Uma coabitação tensa à vista entre Cavaco Silva e José Sócrates
Ao PÚBLICO um colaborador de Cavaco é claro: "Não será nem a abstenção, nem a perda de votos que menorizam a acção futura do Presidente da República." E a expectativa, em Belém, é que seja mesmo mais interventivo, ainda que, na noite da vitória, tenha dito que não vai mudar a sua conduta. Quem pensa assim deve "perder desde já todas as ilusões". Foi o que disse aos jornalistas, quando também se recusou falar sobre as suas futuras relações com o Governo, por ser "noite de festa".
As condições políticas, assinalam colaboradores de Cavaco, mudaram e muito. O Presidente está relegitimado, perante um governo minoritário, de Sócrates, antevendo-se um "papel mais actuante".
Numa versão benévola, na procura de consensos. Noutra, mais realpolitik, há outras fontes que antevêem momentos de tensão. Até pela degradação das relações entre Cavaco e Sócrates, que já existia, agravada pelas sequelas de campanha.
No PS, como no Governo, a diferença de tom é mais que evidente. Afinal, para o segundo ciclo na Presidência, Cavaco não reforçou a sua votação relativamente a 2006. Uma "verdade que não se pode esconder" e é dita por Vitalino Canas, deputado e membro do secretariado nacional dos socialistas. A vitória presidencial "é relevante", até pelo facto de ter deixado Manuel Alegre, apoiado pelo PS e Bloco, a mais de 30 pontos percentuais.
Cavaco, parte II"A legitimidade do Presidente não está em causa, teve uma vitória importante, mas quem pensava num reforço eleitoral isso não aconteceu", afirmou Vitalino Canas ao PÚBLICO, anotando outra leitura do eleitorado: deve haver "estabilidade política" no país.
Com legitimidade refrescada - "a força que vem do povo", ideia repetida na campanha -, Cavaco Silva parte para o segundo mandato "de mãos livres", na expressão de um dirigente social-democrata. Não que seja expectável que Belém esteja num epicentro de uma crise política. Esse foco está na Assembleia da República, nos problemas com a execução orçamental, com o próximo Orçamento ou a eventual entrada do FMI.
São imponderáveis que podem pesar - antecipam responsáveis do PSD e do CDS - numa decisão presidencial. Uma coisa é dar resposta a uma crise, outra é o regular funcionamento das instituições. Nos dois partidos que apoiaram Cavaco lembra-se o exemplo de Jorge Sampaio, que dissolveu o Parlamento, apesar da maioria mais que absoluta do PSD e CDS. Nas leituras dos resultados, há no CDS quem, como Telmo Correia, anote o baixo resultado do PS nas urnas... das presidenciais.
E a verdade é que, durante a campanha, o candidato reeleito teve um discurso que oscilou quanto a cenários de crise. Na primeira semana, admitiu essa possibilidade. Na semana seguinte voltou ao discurso da estabilidade e disse que tinha "pouco apetite" em usar a "bomba atómica" (dissolução do Parlamento). Poder esse que só volta a ter a partir de 9 de Março, data da posse. Na noite da vitória, como antes, durante a campanha, o Presidente garantiu que não abdicará de nenhum dos seus poderes.
Sequelas e respostaEsta almofada, até Março, vai ser usada pelo Governo pelo PS. Para finais de Fevereiro está previsto o congresso nacional do PS em que Sócrates (naturalmente) será candidato. Tempo suficiente também para o primeiro-ministro ponderar uma remodelação governamental que poderia servir de dupla resposta: primeiro ao PS, que tem dado sinais de inquietação com o assunto, a começar por históricos como Mário Soares, e também uma "acção preventiva" para Cavaco Silva em vésperas da posse de segundo mandato.
A campanha, com o caso BPN e da casa de férias, mas também as intervenções de ministros como Augusto Santos Silva, da Defesa, deixou sequelas no candidato. No discurso de vitória, na noite de domingo, Cavaco fez um discurso crítico, zangado mesmo, contra a "campanha suja" em que implicou os seus adversários na corrida a Belém. Colaboradores de Cavaco admitem que a relação de Santos Silva com Cavaco estará prejudicada com frases mais ácidas do ministro, ao dizer que o Presidente não se deve meter onde não é chamado.
Quem ficou "perplexo" com o discurso de Cavaco foi o socialista António José Seguro, que na noite eleitoral quebrou o habitual silêncio para aceitar comentar os resultados em directo na TSF. Seguro afirmou-se sobretudo atento ao relacionamento institucional entre Presidente e Governo depois da reeleição de Cavaco, e, tendo em conta as intervenções feitas por este e por José Sócrates, ficou apreensivo.
Lacão pela estabilidade"A declaração de José Sócrates foi positiva, mas fiquei perplexo com a de Cavaco Silva", disse o deputado, considerando que o Presidente reeleito devia ter feito um discurso mais abrangente e mais inclusivo. "Cavaco Silva falou mais para os seus apoiantes e menos para os portugueses", disse. Isto num momento em que "precisava de alargar a sua base de apoio", pois foi o Presidente reeleito com menos votos.
Mais apaziguador foi Jorge Lacão, ministro dos Assuntos Parlamentares, que não deixou de lembrar que "um Presidente da República não é um chefe de Governo, não é eleito na base de um programa executivo", fazendo o apelo à estabilidade política. "É isso que o país espera legitimamente do Presidente da República, que com o conceito da cooperação institucional possa concorrer para que o país faça frente às grandes dificuldades que é preciso vencer", afirmou Lacão à TSF, um dia depois de Sócrates ter prometido "cooperação" a Cavaco, que vai "tirar dois dias" para descansar.Vitalino Canas, do PS, assinala que Cavaco não conseguiu reforçar a sua votação relativamente a 2006.