Rock In Rio? O Rock In Rio é um outro mundo

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Palco principal do Rock In Rio Enric Vives-Rubio

É hoje, gente, é hoje! Haverá quem salive por este dia, com lacrimejar contido, desde que há um ano caiu da Ponte 25 de Abril a já habitual chuva de fogo-de-artifício que marca a contagem decrescente para o Rock In Rio. E se há quem salive e quem lacrimeje, não o faz simplesmente por pensar na tanta música que verá na Cidade do Rock. Isso terá acontecido há muito, muito tempo, quando Portugal se preparava para ser oficialmente da Europa e o Brasil estava a um passo de entrar no roteiro dos concertos de estádio.

Em 1985, ano do primeiro Rock In Rio, o povo roqueiro brasileiro lacrimejou. Iria ver os Queen, os Iron Maiden, os AC/DC, Rod Stewart, James Taylor, os Scorpions, os Whitesnake e dezenas de outros que passaram pelos dez dias de festival. Em 2010, o povo português que lota a Cidade do Rock edição após edição tem Shakira hoje, Elton John amanhã, Muse dia 27, Miley Cyrus a 29 ou Megadeth a 30.

Muito interessante, sem dúvida. "Mas o que é que isso interessa?", pergunta o homem que há dois anos, resoluto, inamovível, passou parte da tarde na fila de espera que lhe deu acesso ao magnífico sofá insuflável com que, semanas depois, deslumbrou os companheiros de veraneio da praia de Tavira. "E este ano também há comboio-fantasma?", quer saber a criança, dois anos menos criança do que quando viu materializar-se no Parque da Bela Vista a Feira Popular de que ouvira falar os mais velhos.

Se já ouviu dizer que o Rock In Rio é um mundo, não julgue que é exagero. É mesmo. Um mundo paralelo, uma espécie de versão festival de Verão da fusão chinesa de comunismo e capitalismo. Ou seja, acolhe concertos, defende a ecologia e a ajuda os necessitados ("por um mundo melhor!") e é ao mesmo tempo um gigantesco parque de diversões apelando ao povo a que liberte efusivamente, e em alegre comunhão, as suas pulsões consumistas.

Do Palco Mundo à tenda electrónica, passando pelo Palco Sunset, pelas várias zonas de alimentação, pelo espaço Fashion, onde são atendidos todos os sonhos capilares, pelos passatempos incessantes nos stands das várias marcas presentes, a música é uma constante. Está por todo o lado. É a argamassa que impede o Cidade do Rock de entrar em colapso.

E assim será enquanto o Palco Sunset exibir os seus encontros musicais ao fim do dia (Boss AC & Yuri da Cunha estão lá esta tarde, Jorge Palma & Zeca Baleiro apresentam-se a 27); enquanto for possível passar pela zona mais alta do parque, observar o anfiteatro natural e perceber que, lá em baixo, no Palco Mundo, estão Mariza, Ivete Sangalo, John Mayer ou Shakira (a programação para esta noite), Elton John ou os reunidos Trovante, que chegarão amanhã, os épicos Muse, a adolescente Miley Cyrus ou os históricos Motörhead, que se dividirão pelas três datas de Rock In Rio da próxima semana (dias 27, 29 e 30 de Maio); enquanto houver gente a dançar de madrugada na tenda electrónica ao som de Major Lazer (amanhã), da house de Deadmau 5 ou do electro de Calvin Harrins (esta noite).

Enquanto houver gente em palco, podemos viajar na roda gigante com vista sobre todo o recinto e sonhar com o serviço militar descendo o slide em frente ao palco principal (entretenimento clássico do Rock In Rio). E podemos experimentar a montanha-russa, apanhar o Elevador Sensorial de odores e temperaturas variáveis e testar a resistência do estômago, sentados em bancos confortáveis, na estrutura de queda livre (a Free Fall), que, por estar instalada nas proximidades da Shopping Village, a zona de compras, trava uma luta desigual pela atenção do público.

No Rock In Rio, é devido um sincero agradecimento aos artistas. São eles que mantêm a Cidade do Rock de pé enquanto tal: são eles que nos asseguram que o festival é mesmo um festival - deixando desse modo o público livre para curtir a sua vida (que pode ser, atentem, experiência de 24 sobre 24 horas: este ano a organização erigiu um hotel, cujas suites serão atribuídas ao público por sorteio).

Miley Cyrus e a zona VIP

Tendo isto em perspectiva, cremos até que seria possível às estrelas em cartaz passear pela Cidade do Rock sem incómodo e livres de fãs histéricos, anonimamente. Fora do palco, não haveria cá estrelatos. Seriam como cada um de nós.

Excepção, naturalmente, para Shakira, a bomba líbano-colombiana, a She wolf que surge como grande destaque do dia de abertura. Dia de peso: Shakira abanando as ancas depois de Ivete Sangalo provocar um furacão tropical com os seus "levanta o pé do chão" e de Mariza inaugurar o Palco Mundo às 19h00 (entre Ivete e Shakira, para descansar o corpo, apresenta-se John Mayer e o seu blues de grande produção que faz as delícias das rádios americanas).

Mas voltemos a Shakira, para fazer o tal exercício de imaginar como seriam as estrelas, se fossem meros anónimos. Ela não poderia aproveitar a Cidade do Rock, porque estaria a ser entrevistada em permanência para um qualquer canal televisivo português, assim demonstrando que não corresponde ao estereótipo de estrela pop vazia e que fala de coisas e outros assuntos interessantes, tanto em prime time como no resto do tempo.

Deambulando pelo recinto, poderíamos ainda encontrar os reunidos Trovante percorrendo sofregamente as várias bancas de produtos oficiais, tentando pôr as mãos no máximo de merchandise disponível - merchandise dos próprios Trovante, entenda-se, que estas reuniões são raras (é a terceira desde 1999) e a banda de Luís Represas e João Gil quererão guardar tudo o que for possível para recordar o momento histórico.

Os D"ZRT, que são gente nova e sobem a palco no dia da criançada (29 de Maio: Miley Cyrus, McFly, Amy McDonald), prefeririam por razões óbvias retocar penteado e maquilhagem no Espaço Fashion - sabem como é, na televisão está sempre tudo no lugar, mas os concertos dão nisto, despenteiam.

E Miley Cyrus, a estrela da série Hannah Montana? Poderíamos vê-la, sem grande imaginação, a passear os seus 17 anos em prospecção de mercado pelo Espaço Kids. Ou melhor, talvez seja melhor reformular. Depois da recente revelação de um vídeo em que a impoluta estrela adolescente, ídolo de crianças mundo fora, protagoniza uma interessante table dance em festa com a equipa de filmagens, não espantaria que preferisse resguardar-se no castelo imponente que se ergue no ponto mais alto do Parque da Bela Vista: a zona VIP, fortaleza onde a beautiful people se resguarda do "povão".

Tendo em conta o seu estatuto, Miley Cyrus não estaria simplesmente na zona VIP. Estaria na zona VIP da zona VIP - não está confirmado que exista, mas em que outro sítio se poderia refugiar para concentração e umas massagens relaxantes a estrela maior do festival, o Elton John de Your song, Daniel ou Sacrifice?

Espaço Sensorial

Que mais? Ora, os Xutos & Pontapés arriscando, finalmente, aquilo que vêem os outros fazer em todos os Rock In Rio: subir a escadaria do Slide, com a bandeira nacional na mão e lançar-se. Depois gritariam "Portugal!" E os Muse, ou os Snow Patrol ou os Sum 41 (companheiros de cartaz a 27) observariam do palco aquele cenário.

Por fim, no último dia, o dia em que o Rock In Rio ganha peso com os alemães Rammstein, os Megadeth de Dave Mustaine ou os Soulfly do ex-Sepultura Max Cavalera, Lemmy Kilmister, dos históricos Motörhead, andaria perdido e cabisbaixo, vagueando sem rumo pelo recinto.

Ele que foi roadie e dealer de Jimi Hendrix (mas não se recorda muito bem, como afirmou em incontáveis entrevistas), procuraria um casino que não existe, um sítio onde lançar o Ace of spades em partida de póquer. Lenda viva rock"n"roll, homem com uma vida de excessos tatuados no corpo, peixe fora de água neste cenário, Lemmy Kilmister encontraria refúgio no Elevador Sensorial, cujos efeitos serão aquilo que o Rock In Rio tem de mais parecido com uma trip. Seguiria depois para uma viagem na roda gigante.

Lá de cima, em todo o seu esplendor, as centenas de luzes piscando, os sons a misturar-se e o impressionante corrupio de gente. Novos e velhos, ricos e remediados. Sentados na relva, dançando ou caminhando até à próxima distracção, carregados com o material promocional acumulado durante o dia.

Lá de cima, Lemmy Kilmister exclamaria, no último dia do Rock In Rio que começa hoje: "Isto é outro mundo."

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