O massacre na quinta dos camelos

Havia ali uma quinta onde gostavam de ouvir música alto. Era isto que os vizinhos pensavam. Calculavam também que fosse um matadouro de camelos, porque viam os animais entrar, e por vezes ouviam tiros. Mas a maior parte do tempo só se ouvia a música, canções de apoio a Khadafi, em altos berros. Achavam estranho, mas não protestavam.

"A música vinha de uma casa que fica ao lado da quinta", recorda Mohamed Hussein, de 24 anos, que vive a menos de 100 metros, na mesma rua da povoação de Kellet Ferjan, na saída sul de Trípoli. "Punham a música muito alto, como se fosse numa festa numa praça, ou num comício". Nenhum dos vizinhos tinha coragem de dizer nada, porque viam homens fardados entrar na quinta, que se situa não longe do gigantesco complexo da Brigada Khamis, a mais temida unidade militar de Khadafi, comandada pelo seu filho Khamis Khadafi. "Nas últimas semanas vimos vários veículos militares entrar e sair", diz outro vizinho, Sofiane Abrahim Asker, de 20 anos. E outro ainda, Rabia Atia, de 21 anos, diz que a quinta não era murada até há uns meses. "Tinha apenas uma cerca. Mas em finais de Janeiro, ou princípio de Fevereiro, construíram o muro".

Antes, portanto, de ter começado a revolta em Bengazi. Mas depois das revoluções na Tunísia e Egipto. Algo se passou nessa altura, na quinta dos camelos.

Agora os portões estão abertos e os vizinhos vieram ver o interior da quinta. O recinto, rodeado por um muro de adobes brancos, não é muito grande. O suficiente para manter alguns camelos e dois barracões, semelhantes a garagens, para guardar alfaias agrícolas e veículos. Em frente dessa espécie de garagens está de facto um veículo estacionado, um carro celular azul escuro. Do outro lado do terreno há um carro destruído, e, mais à frente, dois bulldozers perto do grande buraco no chão que terão escavado.

Parece que houve obras ali. Ou um acidente qualquer, que tivesse obrigado as pessoas a sair à pressa. Um incêndio, a julgar pelo aspecto das garagens. Mas não. O cheiro é o primeiro indício do episódio inominável de que este lugar foi cenário.

Porque os factos, e a sua evidência, não surgem à primeira vista. O cérebro humano tem dificuldade em interpretar uma realidade como esta. Percebe-se primeiro através do instinto. Que nos manda recuar, fugir.

"Eu estive ali dentro"

O veículo azul tem dez celas minúsculas, com um assento de ferro, onde apenas cabe um homem sentado e imóvel. Na primeira cela está ainda uma garrafa com urina e uma lata com fezes. As garagens estão ambas calcinadas, e dentro de uma delas o chão está coberto de ossos. Caveiras, fémures ao alto, costelas espetadas, rodeadas de cinzas que se levantam com a brisa que entra. São corpos humanos queimados. É possível contar pelo menos 50.

"Eu estive ali dentro", diz um homem de túnica branca muito suja, apontando para a garagem. "Consegui fugir". Nader Naily, de 34 anos, é comerciante. Não sabe por que foi preso. Talvez porque o irmão foi detido antes, com uma arma para a qual não tinha licença.

Nader foi metido no veículo azul, onde foi deixado quatro dias, sem comer nem beber. "Vinham outros prisioneiros, e alguns morreram, com sede e falta de ar. Mas eu gritei e chorei tanto que me tiraram. E levaram-me para ali". Para a garagem. Ficou lá três dias, com mais cerca de 150 pessoas.

A garagem tem uma porta metálica, que está perfurada de balas. Nader avança até lá, a coxear, e conta o que se passou. Nos últimos meses, a quinta estava a ser usada para deter suspeitos de implicação na revolta contra Khadafi.

Acabar com testemunhas

Quando os rebeldes entraram em Trípoli, há uma semana, a grande batalha que tiveram de travar foi com a Brigada Khamis. Venceram, e os militares do regime foram obrigados a fugir. Antes de saírem da quinta dos camelos, os seus guardas decidiram-se por uma última e atroz diligência: lançaram quatro granadas para dentro da garagem. A seguir, dispararam rajadas de metralhadora contra o portão de ferro, para acabar com quem ainda estivesse vivo.

Alguns homens no interior tentaram arrombar a porta a pontapés. Um dos guardas abriu-a e disparou contra a massa humana. Um grupo de prisioneiros fugiu em direcção aos muros em frente. "Eu corri em direcção àquelas casas", conta Nader. "Eles começaram a disparar contra nós. Quase todos foram atingidos e morreram", diz, apontando para os corpos já em putrefacção caídos no terreno, e que uma equipa de voluntários, usando máscaras antigás, começou já a remover. "Fui atingido numa perna, mas consegui saltar o muro, e passar para os quintais daquelas casas. Eles vieram atrás, e mataram alguns. Eu consegui chegar a um jardim e escondi-me lá durante dois dias".

Entre 10 a 15 fugitivos sobreviveram. Os outros ficaram ali, atingidos por balas ou meio desfeitos pelas granadas. Os guardas, segundo alguns vizinhos, saíram, mas voltaram horas depois, para terminar a operação. Colocaram pneus a arder na garagem, para que os corpos fossem reduzidos a cinzas, e abriram a vala, com os bulldozers, para enterrar os corpos que ficaram pelo chão.

Um outro vizinho, que não quer ser identificado, diz ter informações de que este não foi o primeiro massacre na quinta dos camelos. As matanças ocorriam com regularidade, e a música servia para abafar o ruído dos disparos. Outras valas comuns foram abertas em várias ocasiões, e bastará escavar em vários pontos da quinta para encontrar mais corpos.

Sugerir correcção
Comentar