Há quatro anos, estávamos nesta sala a assistir ao fim do Museu de Arte Popular (MAP). A então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, chamou os jornalistas e comunicou-lhes que o espaço, que se encontrava encerrado, iria ser transformado no novo Museu do Mar da Língua.
Havia já um projecto de arquitectura que previa que as pinturas murais fossem emparedadas - quem quisesse vê-las teria que se encolher e espreitar por detrás das paredes falsas. Dificilmente alguém acreditaria que aquele não era o fim do museu inaugurado em 1948 por António Ferro, director do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e com que o Estado Novo quisera celebrar a cultura popular.
Mas, contra tudo e contra todos, o museu conseguiu expulsar a Língua e as paredes falsas, e reabre agora as portas para uma inauguração antecipada de um dia. Só será verdadeiramente inaugurado no último trimestre do ano, mas, amanhã, Dia dos Museus, o MAP vai mostrar-se de novo à cidade (entre as 10h e as 18h, com visitas guiadas, oficinas de artesanato e teatro).
Estamos de volta à mesma sala e o que se vê são técnicas da Fundação Ricardo Espírito Santo, no cimo de andaimes, a trabalhar no restauro das pinturas murais. Afastada a ameaça de emparedamento, os grandes painéis que decoram as paredes das várias salas são, num museu que ainda não recuperou a sua colecção (guardada temporariamente no Museu de Etnologia, mas pronta a regressar), o centro das atenções.
Há o painel de Lisboa, em tons de amarelo e azul, com peixeiras, manjericos, Santo António e fado (pintura de Paulo Ferreira, 1948), há, do mesmo autor, Terra Saloia, permanente romaria da Estremadura, Ribatejo, arte popular da bravura, e Nazaré, ex-voto do Mar Português. Tomás de Mello (Tom) e Manuel Lapa pintaram, logo na primeira sala, Minho, caixa de brinquedos de Portugal. As Beiras couberam a Carlos Botelho, o Alentejo a Estrela Faria, Trás-os-Montes a Eduardo Anahory, a Tom e a Manuel Lapa, e o Algarve novamente aos dois últimos.
"Como é que passou pela cabeça de alguém que era possível ocultar estas pinturas?", indigna-se o crítico de arte Alexandre Pomar, um dos activos defensores da continuação do MAP (juntamente com a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, a empresária Catarina Portas, e as artistas Joana Vasconcelos e Rosa Pomar, que chegaram a ir bordar para a porta do museu como protesto), e que no seu blogue (alexandrepomar.typepad.com) tem reunido uma enorme quantidade de informação sobre a história do museu.
"Não têm a componente política de serem artistas da oposição, mas não são menos valiosos por isso", defende, referindo-se à equipa de pintores modernistas reunida por Ferro. "São representantes de um compromisso dos pintores modernistas, uma modernidade pacificada. Este é o momento que melhor sobreviveu do trabalho dessa equipa que se destacou na Exposição do Mundo Português em 1940 [para a qual foi construído o primeiro pavilhão, o da Vida Popular, que viria a ser adaptado para o MAP pelo arquitecto Jorge Segurado] e em exposições internacionais", como a das Artes e Técnicas da Vida Moderna, em 1937, em Paris.
O capitão Henrique Galvão [que viria a celebrizar-se pelo afastamento do regime e o assalto ao paquete "Santa Maria"] "atacou ferozmente aqueles pintores, acusando-os de um cosmopolitanismo europeu quando a arte portuguesa devia desenvolver a sua relação com o Ultramar", explica Pomar.
"Esse apelo que Ferro faz à estética modernista em conjunto com a valorização da arte popular tem muito a ver com o seu contacto, logo desde os anos 20, com o movimento modernista, nomeadamente na Semana da Arte Moderna, em 1922 em São Paulo", sublinha Vera Marques Alves, antropóloga e autora da tese Camponeses Estetas no Estado Novo.
"Ele faz essa afirmação da identidade nacional através da reinvenção da estética popular já na [revista] Ilustração Portuguesa [início dos anos 20] e em 1921 fala na criação de bailados portugueses que recuperem o folclore, ideia que mais tarde leva à criação do Grupo de Bailado Verde Gaio." É uma alternativa à História dos grandes feitos e heróis, e "a estética contemporânea é uma forma de mostrar a arte popular como afirmação de uma nação plena de vitalidade no presente" e não a viver de glórias passadas.
O que é o "popular" hoje?O MAP "é um projecto que vem de 1936, altura em que é completamente contemporâneo", explica Vera Alves. Mas sofre atrasos e em 1948, quando abre, "já está um bocadinho fora do tempo". É sobretudo um projecto de Ferro, diz a investigadora, e "nunca é muito acarinhado pelo regime". Sofre sempre de problemas estruturais, só tem electricidade em 1952, nos anos 60 corre o risco de fechar, mas o seu exterior serve de palco, no final dessa década, ao Mercado da Primavera, que, depois do 25 de Abril, se transforma no Mercado do Povo.
Mas, ao contrário dos outros museus do seu tempo, o MAP sobreviveu, congelado, praticamente esquecido. Chegou "intacto até hoje e é isso que o torna um caso único", defende o antropólogo João Leal. "É raro encontrar exemplos de museus que tenham sobrevivido tanto ligados ao seu projecto inicial."
O que se faz hoje de um museu assim? "É importante mostrá-lo como produto de um determinado discurso que teve a sua época e que pode ser desconstruído", diz João Leal. E abri-lo às expressões das culturas populares de hoje. "Durante muito tempo, elas eram valorizadas como testemunho de um mundo em extinção. Procurava-se o que era autêntico, legítimo, o menos tocado pelas culturas urbanas."
Hoje sabe-se que nunca nada esteve nesse estado puro e que as culturas populares foram sempre híbridas e inseridas em dinâmicas históricas. É possível "pôr em diálogo o popular e o erudito", assumir a hibridização do popular, afirma Leal, lembrando as queens (rainhas) das festas do Espírito Santo, nos Açores, uma influência dos emigrantes que foram para os Estados Unidos e o Canadá.
É a Andreia Galvão, directora do MAP e autora de uma tese sobre o arquitecto Segurado, que cabe a tarefa de "descongelar" o museu. Como? Primeiro, assumindo este museu-documento como uma cenografia que ele sempre foi (Segurado falava na arquitectura como cartaz, lembra Galvão), nesse conjunto "indissociável" entre arquitectura, pinturas murais (com as frases que as acompanham, que terão sido inventadas pela poeta Fernanda de Castro, mulher de Ferro) e a colecção.
Para já, o MAP, com uma equipa ainda pequena mas com um "corpo de voluntariado notável", será um "museu em obra", aberto a quem queira ver como vai nascendo - isso acontecerá no site que será apresentado amanhã, e no qual será possível marcar visitas guiadas ou fazer inscrições nos ateliers de Verão. O exterior, que está degradado, vai também ser recuperado.
Haverá núcleos de memórias. "Estamos a trabalhar com a Cinemateca, teremos filmes de época, sobre a Exposição do Mundo Português e não só, vamos recorrer a muitos documentos da época. Com o Museu do Traje estamos a estudar a possibilidade de trazer o núcleo ligado ao Grupo de Bailado do Verde Gaio", explica a directora. A colecção de fotografias do "povo português" em trajes tradicionais, que estava nas paredes do museu e foi guardada no CCB quando ele fechou, já está de volta e vai ser recuperada.
A colecção só regressará do Museu de Etnologia para a reabertura definitiva, mas para já será possível ver o mobiliário expositivo da época, de Jorge Segurado e Tom, que está a ser recuperado.
Haverá também núcleos interpretativos temáticos ligados aos diferentes espaços no museu. E, claro, a ligação à contemporaneidade: "Vamos explorar o conceito de contemporâneo na arte popular, trabalhar coisas como a reutilização de materiais orgânicos ou a investigação tecnológica no ramo das técnicas tradicionais." O MAP será ainda "uma embaixada do país em Lisboa" aberto às comunidades "para mostrarem o melhor que tenham, da gastronomia às festas".
Só muito poucos acreditaram que seria possível. Mas amanhã o MAP vai provar que há museus que se recusam a morrer.