Pouco dinheiro e pouca gente param o pouca-terra
Foram-se os centros de saúde, os correios, as escolas primárias. Chegou agora a vez dos comboios. Em algumas terras do interior o pouca-terra vai deixar de apitar porque a CP decidiu suprimir a sua oferta onde ela é especialmente deficitária. O mapa ferroviário português vai voltar a encolher, deixando ainda mais a descoberto extensas áreas do país.
Na calha estão as linhas de Marvão a Torre das Vargens (65 quilómetros) e de Beja a Funcheira (62 quilómetros). Mas os cortes não atingem apenas o Interior profundo. No Ribatejo, entre Coruche e Setil (32 quilómetros) vai desaparecer uma experiência com pouco mais de um ano de reactivação de um serviço ferroviário. E mesmo em plena região urbana do Porto vai acabar uma oferta que começou torta e por isso nunca se endireitou: os 56 comboios diários entre Ermesinde e Leça do Balio (11 quilómetros).
Este serviço numa linha de mercadorias, inaugurado em Setembro de 2009, resultou da assinatura de um protocolo entre a CP, Refer e Câmara de Matosinhos, e deveria ter sido prolongado este ano até Leixões, mas a Câmara de Matosinhos e a Refer desentenderam-se e a CP aproveitou a birra para acabar com um serviço que só lhe dá prejuízo. E com isto já lá vão 170 quilómetros onde as automotoras da CP deixam de transportar passageiros.
Mas há que somar-lhes mais 144 quilómetros, que são as linhas que fecharam em 2009 com a promessa de que seriam reabertas depois de obras de modernização que as poriam como novas. Não foram simples declarações. Houve cerimónias e comitivas lideradas pela então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, a anunciar a autarcas e a governadores civis o radioso futuro das vias-férreas do Corgo (26 quilómetros) e do Tâmega (13 quilómetros). Meses antes tinham sido fechados os 51 quilómetros da linha Figueira da Foz-Pampilhosa (que serve Cantanhede). A Refer prometeu fazer obras. Mas já não há dinheiro.
E falta a linha do Tua, verdadeiro ex-líbris de um caminho-de-ferro do interior, encravado na rocha, sobre o qual sobraram promessas de modernização associadas ao turismo da região duriense. Da foz do rio Tua a Mirandela esta linha mede 54 quilómetros, parte dos quais ficarão inundados pela barragem da EDP. Por enquanto o serviço é assegurado por autocarros ao serviço da CP, mas, como era de esperar, a empresa vai acabar com isso. Afinal o seu negócio é comboios. Não é autocarros. Nova soma, e chegamos, pois, a 314 quilómetros.
A este mapa (ver página 6) falta juntar a os troços que estão fechados para obras e que, quando reabrirem, já não terão serviço regional. Será o caso do eixo Guarda-Covilhã (46 quilómetros) na linha da Beira Baixa e do troço Pinhal Novo-Vendas Novas na linha do Alentejo (42 quilómetros). Ao todo serão 356 quilómetros de linhas que ficam sem serviço regional, das quais 144 quilómetros desaparecem do mapa ferroviário nacional e 212 manterão ainda comboios de mercadorias e serviços de longo curso.
Refer perde receitasEm relação a estas últimas, a supressão dos regionais significa que a empresa pública Refer vai continuar a ter gastos na manutenção e conservação das linhas, mas terá menos receita. Isto porque a CP pagar-lhe-á menos taxa de uso (portagem ferroviária) por já nelas não passarem tantos comboios. Já para a transportadora esta opção global representa um alívio nos seus prejuízos de exploração, esperando a empresa com este cortes contribuir para melhorar os seus resultados operacionais em 2011 na ordem dos 42,3 por cento.
Em entrevista ao PÚBLICO em 2/08/2010, José Benoliel, da CP, afirmava que "o país tem uma meditação a fazer - será que em todos os casos é o modo ferroviário o mais indicado para garantir a acessibilidade? Ou será que em determinadas circunstâncias não haverá outros modos de transporte muito mais aptos e eficazes?" Mas, a ter acontecido, esta meditação foi feita nos gabinetes e não debatida publicamente. A premência do Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC) ditou a decisão de acabar com os comboios mais deficitários.
No entanto a CP assume como sua missão "operar em todo o território nacional, oferecendo serviços de transporte público ferroviário como essenciais para o desenvolvimento do país e para a sua coesão social e territorial". É o que consta no sítio da Internet da empresa, onde esta também refere que os seus valores são a "Verdade, Honestidade e Transparência". Apesar disso, a CP não deu ao CIDADES o número de passageiros transportados nas linhas que agora vêem desaparecer os comboios regionais, não se sabendo quantos milhares de pessoas são afectados com os encerramentos e o fim do serviço regional.
Mesmo nas linhas em que estes comboios não acabam, haverá redução do serviço prestado. A lista da CP prevê suprimir quatro comboios (dois em cada sentido) entre Régua e Pocinho - o que significa uma redução de 40 por cento face à oferta existente - e um comboio em cada sentido entre Vilar Formoso e Guarda (só circulam aqui três em cada sentido). Entre o Entroncamento e Castelo Branco vão desaparecer duas circulações em seis dias da semana e na linha do Sul serão suprimidos dois comboios diários entre Setúbal e Tunes e mais dois entre Funcheira e Setúbal. A transportadora vai ainda "avaliar a supressão de quatro circulações diárias entre Covilhã e Castelo Branco" e acabar com o único comboio directo que existe entre Caldas da Rainha e Coimbra.
Falta articulaçãoEm 2010, o serviço regional da CP deu 56,6 milhões de euros de prejuízo (dos quais 48 milhões foram prejuízos operacionais), o que não surpreende, tendo em conta que está desligado das restantes unidades de negócios da CP, com as quais não faz correspondências. A oferta da CP Longo Curso não está alinhada com a do Regional para potenciar o efeito de rede do sistema ferroviário. Há horários em que o comboio regional partiu alguns minutos antes da passagem do Alfa Pendular ou do Intercidades, e noutros casos o passageiro que queira prosseguir viagem não tem correspondência em tempo útil no regional.
A fraca procura - que tem grandes repercussões nos resultados de exploração - não se deve, por isso, apenas ao definhamento do interior. Nem tão-pouco ao facto de a A23 ter praticamente matado o serviço ferroviário da linha da Beira Baixa e de a A8 ter comprometido a procura na linha do Oeste. As razões têm, também, que ver com actos de gestão da CP, que foi relegando o serviço regional para as margens do sistema. Por exemplo, na linha do Norte, onde se situa a maior procura em termos de passageiros, a empresa decidiu que aquele serviço não seria prestado de Aveiro para norte. Quem quiser seguir para o Porto terá de mudar para um suburbano da CP Porto, o que limita as receitas dos regionais em favor da outra unidade de negócios.
Os transbordos desencorajam os passageiros a viajar de comboio (sobretudo se forem idosos, e há-os cada vez mais no país), mas a CP multiplica-os por toda a rede. Recentemente, deputados do PSD viajaram de comboio entre o Rossio e as Caldas da Rainha e tiveram que apanhar três comboios. Do Bombarral para Coimbra é preciso mudar duas vezes e viajar em três composições. E até a linha do Norte tem o serviço regional segmentando, obrigando os passageiros a saltitar de composição em composição.
Não é por acaso que a CP Regional e a CP Longo Curso resultam da cisão da antiga UVIR (Unidade de Viagens Interurbanas e Regionais). A administração separou a "carne do osso", acarinhou o longo curso (que tem uma taxa de cobertura próxima dos 100 por cento e poderá vir a ser privatizado ou concessionado) e deixou os serviços regionais com os prejuízos. E chegados a este ponto, um cidadão que olhe para o descalabro das contas da empresa conclui que as supressões de comboios são um acto de gestão inevitável.