Reportagem: Para os jovens dos bairros ricos do Cairo, ir à praça Tahrir é cool

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"Mubarak é um impedimento a que o Egipto se torne um país moderno" Foto: Asmaa Waguih/Reuters

No piso térreo do moderno edifício de escritórios e apartamentos chamado Burg Um Kulthum fica o café Coffee Bean and Tea Leaf. Tem uma esplanada, cheia ao fim da tarde. Grupos de jovens de classe alta conversam sentados em cadeiras de verga e almofadas. Tudo é limpo e esmerado, ao contrário de quase todo o resto da cidade. Aqui não há montes de lixo na rua, vidros partidos, passeios esburacados. Isto é Zamalek, a zona mais chique do Cairo.

As lojas de luxo estão abertas, bem como os cafés e restaurantes. Jovens barulhentos enchem o McDonald"s, adultos mais recatados conversam e fumam no Cilantro, uma cadeia de cafés egípcia e requintada, que a americana Starbucks tentou em vão comprar. Respira-se segurança e confiança nesta zona rica, onde o caos das últimas duas semanas parece não ter chegado. Aqui, nada foi destruído e ninguém foi afectado pelo medo. A praça Tahrir, porém, não fica longe.

Grupos de jovens estão a chegar de lá, a pé, e sentam-se na esplanada, contando aos amigos como foi o dia no centro da revolução. "Os protestos continuam e ninguém vai desistir", diz Safia, uma estudante de Medicina de 22 anos. "Eu vou para lá todos os dias, porque sempre que me levanto de manhã penso: o que posso hoje fazer pelo meu país? Tomo banho, visto-me e vou para a praça Tahrir".

Discussão intergeracional

Muitos dos jovens que vivem em Zamalek fazem isto diariamente. Pertencem à classe alta, vivem em grandes apartamentos com vista para o Nilo, muitos estudaram no estrangeiro e pertencem a famílias que, se são privilegiadas, devem-no muitas vezes às ligações com o regime. "Em minha casa só eu e o meu irmão vamos para a praça. Os meus pais não concordam. Bom, a minha mãe passa a vida agarrada à televisão, completamente fascinada com aquilo. Mas não o admite".

Há discussões no seio das famílias. O típico é os filhos serem pró-revolução e os pais pró-Mubarak. Mas há muitas excepções. "Tenho amigos que conseguiram convencer os pais a ir com eles para a manifestação", diz Safia. "Mas também conheço casos em que foram os pais a levar os filhos. Há de facto uma discussão intergeracional, mas, no fundo, acho que o que está em causa são os interesses de cada um. Entre as pessoas do meu meio, acho que ninguém gosta de Mubarak. Ele é um homem de outra era, e um impedimento a que o Egipto se torne um país moderno. Mas o sistema está montado de uma certa maneira, e quem tem privilégios não os quer perder".

Entre os poderes político, militar e económico há laços muito fortes. Os CEOs das grandes empresas, os grandes magnatas da indústria ou da finança são antigos generais ou ministros. Nenhuma grande empresa pode funcionar sem o beneplácito do Governo e da Polícia. E as pequenas empresas também não, se não subornarem permanentemente os agentes da polícia que concedem licenças, ou os inspectores que fiscalizam permanentemente todos os serviços e actividades. O melhor é ter amigos nas várias instituições do Estado, e trocar favores.

"Para muitas pessoas que conheço é difícil imaginar que o regime possa cair. Porque não é só Mubarak, há outros muitos poderosos, que dominam a vida do pais de várias formas." Aqui em Zamalek, por exemplo, basta olhar em redor para se ter uma ideia do império de um homem chamado Mansour. O McDonald"s, o stand da Chevrolet e praticamente todas as empresas americanas estão nas suas mãos. "Metade do país pertence a Mansour, que já foi ministro e é amigo pessoal de Mubarak". E como foi ministro dos Transportes, agora é dono também da empresa do metropolitano do Cairo.

"Para nós é uma situação algo contraditória, tenho consciência disso", diz Safia. "Por um lado devemos a nossa posição confortável às relações que as nossas famílias estabelecem com o regime, mas por outro odiamos este sistema de corrupção e burocracia. Não se consegue fazer nada normalmente. Por exemplo, tirar a carta de condução. É impossível. Podemos passar anos, de repartição em repartição, e há sempre um papel ou uma assinatura que falta. Se o nosso pai tiver um amigo no Governo, ou na direcção da polícia, tudo se revolve de um dia para o outro".

"Este é o nosso país"

Muitos dos manifestantes da praça Tahrir provêm de Zamalek, ou de outra zona chique do Cairo, Maadi. Esta situa-se nos arredores e é habitada por muitos estrangeiros e diplomatas. Nas suas ruas arborizadas e limpas sucedem-se edifícios de arquitectura moderna, palácios antigos e sumptuosos, lojas caras, salões de beleza, ginásios. No café Bludan, homens e mulheres fumam cachimbos de água na esplanada. No interior há um grande ecrã de televisão sintonizado na Al Jazeera mostrando em directo imagens da praça Tahrir.

Como se explica que, mais do que nos bairros pobres, seja nestas zonas de privilégio que o apoio aos manifestantes anti-regime é mais forte? "Os pobres não têm opção", explica Safia. "Não falam línguas, não têm acesso à Internet, só à televisão estatal, que é completamente manipuladora. É preciso já ter alguns privilégios, para se apoiar a revolução. Pelo menos ter tido acesso à cultura".

Por isso esta classe revolucionária, à semelhança do que acontecia com o proletariado no tempo de Marx, sente que o poder está ao seu alcance. Tal como os operários eram a força que sustentava a sociedade industrial, estes jovens cultos, que dominam a tecnologia sentem que não precisam das velhas classes dominantes. "Este é o nosso país", diz Safia. "É tempo de tomarmos conta dele". É isto que discute, na esplanada do Coffee Bean and Tea Leaf, com os amigos vestidos de jeans e ténis americanos. Os que vão e os que não vão a Tahrir. Mas são estes últimos que dominam o debate, admite Safia: "Ir à praça Tahrir é cool".Siga a evolução do conflito no Egipto em www.publico.pt.

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