Reportagem: Violência na praça de todas as manifestações

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Choveram pedras sobre os manifestantes na Praça Tahrir Foto: Goran Tomasevic/Reuters

Muhammed está caído no chão, uma poça de sangue à volta da cabeça. Os amigos cercam-no sem saberem o que fazer. Um deles aplica-lhe uma espécie de massagem cárdio-respiratória obviamente pouco adequada. Os outros, em pé, acabam por sair dali. Optam por ir vingar o amigo lá mais para a frente, junto à entrada da praça, onde estão os tanques. Correm, de olhos esgaseados e barras de ferro nas mãos, atiram-se à turba que se comprime na rua que vai directa à Praça Tahrir. Que se comprime e pressiona, por impulsos, tentando ocupar terreno a cada recuo dos adversários. E depois corre em retirada sempre que do outro lado vem uma chuva de pedradas.

Nesta altura, já não há tempo para gritar slogans, ou mostrar cartazes. Vêem-se ainda os retratos de Mubarak, e os posters que dizem "Mubarak 79 milhões de egípcios amam-te", numa referência a todos os que não integraram a "marcha de um milhão de pessoas" contra o Presidente. Apenas são usados os paus que seguram os cartazes e posters. Usados como armas.

Há milhares de pessoas na rua, e as correrias são constantes, de um lado para o outro, e de cada vez que a onda muda de direcção há dezenas de feridos a serem trazidos em ombros, ou ao colo, ou sozinhos a correr, a cambalear, a tombar no asfalto, cheios de sangue, de olhos revirados, vencidos. Mas isso não demove os outros. Mais grupos continuam a surgir, vindos da Ponte 6 de Outubro, que atravessa o Nilo junto ao edifício incendiado do Partido Nacional Democrata (PND), ou do complexo de viadutos que se ramificam a partir da ponte. São grupos de jovens, armados de paus e ferros, animados de uma fúria obstinada, mas bem organizados. Atacam as várias entradas da praça, tentando uns infiltrar-se pelas brechas entre os tanques e as barreiras de arame farpado montadas pelos militares, e outros empurrando a multidão, na tentativa de ir fechando o cerco sobre a praça, onde se encontram os manifestantes contra o regime.

Os manifestantes pró-Mubarak são aos milhares, mas a maioria mantém-se a alguma distância, sobre os viadutos, observando os acontecimentos. Outros parecem ter missões bem definidas, e actuam de forma violenta e organizada.

Isto passa-se ao fim da tarde. Horas antes, no interior da praça, a manifestação contra o regime prosseguia, com dezenas de milhares de pessoas gritando os slogans mais violentos contra o Presidente, numa reacção ao seu discurso da véspera. "Procura-se. Morto ou morto", dizia um cartaz. Outro: "O teu lugar não é a Arábia Saudita, mas Telavive". Outro ainda: "Mubarak, é demasiado tarde para abandonares o país." Uma efígie de Mubarak foi enforcada num poste, um caixão improvisado passeou pela praça, simulando o funeral do Presidente. "Não confiamos em Mubarak", disse Eyiad, um professor de 45 anos. "Ele é um traidor, um ladrão. Se o deixarmos no poder mais oito meses, não vai cumprir nenhuma das suas promessas". O tom de todos os discursos e slogans era a persistência. Ninguém ia sair da praça até que Mubarak abandonasse o poder e o país. Ninguém ia desistir. Estavam dispostos a morrer por esse objectivo, disseram muitos dos manifestantes.

A meio da tarde, começou a haver escaramuças na periferia da praça. Na zona central, as pessoas apercebiam-se das movimentações, mas já tinha havido brigas idênticas nos dias anteriores. Durante horas, os confrontos ocorreram nas ruas adjacentes. Mas num certo momento os grupos pró-Mubarak ultrapassaram as barreiras montadas pelos militares, sem que estes fizessem nada para os impedir. Começaram a cercar a praça. Os manifestantes contra Mubarak ergueram barricadas, e dispuseram-se numa "linha da frente" para conter os atacantes. Mulheres e crianças foram levadas para o centro da praça. E o que começou por ser uma série de desordens evoluiu rapidamente para uma verdadeira batalha. De ambos os lados foram lançadas pedras e toda a espécie de objectos contundentes, sinais de trânsito, chapas de aço e cocktails molotov. Vários incêndios irromperam entre a multidão, foram disparados tiros.

Militares imóveis

A certa altura, vindo do sector pró-Mubarak, um grupo de homens montando cavalos e camelos conseguiu entrar na praça e, empunhando chicotes e espadas, agrediu e feriu quem lhe surgiu pela frente. Alguns dos cavaleiros foram derrubados e espancados violentamente. O mesmo aconteceu a quantos, no meio das correrias, foram apanhados no seio da turba adversária. Manifestantes pró e contra Mubarak mostraram-se igualmente brutais com quem tinham à mercê. Segundo manifestantes contra o regime, alguns dos "prisioneiros" que fizeram foram revistados e interrogados, até se concluir que pertenciam à polícia ou eram criminosos contratados pelo partido de Mubarak, o PND. Com o avançar da noite, a batalha cresceria em violência. O lado dos pró-regime seria cada vez mais numeroso, e a certa altura os outros não faziam mais do que lutar pela sobrevivência. Organizavam escoltas e tentavam conseguir que pequenos grupos, de mulheres, crianças e idosos, abandonassem a praça, para evitar a chacina. Enquanto isto se passava, os militares mantiveram-se imóveis. Limitaram-se a accionar, com a ajuda de bombeiros, uma mangueira de água, para apagar os incêndios. Dos confrontos resultaram três mortos e cerca de 1500 feridos.

Muhammed já está sentado, estancando o sangue com um lenço na cabeça. "Mubarak deveria ter dado uma hora a esses traidores para abandonarem a praça", disse ele. "Se o não fizessem, ordenava ao Exército que os matasse a todos. Era isso que deveria ter feito. Mas ele é um homem demasiado bom".

Muhammed, que não terá mais de 20 anos, é levantado por dois amigos e levado para a margem do rio. "Essa gente que está na praça não são egípcios. São agentes estrangeiros, enviados pelos EUA e por Israel", disseram os amigos "Queremos que a estabilidade volte ao Egipto". Outro manifestante disse: "Eu amo Mubarak. Se ele passasse agora aqui, eu beijava o chão que ele pisasse. Mas, mesmo que ele tivesse cometido erros, que fazemos quando o nosso pai erra, ou nos decepciona? Pomo-lo fora de casa?"

Por toda a cidade, manifestantes pró-Mubarak percorreram as ruas, gritaram slogans, e confluíram depois para a Praça Mustafah Mahmoud, no bairro de Dokky, a vários quilómetros da Praça El Tahrir, do outro lado do Nilo. Foi uma manifestação pacífica, que acabou por concentrar cerca de 40 mil pessoas, desfilando pela Rua Gamrat Eldwal. "Durante 30 anos não houve guerra no Egipto", disse um dos manifestantes, Ahmed Galal, de 31 anos, empregado da Vodafone. "Nós amamos o nosso Presidente. Respeitamo-lo. O Egipto é um grande país, e os que estão a atacar Mubarak são os inimigos do Egipto".

Entre cartazes dizendo "Eu amo Mubarak" e "Mubarak fica", muitos ostentavam slogans contra a estação de televisão Al-Jazira. "Foram eles que apelaram às pessoas para irem para a Praça El Tahrir", disse Nash Wilad, cristão da Igreja copta." Outros cartazes continham frases exaltando o bom relacionamento entre muçulmanos e cristãos. Muitas figuras da hierarquia da Igreja copta, a que pertencem mais de 10 milhões de cristãos, desfilavam na manifestação pró-Mubarak. Nenhum líder copta fora visto em El Tahrir.

"Eu amo o nosso Presidente Mubarak", disse ao PÚBLICO o padre Silwanes, da igreja de Santa Maria de Dokky. "Se Mubarak partir, nós, os cristãos, não nos sentimos nada seguros", acrescentou. Muitos manifestantes aproximam-se para gritar com exacerbada emoção as suas opiniões. "São os israelitas, que mandaram agentes para desestabilizar o Egipto", diz um. "ElBaradei é um estrangeiro e um traidor", diz outro. "A WikiLeaks revelou que foi um relatório secreto dele que legitimou a invasão americana do Iraque".

Mas outras opiniões são moderadas, e até consonantes com as expressas em El Tahrir. "Acho que Mubarak deve ir embora, mas quero que ele parta como um rei, e não como um ladrão", diz Nash, que esteve na Praça El Tahrir, até o discurso de Mubarak o fazer mudar de ideias. "Ele merece o nosso respeito. Deixemo-lo ficar até ao seu aniversário, a 1 de Maio. Fazemos-lhe uma grande festa, e depois começa a campanha para as eleições presidenciais", diz Nash, que acredita que os protestos chegaram ao fim. Mas não acabaram. Para amanhã, está já marcada uma grande manifestação contra o regime.

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