"Queremo-lo vivo para que veja o que está a acontecer"

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As pessoas voltaram a sair à rua, incluindo mulheres e crianças Foto: Filippo Monteforte/AFP

Numa parede, um graffiti diz: "So far so good". Até agora tudo bem. Numa semana, a cidade encheu-se de frases e desenhos. Caricaturas, palavras de ordem, insultos, mas principalmente piadas. Nos checkpoints, um carro pára e um homem de Kalashnikov pergunta: "Onde está o Bushof Shufa?" E desatam a rir, antes dos procedimentos normais, de pedir identificação e revistar a bagageira. Bushof Shufa é o boneco animado da televisão, de cabelo encaracolado, que se transformou na alcunha de Khadafi. Há Bushof Shufas com cara de Khadafi desenhados por todo o lado. "Onde está o Bushof Shufa?" é a graçola que conquistou Trípoli.

Cada dia que passa, os checkpoints tornam-se mais sofisticados. Já não são só sofás, espantalhos e carros queimados. Agora, há quem traga secretárias, armários, vasos com plantas. Há quem monte verdadeiros escritórios na rua. Todas as esquinas de cada bairro têm checkpoints, operados por habitantes locais, organizados em piquetes que se revezam num sistema de turnos de seis horas.

Estes piquetes, em contacto e coordenação com as estruturas do Conselho Nacional de Transição (CNT), são agora a autoridade na capital. E, de dia para dia, tornam-se mais "civis", menos "militares". De facto, sempre foram civis, mas a sua atitude era agressiva e desconfiada. Agora, apesar das armas, estão afáveis e solícitos.

Uma atitude de responsabilidade nasceu entre estes homens (alguns deles rapazes) que tomam conta dos seus bairros. Parecem surpreendidos com a sua capacidade. Independentemente da idade que têm, sentem que atingiram, há uma semana, a maioridade.

Cidade está a acordar

Aos poucos, a vida volta ao normal em Trípoli. É certo que, em 70 por cento da cidade, não há água nas torneiras. Os porta-vozes do CNT garantem que a situação ficará regularizada em breve, e falam em problemas técnicos de condutas e bombas, mas sabe-se que as principais fontes de abastecimento de água potável se situam no Sul do país, em zonas ainda controladas pelas forças leais a Khadafi. O corte da água não é uma questão técnica, mas militar.

A electricidade também falha na maior parte da cidade. Mas muitas lojas abriram. Algumas casas de pronto-a-vestir, outras de electrodomésticos e produtos electrónicos, cabeleireiros, alguns mercados de rua. Cafés e restaurantes estão fechados.

As pessoas voltaram a sair. Incluindo mulheres e crianças. Ouvem-se tiros, mas, todos garantem, são de celebração. Uma loja de roupa feminina exibe na montra vestidos, túnicas, lenços, tudo nas cores da nova bandeira da Líbia. Moda rebelde. Grupos de jovens limpam as ruas.

Parece que a cidade está a acordar. A iniciar uma nova vida, num universo paralelo. Dois milhões de pessoas a nascer.

No grande mercado ao ar livre de Ben Ashour, voltaram a vender-se legumes e fruta, ainda que os preços tivessem subido para o dobro. Um quilo de tomates custa o equivalente a três euros, a batata, 1,75. Maçãs e bananas custam 4 e 5 euros o quilo. Há grande azáfama, pessoas a comprar pimentos e cebolas, beringelas e melancias. E também lanternas e pilhas.

Carros, transportando famílias inteiras, fazem fila para estacionar ao lado das bancas. Outros circulam, numa confusão cada vez mais próxima do que são os engarrafamentos normais de Trípoli, buzinando e metendo-se na contramão. Crianças debruçam-se nas janelas e acenam, ou agitam bandeiras. Uma mulher segue sozinha, com passadas rápidas, de túnica e lenço, mas reparando bem vê-se que vai a cantar.

"Quando apanharem o Khadafi, não quero que o matem", diz Omar Salim Khalifa, 57 anos, piloto da aviação civil. "Quero que o mantenham vivo, para que ele veja o que está a acontecer". Omar não é o único a pensar assim. Ao contrário do que se poderia esperar, muitas pessoas não querem que Khadafi morra, nem que fuja para o exílio. Querem mostrar-lhe que afinal são capazes. Que podem viver livres.

Dir-se-á que subsiste algum afecto nesta atitude. Mostrar ao ditador que ele estava errado. "Quero que ele compreenda", diz Omar. Mas talvez se trate de pensamento mágico, em cuja lógica a liberdade teria de ser encenada em frente do amo, que a aceitaria. Pensamento humano e irracional. "É claro que ele nunca vai compreender", admite Omar.

"O islão recusa a vingança"

Nas mesquitas, os fiéis não deixaram de cumprir as horas da oração, nem nos dias críticos da chegada dos rebeldes. Em algumas, como na de Jamabagui, há água, comida e roupas para distribuir. "O islão é solidariedade", diz o imã de Jamabagui, Hadi Mohamed Komati. Principalmente nas alturas de crise. E reconciliação. Tal como, nos últimos meses do regime, os imãs faziam discursos contra os rebeldes, apelando ao apoio a Khadafi, agora pedem aos fiéis que não cedam ao impulso de vingança. "O islão apela a que nos unamos", explica o imã. "O islão recusa a vingança. Protege o inimigo".

Hadi Mohamed Komati é imã nesta mesquita há sete anos. Diz que o poder político nunca teve influência no seu magistério, e que a vida nas mesquitas decorre inalterável, seja quem for que esteja no poder. Mas depois reconhece que a autoridade líbia responsável pelas mesquitas, a Al Kaf, dava aos líderes religiosos discursos para lerem durante as horas da oração. "Entregavam aos imãs discursos já feitos, que eles eram obrigados a ler na mesquita". Eram laudaminhas a Khadafi exortando os fiéis a obedeceram e a irem para a rua manifestar-se a seu favor.

Agora, o imã não pede desculpa, não se mostra fiel a Khadafi nem aos rebeldes. "A política não interfere com o islão", diz. Se Khadafi era ou não um bom muçulmano, "só Deus é que sabe". "Só pedimos a Deus que traga a paz a este país. Que Deus nos proteja desta crise".

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