Linha SOS Professores regista 400 pedidos de ajuda por casos de indisciplina e agressão
Numa escola da Pontinha, nos arredores de Lisboa, uma das professoras de Matemática já interiorizou a regra que tornou sagrada: “Nunca me viro para o quadro”. Porquê? “Não se sabe o que pode acontecer nas minhas costas”. Esta é a imagem de insegurança que marca o dia a dia de um elevado número de professores em Portugal. A indisciplina na sala de aula transformou-se num sério problema que, em muitas escolas do país, parece tender a agravar-se. Que dificulta o trabalho de elevado número de professores, que os afecta psicologicamente e, em muitos casos, os leva a meter baixa médica.
Muitos destes casos nunca se tornam públicos mas são tema frequente de conversa nas escolas e motivo de queixas aos conselhos executivos. Quando o problema se arrasta e perante a falta de soluções, muitos docentes recorrem à linha SOS Professores, da Associação Nacional de Professores. Nos últimos quatro anos, foram ali registados quase 400 pedidos de ajuda para situações de agressão e de indisciplina nas escolas. A maioria foi apresentada por docentes do sexo feminino entre os 40 e os 49 anos que leccionam o terceiro ciclo ou o ensino secundário na zona de Lisboa e já têm mais de 26 anos de serviço. Os dados foram recolhidos entre Setembro de 2006 e Junho de 2009 e no período de Outubro 2009 a Junho 2010, totalizando os 386 contactos com aquela Linha. A grande maioria das situações diz respeito à agressão verbal (43,6 por cento) seguindo- se as queixas de indisciplina (29,5 por cento), de agressão física (27,8 por cento) e de mau relacionamento (13,6 por cento).
A maquilhar-se e a mandar mensagensNuma escola de segundo ciclo do Areeiro, as alunas de 11 anos maquilham-se durante a aula de Português, mandam mensagens de telemóvel e contam anedotas. “Aquela sôtora não faz nada, podemos fazer o que nos apetecer”, diz uma delas. “Na aula de Inglês, não, ninguém manda um pio”. Porquê? “A DT [directora de turma] é bué exigente e não deixa”. Visto assim, o problema parece residir na incapacidade do professor impor autoridade.
Mas, nalguns casos, a questão é mais complexa e interligada aos meios desfavorecidos em que as escolas e os alunos pertencem. Como aquela em que o quadro não está afixado na parede, mas tombado no chão da sala de aula. É preciso pedir giz para escrever e não há apagador. Os que houve, foram logo roubados pelos alunos, crianças dos 5 aos 9 anos oriundas de bairros considerados muito problemáticos. Não há lápis de cor, nem cadernos, nem material nenhum. Mas é uma escola de ensino básico, do primeiro ao quarto ano. Não, não é em Moçambique. Fica no centro de Lisboa.
Os alunos são ainda muito pequenos mas nada parece intimidá-los. Respondem com o riso às ordens dos professores, saltam e correm na sala de aula. É impossível cativar a sua atenção para ensinar. Quando uma professora tentou impor-se, os pais protestaram, acusando-a de ser demasiado rígida e o caso foi analisado pelo director. A professora passa a dar aula de porta aberta, decidiu. “Assim, nestas condições e com estes miudos é impossível ensinar”, diz a docente, exausta.
Há estabelecimentos de ensino em que os incidentes assumem maior gravidade e dão lugar à violência. Numa escola da linha de Sintra um professor retirou um telemóvel a um aluno do oitavo ano que perturbava a aula. Furioso e com a ajuda de outros colegas, o rapaz “vingou-se” retirando o relógio ao professor. Este queixou-se ao conselho executivo que discutiu o caso, aplicou uma suspensão aos jovens e restituiu o relógio ao docente.
Mas a solução dos casos pontuais não resolve o problema de fundo da indisciplina. Em declarações ao PÚBLICO, uma professora de Francês de uma das escolas da linha de Sintra do segundo e do terceiro ciclo afirma que o problema está a tornar-se “cada vez pior” naquela zona. Na sua opinião “é um problema que vem de casa, da falta de uma educação de base que não impõe regras aos miúdos”. As turmas muito extensas, de 28 alunos, no seu caso, também não ajudam, bem como os limites impostos à actuação dos professores. “Está a ser cada vez mais difícil o controlo na sala de aula”, afirma.
Um problema que não é portuguêsEste fenómeno não é, contudo, apenas português, observando-se, hoje, em vários países da Europa. Os pais acusam a escola de não conseguir desempenhar o seu papel educativo junto dos seus filhos; os professores atribuem a indisciplina à falta de regras que as crianças e jovens têm em casa, o que se reflecte depois na escola e prejudica a aprendizagem.
Em Março deste ano, num encontro realizado na cidade espanhola de Valência um grande número de especialistas em educação, defendeu que o aumento da violência e da indisciplina nas escolas resulta, sobretudo, de uma crise de autoridade familiar. Os pais não estabelecem regras e limites em casa e transferem essa responsabilidade para os professores.
Nessa reunião, o filósofo Fernando Savater, autor do livro “Ética para um Jovem”, notou que a generalidade dos pais das sociedades actuais condicionados pelo pouco tempo que habitualmente passam com os filhos, preferem que essse convivio “seja alegre” e sem conflitos, preferindo transferir a responsabilidade do exercício da autoridade para as escolas e para os professores. Só que, quando os professores tentam desempenhar esse papel “são os próprios pais e mães que não exerceram essa autoridade sobre os filhos que tentam exercê-la sobre os professores, confrontando-os”, nota Savater. Alerta para a situação de professores “psicologicamente esgotados” que se tranformam “em autênticas vítimas nas mãos dos alunos”. E salienta: “A boa educação é cara, mas a má educação é muito mais cara”, diz não se referindo apenas ao aspecto económico do problema mas a todas as consequências que podem resultar da indisciplina. Savater recomenda aos pais a necessidade de transmitirem aos seus filhos a ideia de que receber uma educação é “uma oportunidade e um privilégio”.
O fenómeno da indisciplina nas escolas também não é de agora. O psiquiatra e psicanalista João dos Santos, uma referência na área da saúde mental e da educação, conta no seu livro “Ensaios sobre Educação” publicado em 1991: “Quando o meu filho mais novo andava no 6º ano, recebi uma vez um postal do senhor director do ciclo, a dizer: ‘o seu filho foi expulso da aula de trabalhos manuais por estar a brincar’”, relata. “Vai daí, eu disse: ‘desculpe, senhor director, sempre julguei que as aulas de trabalhos manuais eram para brincar... mas se houve uma questão mais séria, se ele faltou ao respeito a alguém, isso não é coisa que se mande dizer num bilhete postal”, escreve João dos Santos, prosseguindo: “devia, quando muito, vir numa carta confidencial... Se o assunto é assim tão sério, deviam conversar comigo, para me explicar como e porquê eu lhe devo dar a carga de tareia que o tom seco do postal sugere.” E o psicanalista confidencia: “Tive ainda vontade de dizer mas calei-me a tempo de não ofender: ‘Eu, quando o meu filho me faltar ao respeito, chego-lhe...e os senhores? Ficam-se?’. Ficou assim esclarecido que João dos Santos se recusava a castigar o filho “por conta ou por razões de outrem”. No seu entender, “o director tinha autoridade mas não sabia aplicá-la senão através do burocratismo que o impedia de funcionar em termos de relações humanas. Era o porta voz da escola, que exigia aos pais que disciplinassem a escola...”, escreve o médico psicanalista, numa mensagem dirigida a pais e professores.
O Ministério da Educação não autorizou o pedido do PÚBLICO para assistir a uma aula numa das escolas com mais problemas de indisciplina, de forma a recolher elementos de reportagem, por considerar que isso poderia pôr em causa “a protecção dos direitos legalmente tutelados dos alunos”. Consequentemente, no artigo que se segue, são omitidos os nomes das escolas referidas, bem como a identidade das pessoas que prestaram depoimento sobre o problema da indisciplina.