Duas garagens em Almada albergam futuro Museu da Música Mecânica

"Está a ver o som que isto tem?", desafia o coleccionador Luís António Cangueiro. E, por incrível que pareça, estamos mesmo a contemplar a voz das máquinas. São fonógrafos, gramofones, autómatos, realejos, bonecas que falam, uma imensidão de caixas recheadas de música que animaram os nossos antepassados entre 1760 e os anos 30 do século passado. Aqui, os sons também deliciam a vista. "Isto não é só aquilo que toca, é também a caixa, algumas de uma beleza extraordinária", elucida lembrando que "estão todas a funcionar".

Luís Cangueiro guia-nos pelo amontado de máquinas e caixas de música, quase 600, que tem guardadas em duas garagens em Almada. São o depósito do futuro Museu da Música Mecânica (MMM), a inaugurar no último semestre de 2014. As obras começam já no próximo mês na bucólica Arraiados, uma localidade campestre na freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela.

"Inicialmente era para ser uma pequena casa para guardar as peças e mostrá-las a amigos, mas quando a Câmara de Palmela percebeu o valor das peças incentivou-me a fazer um museu a sério", conta. Ficará localizado a pouco mais de meia hora da capital. "Em Lisboa os terrenos são caríssimos, enquanto que este já era meu, pois tenho outro hobby, os cavalos, e é lá perto de Pinhal Novo que tenho um centro hípico", justifica.

Cilindros, discos e bandas

Luís Cangueiro mexe nas máquinas com a mestria de um relojoeiro. Mostra-nos pássaros cantores. Se fechamos os olhos ouvimos claramente um pássaro a cantar, se os abrimos vemos o movimento de uma pequena ave. "Repare que é todo o pássaro que se move, tudo isto é um mecanismo", desvenda.


A magia dos sistemas que produzem o som é imensa. "Tudo isto tem um encanto, porque todas as peças são diferentes, mesmo as que apresentam a mesma tipologia. Os fabricantes competiam entre si para fazer o instrumento mais belo e mais inovador, mesmo que o sistema usado fosse o mesmo", elucida o fundador do futuro museu dos três emes.

E que sistemas são esses? Os cilindros de madeira, por exemplo, eram movidos rodando uma manivela e activavam várias peças, tais como um Gem Roller Organ de 1887 para se ouvir 39 segundos de Auld Lang Syne, uma conhecida canção tradicional inglesa de Ano Novo, ou um piano bastringue que toca sozinho a valsa Douce Risette.

Os cilindros de metal são usados nas caixinhas de música. A Edellweiss (peça do final do século XIX) usa um disco de metal para ressoar 63 segundos de um excerto de La Fille de Madame Argot, uma ópera cómica criada por Charles Lecocq em 1872. Já o Coelophone Orquestre, uma peça francesa de 1884, prefere uma simples banda de cartão. E o gigantesco Seybold, que junta um piano, um acordeão e um tambor numa mesma peça, é capaz de animar uma sala com Mimi d"Amour usando um frágil rolo de papel.

"Isto é único, sabe?", aponta Luís Cangueiro sempre que fala de peças raras. É o caso de um fonógrafo com 14 auscultadores, do Maestrophone de 1910 - que faz girar o disco com um motor de ar quente alimentado a álcool - ou do Multiphone fancês de 1914, um exemplar de jukebox com moedeiro, sendo um dos primeiros aparelhos a oferecer a escolha do disco.

As peças destinavam-se a salões de dança ou para uso em família, havendo até bonecas falantes e outros brinquedos para crianças. No acervo está também um exemplar de fonógrafo de secretária destinado a registar cartas para mais tarde ouvir ou transcrever. "Havia famílias que se deixavam fotografar ao lado dos aparelhos. Consegue imaginar alguém nos dias de hoje que se fotografe ao lado de uma televisão?".

Para Cangueiro, estas peças "são elementos vivos por nos transmitirem a sua sonoridade através dos cilindros de cera e dos discos de ebonite, imortalizando a voz e a melodia de artistas de gerações passadas".

Maldito aeroporto

"Já são praticamente 11 anos desde que tive a ideia de fazer o museu", queixa-se Luís Cangueiro. "As dificuldades de ordem burocrática foram imensas, mas o maior atraso deveu-se aos dois anos de medidas preventivas do novo aeroporto de Lisboa. Só quando as medidas foram levantadas é que o projecto pôde seguir". Apesar disso, faz questão de elogiar a autarquia: "A Câmara de Palmela tem sido excepcional, o problema é outro, com a burocracia tudo leva anos a fazer-se em Portugal".


O coleccionador tem agora 70 anos e passou os últimos trinta a reunir a colecção, que nem sabe bem como começou. "O primeiro contacto que tive foi na minha infância em Mirando do Douro. Nasci ao lado de uma caixa de música. Aos sete anos encarreguei-me de a destruir para ver o que estava lá dentro", recorda.

O mirandês, natural de Prado Gatão, tem lições de órgão e acordeão. Em 1962, entra na Faculdade de Letras, em Coimbra, onde se licencia em Filologia Clássica. Lá integra também o coral. "Estive sempre ligado à música e aos instrumentos", lembra. Como alferes miliciano de cavalaria, é mobilizado para Moçambique, em 1969. Em 1977, é já professor efectivo na Escola Técnica Emídio Navarro, em Almada, ensinando Latim, Grego, Português e Literatura Portuguesa.

No início dos anos 80 chega a veia empresarial, sendo um dos pioneiros da indústria de cartazes publicitários em outdoors. "Foi com a minha actividade empresarial que reuni os recursos para adquirir a colecção", revela. Uma compra de circunstância foi o rastilho para o início da aventura. "Hoje já sei distinguir as peças autênticas, mas no início tive de aprender com os antiquários franceses", evoca. Tem uma ficha por cada compra, mas nunca fez as contas ao que gastou porque interessa-lhe mais "o gosto artístico, estético e sentimental do que o contabilístico".

Em 1989 abandonou o ensino. Desde então divide-se entre os interesses empresariais, os cavalos e, claro está, a sua colecção.

Autarquia satisfeita

A Câmara Municipal de Palmela tem uma expectativa alta em relação a MMM, quer ao nível do turismo quer para atrair investigadores na área da música. "A procura vai ser grande, pois o futuro museu terá peças únicas e muito raras a nível europeu", espera o vereador Adilo Oliveira Costa, responsável pela Cultura e Tempos Livres. Destaca "o carácter lutador de Luís Cangueiro". "Os mirandeses são conhecidos por não desistirem e esta é a vitória da perseverança", elogia.


"É o reconhecimento do estímulo que temos dado às actividades ligadas à musica", refere a presidente da câmara, Ana Teresa Vicente. O concelho tem filarmónicas muito antigas: Os Loureiros, fundada em 1852, a Humanitária, de 1864 e a União Agrícola (Pinhal Novo), cuja história remonta a 1896.

A autarquia tem um protocolo com o MMM para que as crianças do concelho possam visitar o museu e ter aí actividades pedagógicas. Miúdos e graúdos podem ir ouvindo alguns destes sons da memória da humanidade no site oficial do MMM, enquanto esperam pela conclusão das obras. "O museu, esse, já ninguém o pára", conclui Cangueiro.

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