o subintendente da PSP de Lisboa, Luís Elias, referiu que a carga policial “foi precedida de avisos prévios aos manifestantes no sentido de repor a ordem pública e de deter os suspeitos da prática dos ilícitos criminais”. Foi também dada a ordem para os manifestantes abandonarem a zona e, não o fazendo, estariam a desobedecer a ordens da autoridade.

Ninguém ouviu o megafone a pilhas

Mas ninguém ouviu estes avisos, lançados por um polícia, um pouco abaixo do alto da escadaria da Assembleia da República, com o vão auxílio de um megafone a pilhas. Desde os poucos protestantes que atiraram pedras, aos ainda menos que os tentaram parar de forma activa, e sem esquecer a franca maioria de cerca de 5 mil manifestantes pacíficos, todos ficaram a saber destes avisos apenas quando chegaram a casa e ligaram a televisão – e não quando estavam prestes a serem sujeitos a uma carga policial que há muito tempo era coisa do estrangeiro.

Assim que a polícia avançou em força, as pessoas, que então permaneciam irredutíveis em frente à Assembleia da República, fugiram num pânico desenfreado, evacuando, em escassos segundos e num caos organizado, o largo de São Bento. As bastonadas, por norma acima da cintura, tornaram-se redundantes na tentativa de alcançar esse objectivo. Pelo caminho ficaram alguns manifestantes que a polícia já tinha identificado como violentos, recorrendo ao uso de agentes infiltrados, mas também idosos, como o PÚBLICO pôde constatar. Entre estes, um homem de 70 anos foi atirado ao chão e agredido em todo o corpo por agentes policiais durante dois minutos.

A fuga continuou para as ruas que envolvem São Bento, sobretudo na Avenida D. Carlos I, que, percorrida ao longo dos seus cerca de 800 metros, leva até ao rio Tejo. Não era, porém, a altura mais indicada para o fazer. Alguns manifestantes, sempre em minoria e ao mesmo tempo em evidência, puxaram contentores e ecopontos para a estrada e atearam-lhes fogo. O lixo não tinha sido recolhido na noite anterior, e a combustão foi rápida, fácil de mais. À medida que o grupo avançava, era erguida uma barreira de contentores flamejantes, que chegaram a ser cinco.

Lá atrás, o cordão policial descia a avenida, garantindo, à medida que avançava, que não ficava ninguém para trás. À frente, sempre à frente, a maioria corria. Uma senhora com mais de 70 anos e com uma muleta a ampará-la, perguntava serenamente a um bombeiro: “Como é que eu agora faço para ir para casa?”. Não teve uma resposta concreta, o bombeiro estava atónito com o que via. Um dos seus colegas, ao volante do camião, filmava a rua com o telemóvel, com o fascínio de quem olha para os efeitos especiais de um filme e se convence de que aquilo que vê é mesmo a sério.

”Claro que tínhamos de carregar”

Pelo caminho, um polícia achou necessário justificar ao PÚBLICO a carga policial que tinha acontecido há menos de uma hora. “O que é que estava à espera que nós fizéssemos? Estivemos a levar com pedras durante mais de uma hora, avisámos as pessoas de que ou paravam ou isto acontecia, e elas continuaram a destruir o imobiliário público. Claro que tínhamos de carregar. A culpa não é nossa, é de quem andou a votar sempre nos mesmos”. Perguntámos a outro agente se já estavam à espera disto. “Oh, claro!”, respondeu-nos, com um revirar de olhos de quem acha a pergunta escusada.

No largo Vitorino Nemésio, ao fundo da Avenida D. Carlos I e que dá lugar a um jardim, o cordão policial avança de forma dispersa quando repara que um dos seus estava deitado no chão, sem se conseguir mexer. Asseguraram a segurança do colega e, num grupo de cinco, talvez seis, repararam que estava um homem sentado num banco, a fumar um cigarro. Ficámos a saber, mais tarde, que era João Pires, sem-abrigo há oito anos. “Foste tu, nós sabemos que foste tu!”, gritaram-lhe os polícias, que não esperaram para ouvi-lo dizer que não tinha maneira ter deitado ao chão o polícia que, entretanto, estava a ser assistido pelo INEM. Foi agredido durante um minuto.

Falámos com João Pires à saída do largo Vitorino Nemésio, quando este ainda coxeava curvado, agarrando as costelas do lado direito com uma mão e uma sandes embrulhada em celofane com a outra. “Oh, amigo, porque é que me bateram, eu não tenho nada a ver com isto”, dizia, com a voz chorosa, aos polícias por quem passava. “Eu nem sabia que havia protesto hoje, não tenho nada a ver com isto, eu estava aqui nesta zona a arrumar uns carros para ganhar uns trocos, depois sentei-me para fumar um cigarro, mais nada”, contou ao PÚBLICO, que o acompanhou até ao prédio abandonado onde dorme e que agora tinha um cordão policial, mais um, junto à porta. “Oh, pá, querem ver que vou levar mais? Oh, amigos, eu não tenho nada a ver com isto, por amor de Deus”, lamentava-se.

Quem é que atirou a primeira pedra?

E, afinal, quem é que teve alguma coisa a ver com isto? Quem é que atirou a primeira pedra?

Não é fácil saber quem abriu as hostilidades entre os manifestantes e as forças policiais, mas ao longo de mais de uma hora de arremesso de objectos, sobretudo pedras, tornou-se mais claro quem os atirava.

Ainda que alguns estivessem de cara tapada e outros de mãos nos bolsos, alguns estivadores participaram na investida. Durante o desfile que os levou, juntamente com outros grupos e movimentos sociais, desde o Cais do Sodré até a São Bento, os estivadores vestiram uma camisola branca que os identificava enquanto grupo. Já em frente à Assembleia da República, e depois do discurso do secretário-geral da CGTP, o sindicalista Arménio Carlos, cada um tapou as tshirts brancas com outras camisolas, de forma a não serem facilmente identificados. Também com o rosto coberto, alguns jovens com símbolos anarquistas participaram de forma activa e ininterrupta na chuva de pedras atiradas contra a polícia.

Mas não foram os únicos. Também havia alguns homens e mulheres, cidadãos anónimos e sem qualquer aparente vínculo a movimentos sociais ou políticos, que num momento de pura catarse pegavam nas pedras que iam sendo retiradas da calçada e as mandavam contra o cordão policial, com insultos pelo meio.

A certa altura, um grupo de estivadores com pedras na mão interpela uma mulher de meia-idade, com roupas de marca passadas a ferro e um cabelo irrepreensivelmente tingido de grená. “Então, não quer atirar umas pedrinhas também?”, disseram-lhe, em tom de desafio.

“Porra, é o que mais me apetece, estes gajos não merecem outra coisa!”.

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