Vergonha foi a palavra mais escrita no Facebook de Passos Coelho

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Foto: Nuno Ferreira Santos

“Vergonha”, “pobre” e “coragem” foram as três palavras mais repetidas nos comentários escritos no Facebook de Passos Coelho num intervalo de nove dias. Nesse intervalo de tempo, entre 8 de Setembro (dia da publicação da mensagem) e 17 de Setembro (dois dias depois das manifestações de dia 15, que reuniram dezenas de milhares de portugueses nas ruas), foram escritos 51.566 comentários em reacção à mensagem que o primeiro-ministro assinou como “Pedro” e no qual disse ter feito “um dos discursos mais ingratos quem um primeiro-ministro pode fazer”. Até hoje já foram quase 78 mil comentários a essa mensagem que se seguiu ao anúncio da intenção de aumentar as contribuições dos trabalhadores para a Segurança Social. A medida acabou por não avançar depois de muitas críticas e de uma reunião do Conselho de Estado em que o Governo foi convidado a explicar-se. Já os comentários no Facebook continuaram a crescer. Uma equipa de investigadores, no âmbito de um projecto em jornalismo computacional, extraiu as reacções e fez uma lista com as 50 palavras mais repetidas.

Com base nessas palavras, foi desenhada uma “nuvem” dinâmica, na qual os vários termos surgem dentro de bolhas com um tamanho maior ou menor, consoante o número de ocorrências da palavra. Quanto mais vezes foi escrita, maior é o tamanho da bolha. “Sacrifício”, “mentiroso”, “desemprego”, “pior” ou “fome” estão dentro das maiores bolhas; “merda”, “poleiro”, “lata”, “equidade”, “cambada” ou “democracia” nas mais pequenas.

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Catarse ou retrato?
A análise passou por duas fases. “A extracção de comentários recorreu à Graph API do Facebook, que disponibiliza métodos para recolher posts públicos e os respectivos comentários”, explica Eduarda Mendes Rodrigue, professora no Departamento de Engenharia Informática da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e investigadora do projecto REACTION, que desenvolveu o trabalho.

Depois foi aplicado um léxico de sentimento, desenvolvido no âmbito do mesmo projecto. “É possível visualizar a polaridade de cada expressão de sentimento no léxico, premindo o botão do rato sobre cada uma das bolhas”, explica Paula Carvalho, linguista e investigadora do INESC-ID. “A cor verde está associada aos termos classificados como positivos e a vermelha aos termos classificados como negativos. Não se procedeu a qualquer análise sintáctica ou semântica, pelo que as expressões podem não veicular sentimento ou veicular um sentimento diferente daquele que têm no léxico”.

São várias as leituras possíveis de fazer a partir destes resultados: desde a simples constatação sobre o peso e significado de cada palavra, até à análise mais alargada sobre o que podem dizer da sociedade de hoje. Procurámos juntar outras opiniões a este trabalho, como a de Mário Soares, José Gil, Eduardo Lourenço ou Mário de Carvalho que, por falta de disponibilidade, não responderam.

Na opinião de António Costa Pinto, politólogo, é “perfeitamente possível” fazer um retrato da sociedade a partir daqui. “Vergonha, pobre e desemprego são dos núcleos mais fortes: o desemprego a aumentar e o cenário de pobreza. É uma sociedade que sente esse empobrecimento e a ameaça do desemprego”.

A palavra “vergonha”, defende o politólogo, tanto é usada como crítica (como é evidenciado na expressão “falta de vergonha”), como para dizer “eu estou com vergonha”. Ligados a esta palavra, diz Costa Pinto, estão outros elementos como a “mentira”, lembrando a “contradição entre a campanha eleitoral e a prática governamental”.

O que diz um escritor?
Do ponto de vista de um escritor – dado que escolhe, conjuga e articula palavras diariamente no seu trabalho – há algo a dizer sobre a dimensão e peso dos termos mais repetidos. “Creio que, nestes comentários a Passos Coelho, a palavra ‘vergonha’ deve ter sido antecedida com frequência pelas palavras ‘falta de’”, comenta José Luís Peixoto, destacando que a acção de Pedro Passos Coelho deu origem a vários tipos de vergonha.

“Vergonha por terem votado nele, vergonha do tipo de políticos que continuamos a considerar com perfil para governarem este país ou, também, aquela vergonha que se sente em lugar dos outros, a chamada ‘vergonha alheia’”. Mas há ainda a utilização de substantivos que correspondem a valores essenciais, como coragem, segurança, dignidade, justiça, respeito, diz o escritor. “Sinto que, neste momento, a maioria dos portugueses, muito provavelmente uma grande parte daqueles que se abstêm eleição após eleição, estão a reflectir sobre a própria raiz de toda esta situação e, ao fazê-lo, tocam aquilo que é a essência de qualquer discussão, de qualquer reflexão: os valores”.

A opinião de João Duarte, CEO da agência de comunicação YoungNetwork, é diferente. “Acho que não dá para fazer um retrato da sociedade. É um desfasamento da realidade porque o perfil das pessoas que estão no Facebook é uma amostra que não reflecte os dez milhões de portugueses”.

O que a política inspira
Já de um ponto de vista psicológico, há quem veja nestas palavras “as preocupações e emoções relacionadas com o que foi anunciado: a ideia do sofrimento e dos sacrifícios só para alguns. Fala-se em ‘equidade’ por essa razão: pela falta de equidade”, comenta Isabel Menezes, psicóloga e docente na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) “É curiosa também a referência à “coragem”, tanto pela positiva como pela negativa. Em geral, é um discurso emocionalmente carregado, mas é isso que a política inspira”.

Para quem estuda a participação política através dos novos media, estes foram comentários “espontâneos, honestos e imediatos”. Cláudia Lamy, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL), destaca a personalização feita à volta do primeiro-ministro. “As pessoas utilizaram aquele perfil para irem directamente a quem personifica o Governo. É um desabafo, é dizer à pessoa o que se pensa dela. Funciona como uma catarse, que não é conseguida através de outros meios”.

Um diálogo ilusório
Deixar um comentário directamente na página do primeiro-ministro transmite uma sensação de capacidade de expressão, intervenção e participação políticas. “Nas redes sociais, as pessoas sentem-se muito escutadas. É algo diferente de assinar uma petição”, comenta Isabel Menezes. “A maior parte das pessoas sente um diálogo, que é ilusório, mas tem feedback com o que as outras pessoas comentam. Isso dá um sentido de eficácia e leva a dizer: ‘eu posso fazer alguma diferença com a minha acção’”.

A necessidade de um feedback a essa iniciativa é defendida por Sam Gosling, psicólogo e professor na Universidade do Texas em Austin, que tem desenvolvido estudos sobre a personalidade e comportamento dos utilizadores das redes sociais. “As pessoas podem acreditar num sistema [político], mesmo que o resultado não favoreça os seus interesses, se acharem que esse sistema é justo. Por isso, sistemas transparentes que não pareçam favorecer uns em detrimento de outros podem conseguir apoio da comunidade. É claro que isto não funciona se quem comenta se sente ignorado”, disse ao PÚBLICO, por email. Quanto ao feedback, Sam Gosling diz que pode ser uma simples resposta, “a publicação no Facebook de um resumo dos comentários e uma resposta geral” ou uma mudança política.

João Duarte foca o mesmo ponto: a importância da interactividade quando se está a falar da gestão de uma página no Facebook. “É claro que não é o primeiro-ministro que gere a página, mas as redes sociais ainda são usadas como se fosse mass media, sem preocupação com a interactividade”, refere. “Claro que não é possível responder um por um, mas pode haver uma reacção. Pode haver um feedback explicativo”.

O que vale a democracia tecnológica?
Mesmo sem resposta, a emoção é um catalisador da mobilização, lembra Isabel Menezes, associando-se também a uma sensação de poder individual. “Uma das diferenças significativas do impacto das redes sociais e da democratização da comunicação é o aumento da participação”, comenta António Costa Pinto. Essa participação é um sinal positivo, destaca o politólogo, sobretudo tendo em conta que Portugal tem um dos índices mais baixos de participação cívica e política, quando comparado com outros países europeus, de acordo com dados da European Social Survey. “A democracia tecnológica aumentou os canais de mobilização da sociedade”, conclui.

Como foi sublinhado pelo CEO da YoungNetwork, e referido pelos outros especialistas, é preciso não esquecer que só uma parte da população usa internet e, em particular, as redes sociais. E, segundo dados do relatório de 2012 do Observatório da Comunicação (A Internet em Portugal), 43 por cento dos agregados domésticos, em 2011, não tinham acesso à internet. Dos internautas, 73.4% usam as redes sociais; e, dentro desse universo, 97.3% usam o Facebook.

“Estas são pessoas informadas e que participam, embora nem todas as pessoas que têm perfil no Facebook participem”, descreve João Duarte. Há pessoas de todas as idades ainda que o intervalo dos 15 aos 40 anos englobe os utilizadores mais activos. Também Isabel Menezes sublinha um aumento da participação cívica e política dos jovens, “contrariando o discurso e a ideia de que temos um problema com os jovens e a sua ligação à Política”. A investigadora explica que “o que há é um declínio das formas convencionais de participação política”.

António Costa Pinto lembra que a iniciativa de deixar um comentário já significa algum capital social e margem de activismo. “Essa pessoa tem uma maior probabilidade de participar numa manifestação”. Uma das opiniões é a de que esta foi uma manifestação online, em oposição à manifestação física (offline) do dia 15 de Setembro. O que têm em comum? Muitas das palavras escritas no Facebook coincidem com as dos cartazes da manifestação nas ruas ou as que se ouvem numa conversa de café. E de diferente? A ausência de contacto físico, como sublinha Isabel Menezes; e a capacidade de cada um “ter a sua voz própria” no Facebook, na opinião de Cláudia Lamy.

José Luís Peixoto sublinha a “impotência” que pode ser sentida quando as pessoas começam a reflectir sobre a raiz da situação actual. “Daí a presença de uma família de palavras que, creio, está muito menos representada neste contexto do que nas conversas quotidianas dos portugueses”, afirma. “Talvez a razão seja o formalismo e a boa educação que mantemos na escrita. Refiro-me a palavras como: merda, cambada, chulo, gatuno, palhaço, entre outras. Em Portugal, a falta de hábito faz com que exista um certo choque quando se vê esse tipo de palavras escritas. Já no que toca a dizê-las, não há qualquer tipo de pudor”.

A mensagem foi um risco, não um erro
Pensar que a mensagem de Passos Coelho, ao ser publicada no Facebook, foi na verdade dirigida só aos utilizadores das redes sociais é um erro, afirma o CEO da YoungNetwork. “A mensagem passa para os mass media. Aliás, muitas das coisas passam das redes sociais para os mass media”. É aí que se dá o maior impulso na difusão da mensagem.

Os comentários foram negativos na sua maioria, algo difícil de evitar não pela forma ou tom da mensagem escrita no Facebook, defende João Duarte, mas pelo teor do anúncio que tinha sido feito pelo primeiro-ministro. “Esta mensagem no Facebook usa um tipo de discurso e proximidade que não fazem sentido. Mas esse é um erro menor. O principal erro era a mensagem de fundo”.

Mas quando se gere a página de um político no Facebook há regras a seguir. “Primeiro, tem de haver um objectivo. Segundo, é preciso saber qual a estratégia ou o plano para atingir esse objectivo. Terceiro, saber qual o tipo de mensagem que se escreve. Quarto, saber o que é que se diz e o que é não se pode dizer”, diz João Duarte.

Se foi um erro publicar esta mensagem? “Não foi um erro, foi um risco”, responde António Costa Pinto. “Assim permite-se à cidadania a expressão da sua opinião”. Cláudia Lamy acrescenta que vale a pena o risco. “Nem que seja pelo simbólico da presença e pela ideia da proximidade”.

Da visualização desta nuvem fazem parte outras componentes. É mostrado o contexto de utilização de cada palavra, através de exemplos de comentários de utilizadores com perfis públicos. E é também apresentada uma linha temporal que permite perceber as várias ondas de reacção e a evolução do fluxo de comentários, tanto nos dias que se seguiram à publicação da mensagem, como após a manifestação do dia 15.

Esta análise resulta da colaboração de equipas da Universidade Técnica de Lisboa (INESC-ID), da Universidade do Porto (FEUP e LIACC), do Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ), dos Labs Sapo (UP e Picoas) e do PÚBLICO, no âmbito do projecto REACTION, apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), ao abrigo do programa UTAustin-Portugal.

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