A libertação da mulher muçulmana começa em Marrocos

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Os islamistas bloqueavam qualquer mudança significativa, mas o rei Mohammed VI interveio a favor das mulheres Enric Vives-Rubio

Por que vai Jamila poucas vezes à Corniche? É o melhor de Casablanca. Começa na mesquita e evolui tangente ao mar. A mesquita é uma das maiores do mundo. Talvez a maior, se não contarmos Meca e Medina. E está ela própria construída sobre o mar. É nele que afunda os alicerces que sustentam a península criada artificialmente para o templo. Em certas galerias, entre os mármores raros, os mosaicos, as madeiras nobres, os cristais de Murano e as paredes trabalhadas com tintas naturais pelos melhores artistas do reino, o chão é de vidro e os fiéis podem ver a água que revoluteia ferozmente por baixo dos seus pés.

“Deus construiu o seu trono sobre a água”, diz o Corão. Hassan II chamou 2500 operários e dez mil artistas, que trabalharam 24 horas por dia durante sete anos para colocar este prodígio sobre o Atlântico. O trono de Deus. No interior da mesquita há lugar para 25 mil pessoas, mas no pátio a toda a volta, pavimentado a mármore e granito e enquadrado pelos arcos da biblioteca, podem orar 200 mil muçulmanos numa só sexta-feira de Ramadão. Dir-se-ia um desafio a Meca lançado pelo rei alaouita, intitulado Comandante dos Crentes. E também um sinal de que Marrocos não avançará sem o islão. Mas que talvez o islão avance com Marrocos. A mesquita é quase a maior do mundo. O minarete, com 210 metros de altura, é o mais próximo do Céu. A Mesquita de Hassan II é a mais alta do mundo.

Jamila gosta de vir aqui e depois seguir, com as filhas, no seu VW Polo, pela Corniche adiante, até às esplanadas, às piscinas, às praias de Miami, Taiti, Tropicana ou Acapulco. Mas não o faz muitas vezes. Hanane, a filha mais velha, de 24 anos, começa a preferir sair com as amigas, e Jamila, sozinha, não vem. Quando as três filhas estiverem casadas, ela ficará em casa.

Por enquanto, são as circunstâncias que a empurram para a rua, para a vida social. É uma situação excepcional, que lhe permite ter uma vida extraordinária. Desde que se separou do marido, ninguém a ajuda a educar as filhas. É preciso levá-las à escola, mas também à rua e à praia. É importante acompanhá-las em tudo, para que aprendam a defender-se e não se tornem dependentes, vítimas do véu e do Corão. Jamila é muçulmana, mas tem medo dos imãs [os que lideram as orações nas mesquitas]. Porquê?

Hafida Elyaakoubi Elidrissi, de seu nome completo, nasceu em Meknès há 43 anos. Mas aos dois veio para Casablanca com os pais, que já morreram. Estudou Gestão, casou, tem três filhas e um bom emprego como funcionária nos serviços aduaneiros. O marido zangou-se, arranjou uma amante e ela pô-lo fora de casa. Porquê? Jamila ficou com o apartamento e é proprietária de mais duas casas, uma na cidade e outra no campo. Tem carro e uma vida desafogada. A filha do meio, que estudou Engenharia Informática, casou com um francês; a mais velha, Hanane, que faz o mestrado em Gestão de Recursos Humanos, esteve quase a casar com um marroquino, mas terminou tudo a uma semana da data marcada.

São uma família de mulheres. Por um instante, uma família normal. Há uns anos isto não seria possível, outros tantos à frente talvez não o seja de novo. Jamila separou-se do marido já depois da morte dos pais e após o discurso de entronização do novo rei, Mohammed VI.

A oportunidade era única, tudo se conjugava e ela não hesitou. Enfrentou os familiares mais velhos, os amigos, a religião, a lei e os costumes, mas, contra tudo e todos, ela e as filhas decidiram ser uma família normal. Foi assim que Hafida Elyaakoubi Elidrissi entrou na revolução.

Boushra Benyezza chegou pouco depois. À socapa, mas chegou. Antes de se apresentar às pessoas, apresentou-se ao lugar. Bom, e a alguns seres que por lá andavam. Braque, Rothko, Klein. Mas também De Chirico, Bruce Willis... Braque está um pouco doente. Vê-se no pêlo. “Eu vim por causa dos animais”, diz Boushra.

Nasceu em Marraquexe, mas foi para França estudar Arte. Viveu em Paris, em Tours, depois nos Estados Unidos da América. Após o curso de Pintura, fez um mestrado em Arteterapia. Expôs em Nova Iorque e por toda a Europa, deu aulas, entrou em (e saiu de) dois casamentos. Há dois anos, decidiu voltar. “Eu queria ser útil a este país e achei que chegara a altura. Agora é possível fazer qualquer coisa. Antes não era.”

Comprou uma casa com quintal, na praia de Tamariz 2, a uns 30 quilómetros de Casablanca. No terreno vazio construiu um atelier, mas ainda sobrou espaço para um pátio ao ar livre, com mesa e cadeiras, de onde se vê o mar. “Construí este refúgio”, diz Boushra. E desde então vive aqui sozinha com os seus amigos — 15 gatos com nomes de pintores, um cão e um burro (Bruce Willis).

“Este país não respeita os animais”, diz Boushra, antes de dizer que o país não respeita as mulheres. “Quero construir um refúgio. Vou recolhendo os animais que encontro abandonados, para tratar deles.” Era preciso começar por algum lado. Os animais foram o álibi perfeito. São uma boa causa, e não implicam, para já, enfrentar os humanos. São também uma razão para ir ficando, não desistir rapidamente. “Nem que quisesse, agora não poderia ir embora. Tenho esta responsabilidade.” E ajudam ainda a criar uma certa imagem de artista excêntrica, que facilita a aceitação.

“Sou uma artista, perdoam-me tudo.” É uma espécie de lugar de excepção, isento das obrigações sociais impostas às mulheres, que “têm de ser bonitas, estúpidas e usar o véu”. Mas mesmo a excepção já é uma conquista. “Há 15 anos não era assim. O mundo da arte era exclusivo dos homens.”

Boushra tem 42 anos, usa sandálias, jeans, blusa às riscas vermelhas, um lenço ao pescoço. Os seus olhos são negros e estranhamente serenos. Além da pintura, arranjou um emprego na cidade, num hospital psiquiátrico, como arteterapeuta.

“Através dos desenhos, vê-se a desordem mental das pessoas.” Mostra os trabalhos dos doentes. “Este é de uma mulher de origem guineense, a quem o marido deixou. Veio nua para a rua e foi internada como esquizofrénica. Ninguém se lembrou que a nudez, de acordo com a sua cultura africana, é uma coisa natural. Percebi isso através dos seus desenhos, e expliquei-o ao psiquiatra.”

A maior parte dos doentes mentais internados são mulheres. “Qualquer comportamento estranho é considerado uma doença. Mas depois a doença é uma vergonha. Os familiares dizem às pessoas que a mulher está no quarto ou foi viajar. Nunca que está num hospital psiquiátrico.” Boushra analisa pinturas de mulheres que deixaram de falar ou que tentaram suicidar-se. Mas este quadro é de um rapaz. “Foi violado. Por isso, os corpos que ele desenha estão incompletos. Neste faltam as mãos. Neste as pernas.”

Também há algo de incompleto nas pinturas de Boushra. O seu tema permanente, desde há dez anos, é a “construção”. Pinta casas, adobes, blocos, quadrados, alinhados, sobrepostos, empilhados, presos com remendos, com outras formas geométricas. São quadros pintados com tinta de óleo sobre areia.

“A construção de uma casa, de uma cidade. De uma vida, de uma relação entre pessoas. É a construção que me interessa. E a areia é a minha matéria-prima. Colecciono areia das praias de todo o mundo. Os meus amigos mandam-me.”

E que estão as mulheres a construir em Marrocos? “Estão a fazer qualquer coisa. Sim, há uma revolução em curso. Mas não é de um momento para o outro. Eu faço o que posso, com os meios que tenho.” Mas porquê a areia? Por que pinta Boushra sobre areia?

As feministas e o rei

Quando, em 1999, Mohammed VI sucedeu ao pai, Hassan II, os marroquinos perceberam que o país ia entrar numa nova era. No seu discurso de entronização, o novo monarca expôs logo as grandes linhas da mudança. Falou de corrupção e direitos humanos, da pobreza, das desigualdades, do atraso, mas, acima de tudo, falou da mulher. “Como podemos esperar assegurar progresso e prosperidade a uma sociedade enquanto as suas mulheres virem os seus direitos desprezados e sofrerem a injustiça, a violência e a marginalização?”, disse o jovem rei na televisão. E foi como se tivesse anunciado todo um programa de acção.

Porque a sua referência à mulher marroquina, além de inédita numa alocução real, não se limitava à piedade, nem mesmo à solidariedade. Ligava a situação feminina aos problemas da sociedade. O país não se desenvolverá sem que as suas mulheres sejam livres, era essa a mensagem e a tese. Tornava-se portanto uma questão de necessidade e que interessava a todos.

O regime político marroquino é uma monarquia constitucional, com um parlamento eleito formado por duas câmaras, onde estão representados vários partidos, e um Governo formado a partir das eleições legislativas. Mas na realidade o rei tem o poder de nomear e demitir o primeiro-ministro, dissolver o Parlamento, convocar eleições e até de revogar a Constituição. Os poderes do Parlamento são limitados, o Governo não toma decisões importantes sem consultar o rei e nenhum dos mais de 30 partidos ousa fazer verdadeira oposição ao monarca.

É certo que, nos últimos anos, várias reformas foram introduzidas, no sentido da democratização. Mas a despeito dos poderes acrescidos do Governo, em cuja coligação passaram a entrar, desde 1998, partidos da oposição, ainda é ao rei que cabe a verdadeira iniciativa legislativa.

Não foi com Mohammed VI que nasceu o movimento das mulheres marroquinas. Mas foi ele que lhe deu voz, ao colocar na agenda política algumas das suas principais reivindicações.

Antes dele, nenhum desses temas era considerado, pelos partidos, digno sequer de ser discutido. “Os direitos das mulheres, o próprio direito da família eram considerados assuntos secundários, marginais, não políticos”, conta Latifa Jbabdi, uma das personalidades mais importantes do feminismo marroquino. “O Código da Família era sacralizado. Era um assunto religioso, não político. Tocar nele era tocar no islão.”

Latifa, 55 anos, é uma das pioneiras do movimento feminista no país. Criou organizações, foi presa, pertenceu a todas as comissões e grupos de trabalho. Em 1983, com um pequeno grupo de mulheres, fundou a União de Acção Feminina e um jornal, o 8 de Março, o primeiro periódico feminista do mundo árabe. Foi nessa altura que se iniciou a luta para alterar o Código da Família, o conjunto de regras com valor de lei onde se estipulava a inferioridade da mulher, a sua irresponsabilização no seio da família e da sociedade, a desigualdade quanto às heranças e no divórcio, a possibilidade do casamento em idade menor, o direito do homem à poligamia e ao repúdio da mulher.

Em 1992, Latifa e as companheiras conseguiram reunir um milhão de assinaturas contra o Código da Família, o Moudawana. “Foi fácil fazê-lo, porque as mulheres sentem na pele a desigualdade. E não acreditam que a religião as obrigue a conformarem-se.”

Entregaram o abaixo-assinado ao Governo e, em consequência, os imãs islamistas emitiram uma fatwa de condenação à morte da directora do jornal (Latifa) e de todo o movimento. Mas conseguiram também uma reforma, ainda que pouco significativa, das leis da família. “Foi limitada, mas serviu para dessacralizar o código. Afinal, era algo que se podia discutir, não fazia parte do Corão.”

Logo perceberam que o principal inimigo eram os islamistas, sobretudo os do grupo Jemaah Islamiyah, que mais tarde se viriam a constituir em partido político com representação parlamentar. O Partido da Justiça e do Desenvolvimento é hoje o terceiro maior partido da Assembleia, com 46 deputados. E por essa razão conceberam a estratégia de desenvolver o debate a partir do Corão.

“Há versículos que falam da igualdade da mulher, a justiça e a equidade são princípios básicos do islão, a sharia baseia-se em interpretações”, explica Latifa. O Corão podia portanto ser usado como uma arma a favor das mulheres. E lançaram-se no seu estudo. Convidaram teólogos, historiadores e exegetas, começaram a construir argumentos.

Depois, munidas de razões convincentes, partiram para o país profundo. Organizaram debates e sessões de esclarecimento pelas aldeias de Marrocos, usaram salas públicas, foram de porta em porta. “Havia sempre, nas sessões, entre 600 a mil mulheres. Gerou-se um entusiasmo enorme”, recorda Latifa. “Apareciam sempre homens que eram geralmente muito renitentes. Não queriam perder privilégios. Mas nós falávamos-lhes do futuro das suas filhas, da possibilidade de serem repudiadas pelos maridos e ficarem sem nada, e eles acabavam por nos dar alguma razão. Foi uma acção de base que mobilizou o povo, não foi uma coisa de elites.”

Mas nem por isso sensibilizou os partidos políticos. “Toda a gente falava disto. Mas os partidos não se queriam comprometer. Diziam que estariam a dar pretextos aos islamistas. E não tomavam posição. Nem a favor nem contra.”

Só em 1998 os direitos das mulheres entraram no debate político. A oposição ganhou as eleições e um primeiro-ministro socialista, Abderramahne Youssoufi, foi chamado a formar governo — algo inédito no mundo muçulmano.

Centro do debate político

Latifa e as feministas da UAF e de outras organizações que entretanto surgiram viram a oportunidade. Convocaram uma marcha das mulheres. A adesão previa-se enorme e o primeiro-ministro dispôs-se a negociar. Prometeu iniciar um processo de revisão da Moudawana, na condição de a marcha ser adiada. E a seguir, num discurso ao país, falou dos direitos das mulheres e do Código da Família. Foi a primeira vez, na história do país, que o problema das mulheres foi referido no discurso de um chefe de Governo. Criou um plano para integração das mulheres, que foi colocado à discussão, com a colaboração dos partidos e das organizações feministas. Mas os islamistas não aceitaram que o Código da Família fizesse parte dessa discussão. As posições polarizaram-se, entrou-se num impasse, mas a verdade é que a questão das mulheres entrara para o centro do debate político.

Em 2000, as feministas organizaram a sua Marcha das Mulheres, em Rabat, com centenas de milhares de participantes. No mesmo dia, os islamistas organizaram em Casablanca, com um número não menor de pessoas, uma outra marcha, sob a palavra de ordem “O islão está em perigo em Marrocos”.

Foi nessa altura que um grupo de cinco mulheres, entre as quais Latifa Jbabdi, escreveu uma carta ao rei pedindo a sua arbitragem. É uma solução prevista na Constituição, para casos de grande conflito social, e elas usaram-na.

Mohammed VI aceitou. Recebeu uma comissão de 40 mulheres escolhidas pelas suas organizações e criou uma comissão para discutir as alterações a introduzir no Código da Família. Convocou os ulema (teólogos e juristas do islão) e foram activados os mecanismos da ijtihad (processo de interpretação das fontes jurídicas, o Corão e a Sunnah, com vista à criação de normas legais concretas).

Os ulema eram muito conservadores, não admitiam a ideia de igualdade, e os islamistas bloqueavam qualquer mudança significativa. “Mas a discussão em si dessacralizou a Moudawana”, explica Latifa. “Deixava de ser algo intocável, que emanava directamente da sharia, para ser uma lei como qualquer outra, discutível no Parlamento e nas comissões. Estava a começar uma verdadeira revolução.”

Ao mesmo tempo, o rei fazia a sua revolução pessoal. Casou, em Março de 2001, com Lalla Salma, uma jovem trabalhadora, moderna, com um curso de Matemática e outro de Engenharia Informática. A cerimónia, de vários dias, foi aberta ao povo, e, logo a seguir, a princesa consorte (nunca a mulher do rei tivera um título real) apareceu na televisão. E depois nas capas dos jornais e revistas. Tornou-se num modelo para as mulheres marroquinas, principalmente as jovens.

Com a participação directa e assídua do rei, a comissão elaborou então um projecto que expurgava o Código da Família de praticamente todas as iniquidades que continha. Homem e mulher passavam a ser considerados iguais quanto à responsabilidade no seio da família; passavam a ser equitativamente proprietários de todos os bens adquiridos após o casamento; a mulher ganhava o direito de pedir o divórcio e o homem perdia o de repudiar a mulher sem explicação; a poligamia e o casamento de menores passavam a ser proibidos, excepto em alguns casos específicos.

E este projecto, contra todas as expectativas, foi, em 2004, aprovado no Parlamento por unanimidade. Até os islamistas o votaram. Porquê?

‘Top model’ em bairro islamista

Hind Sahli vivia num bairro de lata. Sidi Bernoussi, no enfiamento de outros bidonvilles, como Douar Sekouila e Sidi Moumen, nos arredores de Casablanca, precisamente do lado oposto ao da Corniche.

Foi aí, nesse imenso oceano de barracas a leste da cidade, que o fundamentalismo islâmico nasceu e se desenvolveu. Imãs islamistas começaram a doutrinar os jovens sem emprego e sem futuro, de Sidi Moumen a Sidi Bernoussi. Jovens desenraizados, cujas famílias vinham do campo, e que desenvolveram um misto de fascínio e despeito pelos hábitos ocidentalizados dos habitantes da grande cidade. Criaram-se grupos religiosos e grupos de acção. A violência nos bairros tornou-se habitual.

O pai de Hind era polícia e não tinha uma vida fácil, entre o respeito pelos “barbudos” e a obediência ao rei. Talvez por isso, Hind odiava o bairro e tinha um sonho: ser modelo. Numa certa tarde de sábado do Verão de 2006, tinha ela 15 anos, foi vista na rua por Salima Ziani, uma marroquina nascida em França que veio para Casablanca abrir uma agência de modelos.

“Ela era gordinha, mas eu percebi logo que tinha qualquer coisa”, conta Salima, que tem hoje 29 anos e é CEO da Elite Morocco. “Na segunda-feira seguinte, por coincidência, ela entra-me pelo escritório.”

Hind tinha contactado várias revistas, onde a reencaminharam para Salima. Esta, que andava precisamente à procura de belezas marroquinas, já não a deixou sair sem um contrato. Durante dois anos, ensinou-a a posar e a desfilar na passerelle, atribuiu-lhe um programa de alimentação e ginástica. Aos 17 anos estava pronta a partir. Não foi fácil arranjar-lhe um visto, tal como não foi convencer os pais a deixarem-na prosseguir uma carreira de modelo. Hoje, aos 19 anos, Hind Sahli vive em Times Square, em Nova Iorque. Fez capa de várias revistas, desfilou para a Lacoste, Kenzo, Max Azria, etc. É dona de uma beleza, como muito bem diz no seu site oficial, “devastadora”. “É a única top model mundial marroquina”, orgulha-se Salima.

É a última fronteira da indústria da moda e da beleza. Depois da América do Sul e da Ásia, da Europa de Leste e de África, as grandes agências de modelos mundiais têm apenas mais um filão: as mulheres muçulmanas.

Salima pensou nisto quando decidiu vir para Casablanca. Nasceu em França, filha de um empresário bem-sucedido. Depois de ter trabalhado como booker em França e em Espanha, decidiu aventurar-se sozinha, num negócio seu em... Marrocos. O pai tentou dissuadi-la. “Minha querida, nunca conseguirás mudar a mentalidade das pessoas”, disse ele, que nasceu e cresceu aqui. Mas acabou por ajudar a filha no investimento inicial. Ela, que já tinha trabalhado para a Elite Models, conseguiu um franchising com a agência internacional. Abriu um escritório num dos bairros mais chiques de Casablanca, nas Twin Towers. Fez publicidade nas revistas de moda e no Facebook. Abriu um concurso para modelos e teve cinco mil candidatas.

Nas várias provas e etapas, já seleccionou 12, mas só vai apostar em cinco. Nenhuma é, admite, como Hind. “Mas isto é um processo que leva tempo.” A próxima fase é procurar pelas aldeias das montanhas do Rif e do Atlas, onde “há raparigas maravilhosas, de olhos verdes e pele branca”. O problema é trazê-las. “Não tenho uma estrutura. E a maior parte do meu trabalho é o de explicar às famílias que as raparigas não estão a fazer nada de errado. A moda ainda é muito mal vista. Conotada com prostituição.”

Os grupos islamistas estão atentos, e por isso Salima optou por “uma estratégia não agressiva”. A agência tem sido “muito discreta”. Salima e os colegas também. Agora são, ao todo, cinco, incluindo a irmã, Nassima, que Salima já mandou vir de Paris. Os outros três são estrangeiros. Passam os dias enfiados neste escritório asséptico e equipado com “Macs” de última geração.

“Eu vim para cá porque quero ajudar as mulheres marroquinas”, diz Salima, de mini-saia e sandálias de salto alto, sentada num banco de estirador. “Os jovens têm uma grande vontade de fazer coisas, mas não sabem como. Faz falta um canal de televisão que lhes ensine modelos de comportamento, tipo MTV.”

O bairro do Twin Center, no distrito de Maarif. Entre os boulevards Al Massira Khadra e Mohammed Zerktouni, repleto de esplanadas e lojas de luxo. As duas torres brancas de 28 andares, assinadas pelo arquitecto catalão Ricardo Bolfill Levi, contêm escritórios, um hotel de cinco estrelas e um centro comercial. À entrada, há dois seguranças fardados e corpulentos e um detector de metais. Nos cafés das imediações, vêem-se muitas mulheres, ao contrário do que acontece nos do centro da cidade. Na esplanada da geladaria Venezia Ice, bem como na Brioche Dorée, sentam-se mulheres sozinhas a ler o jornal. Mas a entrada de cada um destes espaços ao ar livre, com cadeiras de verga almofadadas e toalhas nas mesas, é guardada por um agente de segurança. Se não fosse isso, dir-se-ia estarmos num bairro chique de uma cidade europeia.

O Colégio Lasalle International fica aqui, no Boulevard Zerktouni, como não podia deixar de ser. Decorre o ensaio para o evento que acontecerá no Hotel Hyatt Regency e está anunciado em cartazes por toda a cidade: Révélations, o desfile de moda anual organizado pelo Lasalle, em cooperação com a revista Femmes du Maroc.

Meryem Al Alami, 37 anos, a directora de moda do colégio, que ministra cursos de Estilismo e de Design, está a preparar os manequins, que seleccionou num casting de 350 candidatos (dos quais, 80 por cento eram raparigas). “A sociedade marroquina de hoje é muito aberta”, diz ela. “As mulheres são respeitadas e podem fazer tudo o que quiserem. Incluindo ser manequins. Qualquer mãe adoraria ver a sua filha na capa de uma revista. Desde que não fosse despida, é claro.”

A música começa a tocar e as raparigas desfilam uma a uma, ouvindo os comentários de Meryem, quase sempre ríspidos. Acatam-nos docilmente. Vê-se que querem muito fazer aquele desfile. Nenhuma das manequins é profissional. Duas fazem desfiles regularmente, mas não são agenciadas. Não trabalham, por exemplo, com a Elite Models, de Salima. Porquê?

“Ela só contrata estrangeiras. Não gosta das marroquinas”, explica Ibtissam Ittouchane, 25 anos, uma das modelos semiprofissionais. Também ela já trabalhou no estrangeiro — Dubai, Líbano —, mas sempre como freelance. Estudou Hotelaria, é alta, magra e muito escura de pele. Tem umas olheiras profundas, mas tudo “é natural”, diz. “Aqui em Marrocos não há anorécticas.”

A outra modelo, Leila Hadioni, também de 25 anos mas de corpo mais cheio, acrescenta: “Aqui, somos como somos. Ninguém faz dietas.” É assim a vida própria da moda marroquina, independente da cena internacional.

“As modelos aqui querem-se gordinhas, com formas”, explica Meryem, a directora. “Usam um tamanho 38, no mínimo. É assim que os homens apreciam as mulheres e é a tradição. O traje típico marroquino, o caftan, exige mulheres com algum corpo. É um traje consistente. Uma magrizela desaparece dentro do caftan.”

Ibtissam e Leila são casadas. A primeira com um manager de futebol, marroquino, a segunda com um francês. “Eles não se importam que sejamos modelos. Já o éramos quando nos conheceram, já estão habituados”, diz Ibtissam. “Os maridos que não deixam as mulheres desfilar têm complexos, problemas de autoconfiança.” O dela não. Por isso permite à mulher viver a vida livremente. “Faço o que eu quero. Hoje, a mulher marroquina é livre, tal como o homem. O meu marido não se importa que eu apareça na capa de uma revista. Claro que não faço shows de lingerie. Porque eu não quero. Não seria capaz.”

Desenvolveu-se com leis próprias, a moda marroquina. Não porque exista uma verdadeira indústria, mas para servir a causa das mulheres — é um universo em que são elas a mandar, não os homens. “De certa forma, é melhor ser modelo aqui do que na Europa”, explica Leila, que já tem uma filha de quatro anos. “Aqui, estamos no activo até aos 35 anos, ou mais. Enquanto formos belas, podemos trabalhar.”

O ensaio continua. Uma rapariga magra e muito maquilhada, de vestido curto azul-turquesa, avança trocando as pernas, meneando-se exageradamente. “Sou muito apaixonada por tudo isto”, dirá ela. Chama-se Hassnae B., tem 20 anos e estuda Medicina Dentária, em Rabat. “Gostaria de ser modelo profissional. E de tentar a minha sorte no estrangeiro.” Os pais de Hassnae vivem em Tetuan. Não sabem que ela está aqui. “Proibiram-me de fazer isto. Têm medo e têm vergonha também.” Mas ela desobedece. “Se fores modelo, os teus pais nunca mais te falam?”, pergunta uma das modelos amadoras, Widad Driouich, 24 anos.

“Talvez”, responde Hassnae. “Mas eu já sei que vou ter de sofrer se quiser realizar o meu sonho.” O pai de Widad também não a deixa estar aqui. A mãe sim. “O meu pai acha que mostrar o corpo não é permitido pela religião”, diz ela.

“Não tem nada a ver com religião”, diz Hassnae. Widad parece concordar: “Eu gosto de mostrar o meu corpo. O que é bonito é para ser mostrado.” Hassnae vai mais longe: “Eu sou muçulmana. E acho que não há nada na religião que me obrigue a esconder-me. Não vejo nenhuma incompatibilidade entre ser religiosa e ser manequim.”

Widad fica por momentos pensativa. “Hassnae, talvez estejas a exagerar.” A amiga põe um olhar desorientado. Widad agarra-lhe no braço: “Vá, temos de admitir. Não é possível ser religiosa e ser manequim!”

Quer dizer: não é possível ser manequim sem um complexo de culpa. Para as mulheres, não é possível fazer nada sem um complexo de culpa. É nesta tensão que a sociedade marroquina tem avançado nos últimos anos. E quanto mais algumas mulheres se iam libertando, por sua conta e risco, mais os islamistas se enchiam de brios. Imbuíam-se de um sentido de missão, de revolta contra os hábitos devassos ocidentalizantes.

Nos bairros de lata, as contradições agudizavam-se, enlouqueciam as pessoas. A vida tornava-se esquizofrénica. Lá, onde a pobreza reduzia todas as veleidades da vida moderna a um mundo ficcionado pelas revistas femininas, o fundamentalismo islâmico surgia a muitos como a única verdade. Eram eles, os islamistas, que assumiam os valores que pareciam seguros, o cimento da sociedade.

E com o seu discurso moralista, legitimado pelos escritos sagrados, faziam tudo parecer incerto e inconsistente. Apostavam no medo e tinham as costas quentes. A sociedade dava-lhes algum acalento. Eles aproveitavam a cumplicidade tácita dos homens, que sentiam os privilégios ameaçados, e de muitas mulheres, por fidelidade aos seus homens.

“Se tivesses um namorado e ele te desse a escolher entre ele e seres manequim, que fazias?”, pergunta Hassnae a Widad. Ela responde sem pensar: “Bem, nesse caso, não ia perder um amor por um emprego.” Todos sabem que é aí, nesse lugar íntimo e vulnerável, que a revolução perde forças. É aí que é difícil.

Os comportamentos vão mudando, mas há momentos em que tudo volta atrás. Dir-se-ia que, para singrar, faltava à revolução algum fundamentalismo também. Algum dogmatismo. É sabido que todas, em algum momento, se socorrem dele. Era preciso muita fé. E algum ódio. Havia uma necessidade de mudança, mas a ideologia era frágil.

Perante a integridade dos islamistas, a modernidade parecia cheia de relativismo e ambiguidade. Criticava-se a poligamia? Pois não era hábito no Ocidente os homens terem várias amantes? Não era isso a mesma coisa, acrescida de hipocrisia? Os progressistas no Ocidente andaram décadas a protestar contra o casamento. Agora lutam pelo casamento dos gays. Quer isso dizer que querem o pior aos gays? E a liberdade da mulher servirá para quê? Não será um pretexto para não a respeitar? Não a proteger?

A 16 de Maio de 2003, logo a seguir à invasão do Iraque pelas forças americanas, nove islamistas dos bairros de lata de Sidi Moumen e Sidi Bernoussi, onde vivia Hind, hoje top model em Times Square, fizeram explodir três carros armadilhados em duas zonas chiques de Casablanca. Os atentados provocaram 45 mortos e dezenas de feridos, no restaurante Casa Espanha, na Embaixada da Bélgica e no Hotel Farah. Marrocos nunca tinha visto terrorismo a esta escala, nem tinha a noção de que os fundamentalistas poderiam cometer tais actos. Foi um choque. A sociedade reagiu. Houve manifestações contra o terrorismo, todos os partidos manifestaram repúdio pelo sucedido. O próprio partido islamista no Parlamento foi obrigado a demarcar-se dos actos violentos de Casablanca, sob pena de atrair sobre si o ódio da população.

As feministas estavam atentas. O rei colocou-se ao lado delas. E em Fevereiro de 2004 foi apresentado ao Parlamento o projecto com todas as alterações ao Moudawana. O Partido da Justiça e do Desenvolvimento não teve outro remédio senão votar a favor. O novo Código da Família foi aprovado por unanimidade. E foi assim que os islamistas acabaram por desempenhar um papel decisivo na libertação da mulher marroquina.

Não há um direito muçulmano

Mbarka Bouaia nasceu há 34 anos no Sara Ocidental. E lembra-se de como lá, na cultura tradicional das tribos nómadas do deserto, a mulher sempre desempenhou um papel predominante na sociedade. “Eram sociedades matriarcais. É essa a tradição do Sara. As mulheres mandavam na família e eram líderes nos negócios.”

Essa é uma das razões que poderão colocar Marrocos na vanguarda da revolução feminista do mundo muçulmano. Também nas sociedades berberes, pré-islâmicas, a função da mulher era importante. As mulheres aqui, historicamente, não eram oprimidas.

Mbarka foi estudar Economia e Gestão para o Reino Unido, depois para França e Espanha, e poderia ter tido uma carreira de sucesso na Europa. Mas em 2003, pouco depois dos atentados de Casablanca, decidiu voltar. “Eu queria fundar uma rádio”, recorda ela. E fundou. A Rádio Mars, que ainda existe. Mas tinha outras ambições. “Agora é possível fazer qualquer coisa”, pensou. “É difícil, mas é possível.” E inscreveu-se num partido, liberal, o Rassemblement National des Indépendents (RNI), que hoje está na coligação governamental. Mbarka pertence ao Conselho Nacional.

“Acredito que é possível agir dentro do sistema político.” No Parlamento, na comissão dos Negócios Estrangeiros, da Defesa Nacional e dos Assuntos Religiosos, de que é presidente, ou no Conselho Comunal do seu bairro, em Casablanca, para que foi eleita, Mbarka tem como objectivo lutar pelos direitos das mulheres. Mas não de forma explícita. “Percebi que, para serem levadas a sério na política, as mulheres não podem apenas ocupar-se dos direitos das mulheres. Isso é uma forma de se auto-excluírem. Elas têm de se envolver noutras questões do Estado. É aí que se afirmam.” A estratégia é esta: “Acredito que os direitos das mulheres vêm com a democracia.” Há portanto que lutar em várias frentes.

Mbarka está envolvida em muitas causas ao mesmo tempo. Não tem tempo para a vida privada, nem talvez lhe fosse permitido tê-la, pela opção de vida que fez. De todas as mulheres com quem falámos envolvidas na causa feminista, são raras as que formaram família, têm marido ou namorado. É uma espécie de preço a pagar por serem a vanguarda. “Eu não vim para Marrocos para ter uma vida confortável”, diz a deputada.

“Eu gosto de resultados. Envolvo-me em combates que é possível vencer.” Um dos mais recentes, por exemplo, foi para baixar o preço dos medicamentos. Não é uma causa especificamente feminista, mas o êxito que obteve acabará por dar mais crédito à política feita por mulheres.

Uma das lutas dos últimos anos tem sido a de trazer as mulheres para a política. Graças a uma política de quotas, há hoje 34 mulheres no Parlamento. Mas o próximo objectivo, explica Mbarka, é a política local. “Introduzimos as quotas, de obrigatoriedade de 12 por cento, nas eleições regionais de 2009. Já temos, em todo o país, mais de três mil mulheres como conselheiras locais. Mas não é suficiente. A descentralização é o próximo passo.”

Porque se nas grandes cidades, como Casablanca ou Rabat, é visível a mudança de hábitos, no mundo rural tudo é muito mais difícil. Nas aldeias marroquinas, a mulher deve obediência ao homem. Muitas mulheres vivem fechadas em casa, não trabalham, não vão à escola, sofrem maus tratos. A poligamia é prática comum. Frequentemente com raparigas muito jovens. Em dez por cento de todos os casamentos realizados oficialmente em Marrocos, a cônjuge é menor. Isto sem contar com os casamentos tradicionais, sem formalização oficial.

Fouzia Assouli é presidente da Federação da Liga Democrática para os Direitos das Mulheres (FLDDM). Entre as várias actividades da federação, que integra cinco associações de mulheres, estão as caravanas. Reúnem professores, médicos, advogados, artistas, teólogos, jovens voluntários, e partem, em vários carros, pelo país fora. Cada caravana, onde seguem, em média, 150 pessoas, faz sessões de esclarecimento sobre problemas sociais, médicos, jurídicos. Encenam teatros para as crianças, dão aulas de educação sexual para os jovens, convocam reuniões especiais para os homens. Ao mesmo tempo, realizam inquéritos sobre os níveis de aplicação real das normas do novo Código da Família. O Governo não tem capacidade de fazer o mesmo e por isso usa os relatórios elaborados pela FLDDM.

Fornecem ajuda de vários tipos e, ao mesmo tempo, doutrinam sobre a igualdade entre os sexos. Fazem o mesmo nos vários centros que gerem em Casablanca, e onde há cursos de artesanato, de cabeleireiro ou de alfabetização. É uma autêntica rede de apoio a mulheres desprotegidas, que funciona em vários edifícios distribuídos pela cidade e arredores.

Aprender a ler o Corão

Saída Aziz, 34 anos, está numa aula de artesanato a aprender a fazer caixas tradicionais, em veludo e renda. Veio de uma aldeia, Benni Mellal, a 200 quilómetros, nunca foi à escola, nunca teve trabalho. O objectivo era casar-se, mas não teve pretendentes. Agora quer arranjar um emprego. Por isso procurou a associação.

Na aula de alfabetização, encontramos Leila S., 24 anos, que tem um filho de sete e um casamento arranjado. Nunca foi à escola, passa o seu tempo fechada em casa. Mas, agora que o marido foi uns meses para o estrangeiro trabalhar, decidiu vir aprender a ler. Está aqui secretamente. O marido não sabe nem pode saber. “Ele tem medo que, se eu aprender a ler e escrever, acabe por sair de casa”, explica Leila, que, dentro de dois dias, quando o marido regressar, terá de abandonar o curso. Mas então por que vem ela aqui? “Quero aprender a ler o Corão”, responde.

No curso de cabeleireiro, o clima é mais solto. Há raparigas e rapazes. “Não quero estar em casa”, diz Loubna Elhattabe, 25 anos, como explicação para frequentar as aulas. “Quero aprender uma profissão. E saber ser responsável, talvez até gerir o meu próprio salão. Aprendi aqui muitas coisas. Antes não conhecia os meus direitos.”

Vê-se que as formadoras não têm descurado o trabalho teórico. Todos os alunos falam dos direitos das mulheres, da igualdade. Até os rapazes. Mohammad Morid, 21 anos, é actor e cantor, e também maquilhador e cabeleireiro num estúdio de cinema. É o artista do grupo e, para mostrar que não tem preconceitos, interpreta, para os colegas e os repórteres, uma canção tradicional, com uma bela voz de tenor. “A mulher é igual ao homem”, diz. “Não há qualquer diferença. Tem todas as capacidades e deve assumir um papel importante na sociedade.” Depois diz que já tem namorada e tenciona casar com ela. Mas quando a formadora, orgulhosa do seu pupilo, lhe pergunta se vai deixar a sua esposa trabalhar, ele põe um risinho másculo e diz, cheio de convicção: “Nunca! A milha mulher fica em casa, a tomar conta dos filhos e a descansar.”

A uns 30 quilómetros de Casablanca, num local que as assistentes sociais da federação mantêm secreto, fica o seu albergue para mulheres maltratadas. É uma casa grande, com jardim. As mulheres que aqui estão fugiram dos maridos e, na maior parte dos casos, eles andam atrás delas... para as matar. São algumas dezenas de mulheres e estão agora na cozinha, a aprender a fazer bolinhos. Noutra sala estão as crianças que fugiram com as mães. Algumas têm poucos meses de idade.

A filha de Rkai tem dois anos. A mãe, 21. Casou com 18 anos, com um homem de 30. Mas não foi um casamento arranjado. “Foi por amor.” Começaram a sair e depois fizeram uma grande festa de casamento. “Ele prometeu-me que eu teria liberdade de ir visitar os meus pais, de ter amigos, etc. Mas não cumpriu nada.” Como Rkai saiu com ele antes do casamento, ele convenceu-se de que ela faria o mesmo com outros homens, agora que eram casados. Fechou-a em casa. Saía e trancava a porta e as janelas, para que ela não pudesse olhar para a rua. Depois começou a bater-lhe, por pensar que, mesmo fechada em casa, ela o traía. “Foram dois anos de violência física, sexual, psíquica”, resume Rkai. Conseguiu queixar-se à mãe, e ele bateu nela também.

A culpa da sociedade

Um dia Rkai fugiu. “Não conseguia abrir os olhos, com a luz, por estar habituada a estar em casa às escuras.” Foi para Rabat, dormiu na estação. Telefonou à mãe e ela deu-lhe o contacto do Centro de Escuta da associação. O marido foi lá depois, procurá-la, mas não lhe deram qualquer informação. Deixou a filha e anunciou que procuraria a mulher até ao fim do mundo, para a matar.

A religião islâmica não pode ser responsabilizada por este tipo de comportamento, diz Fouzia Assouli, a líder da FLDDM. “Não é a religião. É a sociedade patriarcal, uma mentalidade enraizada. A religião é usada apenas como pretexto. O islão tem de alterar as suas regras. As outras duas religiões monoteístas — o cristianismo e o judaísmo — já o fizeram. Ao contrário do que alegam os islamistas, não existe um Direito muçulmano. Há apenas interpretações.”

Fathia Bennis, 60 anos, presidente do Maroclear, o banco central dos bens mobiliários de Marrocos, desmistifica também a questão do Direito muçulmano. “É um falso problema. De acordo com o próprio islão, o Corão deve ser interpretado à luz dos valores e realidades de cada época. No tempo de Maomé, as mulheres combatiam, faziam tudo. O que estamos a viver é um regresso à cultura árabe pré-islâmica.”

O que realmente impede a mudança, pensa Fathia, que estudou na Sorbonne e fez uma carreira de sucesso como gestora em Marrocos, “é a pobreza”. “Foi por isso que os islamistas conquistaram influência. Por actuarem onde o Governo não chegava. Mas é tempo de o Governo dar respostas. É tempo de as mulheres darem respostas.”

E começam a dar, cada uma à sua maneira. Quase sempre sacrificando uma vida familiar. Por vezes completamente sozinhas, como Boushra, a pintora eremita. Por que pinta ela sobre areia? Eis a resposta: em criança, viu uma vez uma declaração de amor escrita na areia da praia. Era de um rapaz que nunca foi autorizado a ver a rapariga por quem se tinha apaixonado, que estava fechada em casa. Mas ela, ao fim da tarde, dava um pequeno passeio com uma tia e, às escondidas, escrevia também uma frase na areia, para ele. Boushra assistiu a este diálogo durante meses. Mais tarde decidiu que seria na areia que diria tudo o que tinha a dizer.

Ou como Jamila, que decidiu fazer uma vida normal com as filhas, depois da separação do marido. Por que razão ele a deixou? Eis a resposta: porque ele queria filhos, e a mulher, por sua própria culpa, dizia ele, só deu à luz meninas. A mais velha, Hanane, teve um namorado e casamento marcado. Mas uma semana antes desistiu, porque descobriu que ele tinha outras. “Enquanto namorei, ele proibiu-me de ter amigos e amigas, de sair, de falar com pessoas. Eu aceitei tudo, porque pensava que isso era o correcto. Agora abri os olhos. Nunca mais o aceitarei.” E se nenhum homem a quiser assim? “Paciência. Opto por trabalhar, ser independente. Sacrifico o amor. Mas nunca mais serei escrava.”

Hanane talvez tenha descoberto a resposta. A que sabe que a revolução das mulheres é de todas a mais difícil, porque tem de ser feita no coração. Jamila, que teme os líderes religiosos porque o seu pai era imã, ouve a filha com orgulho. Depois, a nosso pedido, segue para a Corniche. Por que não vai lá muitas vezes sozinha? Porque as pessoas perguntariam: qual é o objectivo? De que anda ela à procura? Desta vez, é para fazer uma fotografia para esta revista que ela está aqui. Jamila, a mulher marroquina, a posar, de pé, em frente da mais alta mesquita do mundo.

Reportagem publicada na edição da revista Pública de 4 de Julho de 2010
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