"Viemos para controlar o tráfego. Pela liberdade"
Foi há cinco dias. Vinha do lado do hospital, com cinco homens lá dentro, a dispararem as metralhadoras pelas janelas. Abdusalam e os companheiros do comité despejaram os carregadores em cima deles. Ainda se vêem os buracos por toda a carroçaria, os vidros estilhaçados, os pneus rebentados. A pick-up ficou descontrolada, embateu num rail, depois num muro, cravou-se noutro carro, mesmo à entrada da Rua Madar, no bairro de City Musry.
Os cinco homens saíram a correr, embrenharam-se nas ruas, disparando em todas as direcções. Abdusalam e os outros nove elementos do comité cercaram-nos, tomaram posições, apontaram. Três dos agressores caíram mortos. Os outros dois ficaram feridos e foram levados para o hospital.
A pick-up é agora um dos elementos cénicos do checkpoint, juntamente com o outro carro destruído, chapas de zinco, pneus, e o espantalho Mushof Shufa. Este é um adereço comum a muitos checkpoints. Mushof Shufa, a personagem de cabelos encaracolados de um programa de televisão para crianças, é a alcunha de Khadafi.
Abdusalam al-Mizdaoui, de 52 anos, contabilista, está hoje outra vez de piquete à entrada da Rua Madar. Parece que os problemas surgem sempre no seu turno. Pela manhã, um Mitsubishi Lancer azul-metalizado foi atingido por um sniper de uma janela qualquer do edifício oposto ao hospital. O carro está parado, crivado de balas e tingido de sangue, junto ao ponto de encontro do piquete. O condutor e o passageiro já estão no hospital do bairro.
"Eram civis, pessoas normais, que iam a passar, nem sabemos de onde eram", diz Abdusalam. "Essa gente vem nos carros e dispara contra qualquer um. Não sei o que pretendem. Não consigo entender".
Um mapa de turnosAbdusalam é o líder do piquete que está a guardar City Musry neste momento. Entrou às 6h, sairá ao meio-dia. Outros dez elementos preencherão o turno seguinte, das 12h às 18h. Na parede de uma casa está afixado o mapa dos turnos. Os nomes dos que entram e saem, de seis em seis horas, durante 24 horas por dia. Cada piquete é composto por dez homens, todos moradores do bairro e armados com metralhadoras ou, nalguns casos, artilharia pesada.
A organização da segurança local, desde o dia 21, foi concebida e explicada na sede que o Conselho Nacional de Transição (CNT) montou em cada bairro. Praticamente toda a cidade está coberta por esta rede, à excepção das zonas ainda não totalmente controladas pelos rebeldes.
São montados checkpoints, com parafernália sugestiva e pitoresca, que inclui cadeiras e mesas, sofás, carros capotados, pneus, arame farpado, espantalhos, e cidadãos armados fazem a ronda em cada quarteirão.
Nalgumas zonas, ex-polícias estão a ser chamados para treinar os voluntários, ou chefiar os piquetes. Mohamed era coronel da polícia em Trípoli. Fez de tudo: comissões no deserto, rondas nas ruas, esquadra e até segurança nas praias. "Khadafi era muito esperto. Nunca deixava que um agente ficasse muito tempo num lugar. Quando começava a habituar-se, a ter amigos, a sentir-se confiante e a perceber as coisas, era transferido".
Mohamed nasceu em 1967. "Tinha dois anos quando chegou o Khadafi. Não me lembro de como era antes". Na polícia, cumpria ordens. Agora, sente que tem mais liberdade. "O trabalho que estou a fazer é útil. Faço com prazer, porque quero ajudar o meu país. Quero ajudar as pessoas. Dantes, sentia que trabalhava para um estranho".
Mohamed está integrado num piquete, no bairro de Ashour. O CNT já se instalou, numa escola, e começou a trabalhar. A primeira medida foi criar comités de segurança. O sistema é o habitual: grupos de dez homens, revezados de seis em seis horas. Mas cada grupo é composto por três piquetes mais pequenos, um com quatro homens e dois com três. A chefiar a equipa, um polícia. Neste caso, Mohamed, que dá instrução e treino.
"Treinado para falar""Todos aprendemos a manejar armas na escola", diz Ramadan Ali Ben Alhaje, de 27 anos, camuflado, lenço na cabeça, botas e metralhadora FN. "Mas agora tivemos um treino mais completo, também de tácticas e gestão de conflitos. Durante vários dias, estive num campo em Nalut".
Ramadan é emigrante na Suécia. Vive há cinco anos em Estocolmo, mas decidiu regressar para ajudar a revolução. Chegou este mês, dir-se-ia que expressamente para a conquista de Trípoli. "A minha função especial no piquete é evitar vinganças. Se encontramos traidores, prendemo-los, tratamo-los bem, e mantemo-los detidos, para mais tarde serem julgados".
Há dois dias, Ramadan deu com dois snipers num edifício. Podia ter tentado atingi-los, mas optou por se aproximar, o suficiente para que eles o ouvissem. "Fui treinado para isso. Falar, convencer, prender. Não matar".
Os snipers eram do Mali, e tinham sido pagos para vir combater, embora não soubessem contra quem. Foi isso que disseram. Ramadan garantiu-lhes que nada lhes aconteceria se se entregassem, excepto um julgamento justo, em que poderiam explicar-se. Os outros acreditaram."Eu quero tomar conta das pessoas", diz Ramadan. "Vê-las a sorrir, confiantes".
Apesar da eficácia dos piquetes, o CNT pediu ontem a todas as forças de segurança do país que voltassem ao trabalho. Responderam ao apelo alguns polícias de trânsito. Na Praça Verde, agora chamada Praça dos Mártires, compareceram pelo menos quatro agentes, orgulhosamente fardados. Dois tenentes-coronéis de sorriso em riste, com os seus galões, Mahmoud Ali e Khalifa Amar, e dois polícias com a farda de gala, imaculadamente branca, Mohamed Sagr, de 23 anos, e Khaled Salem Abugamja, de 50. Um baixo e magro e outro alto e gordo. "Viemos para controlar o tráfego", explicou o maior. "Pela liberdade".
No meio da praça, coberta de carcaças de carros queimados, lixo, vidros partidos, um mar de destroços e um tapete de balas no chão, várias pick-ups faziam piões e derrapagens a velocidades loucas, mas os polícias não se importaram.