O perigo mora ao lado, mas os moradores não o vêem nem sentem

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Os resíduos foram enterrados a vários metros de profundidade e estão cobertos por terra e vegetação Foto: Ricardo Castelo\NFactos

Manuel Rocha mora mesmo ao lado do aterro de resíduos perigosos de São Pedro da Cova, em Gondomar, mas nunca perdeu um minuto de sono por causa disso. "Não me cheira a nada, a água parece normal, por que me havia de chatear?", diz, como se estranhasse a pergunta. Está estacionado a poucos metros de distância dos 15 mil metros quadrados onde jazem 88 mil detritos da antiga Siderurgia Nacional, da Maia, contendo chumbo em doses que, confirmou há meses o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), ameaçam gravemente a saúde pública.

Mas não o sono deste reformado. "Se os maiores não se preocupam, vou-me eu preocupar agora...", prossegue, para se fechar num mutismo de quem das duas uma: ou não faz ideia do que representam aqueles resíduos perigosos para a saúde da população ou faz mas está-se nas tintas. E o alheamento está longe de ser exclusivo. Insiste-se nas perguntas quanto às medidas adoptadas para acautelar eventuais contaminações e as respostas não variam. "Nunca tive problemas de saúde, a mim não me incomoda", corrobora António da Rocha, 66 anos, antigo pedreiro. Mas não leu nos jornais que os resíduos podem ser perigosos? "Se eu não sei ler, já vê...".

A iliteracia da população de São Pedro da Cova ajudará a explicar este desprendimento. A cerca de 20 quilómetros do Porto e a quatro do centro de Gondomar, esta freguesia com perto de 17 mil habitantes foi até à década de 1970 um grande centro de extracção de carvão. Com o encerramento das minas, quedou-se na sua vocação de grande dormitório. Os bairros sociais, a paredes-meias com casas antigas bordeadas de pequenas hortas, são sinais de uma passagem demasiado brusca de uma mentalidade rural para uma suburbana. De um lado prédios, do outro as piscinas municipais e, entre os dois, o terreno onde se escondem os resíduos perigosos, disfarçados a um tempo por outras tantas toneladas de terra e a outro por detritos da construção civil da empresa que funcionou no edifício das antigas minas e que por estes dias não passa de um enorme esqueleto cinzento.

Para lá chegar sobe-se uma pequena encosta e o que se vê é um terreno coberto por vegetação selvagem. É o presidente da junta de freguesia, Daniel Vieira, quem ajuda a perceber o que se esconde por debaixo desta terra enegrecida pelo carvão. "Com o aval das autoridades, foram aqui depositados resíduos que supostamente eram inertes para tapar o fosso que aqui havia e a pretexto da requalificação paisagística deste espaço que tinha um passivo ambiental por causa das antigas minas". Tratava-se de 97,5 mil toneladas de pós resultantes do despoeiramento dos gases do forno eléctrico da Siderurgia Nacional, que, já em 1996, a própria Siderurgia Nacional reconhecia precisarem de ser inertizados antes de serem depostos em aterro devidamente selado, por representarem um potencial muito elevado de lixiviação do chumbo.

Corrupção e compadrio

O certo é que, entre 2001 e 2002, esses pós foram depositados nas escombreiras das antigas minas de São Pedro da Cova sem qualquer tratamento prévio. Do mesmo modo, não foi acautelada a selagem da área de deposição. Durante meses, era um ver-se-te-avias de camiões a entrar e a sair. "Vinham de manhã cedo e à noitinha e despejavam o entulho no buraco que ali havia e que era quase do tamanho deste polivalente. A gente quase não os via", recorda Manuel Rocha.

A operação, coordenada pela Urbindústria - uma empresa com capitais do Estado responsável pela gestão dos resíduos da antiga Siderurgia Nacional que entretanto se fundiu com a Quimiparque e deu origem à Baía do Tejo S.A -, tinha o aval da então Direcção Regional do Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT) e até foi financiada com fundos comunitários. Havia, aliás, análises que atestavam que as cinzas ali depositadas eram inertes e só quando suspeitou que estavam a ser excedidas as 97,5 mil toneladas contratadas é que a DRAOT mandou suspender o processo. Terão ficado ali enterradas 88 mil toneladas de cinzas, segundo cálculos do LNEC.

Seguiram-se anos e anos de denúncias. Na posse de análises que comprovavam a perigosidade dos resíduos, a eurodeputada comunista Ilda Figueiredo levou o assunto à Comissão Europeia. Nuno Melo, do CDS/PP, também. E acaba por ser a própria Comissão de Coordenação da Região Norte que, depois de o LNEC ter feito a prova dos nove à perigosidade dos resíduos, denuncia o caso ao Ministério Público. A Procuradoria-Geral da República abriu este mês uma investigação para apurar responsabilidades. Há documentos que comprovam o pagamento do depósito de 320 mil toneladas e que adensam as suspeitas de corrupção.

"Houve quem se tivesse permitido transformar resíduos altamente perigosos - que podem ser responsáveis por doenças como cancro ou malformações fetais - em resíduos inertes e, sob essa falsa capa e com documentos falsos, os tivesse depositado no meio de zonas habitacionais, a pretexto do arranjo urbanístico da zona, apropriando-se de dinheiro público e beneficiando terceiros. Espero que as responsabilidades criminais sejam apuradas e que os seus autores não venham a beneficiar da prescrição", declara Nuno Melo. O comunista Honório Novo, cujo partido tem agendada para Setembro uma iniciativa no sentido de obrigar a que o próximo Orçamento de Estado contemple as verbas necessárias para a remoção dos resíduos, é lapidar: "Não tenho dúvidas que houve nesta matéria compadrio e corrupção externa, como não tenho dúvidas que essa situação se estendeu a pessoas dos próprios serviços da DRAOT".

Enquanto a investigação prossegue, enquanto as há muito prometidas análises à qualidade das águas subterrâneas do local não chegam, a população aguarda. Os que, como Carlos Moura, têm furos a partir dos quais regam os hortícolas e dão de beber aos animais vão confiando na sorte. "A minha mulher está sempre a ameaçar que vai deixar de dar aquela água aos animais, agora que comêssemos uma galinha e nos tivéssemos sentido mal a seguir nunca aconteceu", relativiza este cravador de ourivesaria, 45 anos. "É uma coisa em que vou pensando mas que não me tira o sono. Olhe, é como a morte: a gente sabe que vai morrer, mas não anda todos os dias a pensar nisso".

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