Aos autores o que é dos autores

A lógica prevalecente no seio da Comissão Europeia aponta para a defesa dos consumidores em detrimento do interesse dos criadores.

Um novo capítulo deste longo e intrincado debate acaba de ser escrito por uma expressiva coligação de autores de todas as disciplinas e de todas as regiões que não hesitaram em alertar para o que consideram serem manifestas deficiências patentes no documento elaborado pela eurodeputada Julia Reda (Partido Pirata Alemão) sobre o tipo de adaptação da Directiva Sobre Direitos de Autor. Esse documento foi publicado em Janeiro deste ano e aborda um conjunto de questões que os membros desta coligação consideram ser lesivas dos interesses já tão afectados dos criadores europeus em geral.

A carta em que se comenta o documento de Julia Reda é assinada pelo presidente da CISAC (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores), o compositor francês Jean Michel Jarre, e pelos seus vice-presidentes, que representam quase quatro milhões de autores dos cinco continentes.

Consideram os autores deste detalhado comentário crítico que a eurodeputada padece desta perigosa ambivalência: por um lado, ignora o modo como a estrutura e a lógica do mercado afecta os criadores e, por outro lado, não imagina a desejável criação de um sistema, bem mais justo e equilibrado, que leve em conta os direitos de quem cria, ao mesmo tempo que estabelece para os autores uma remuneração adequada pelo uso cada vez mais amplo das suas obras, designadamente através da via digital. A questão está longe de ser nova, mas agravou-se e tudo leva a crer que esse agravamento corresponde a uma visão que pode tornar-se perigosamente dominante no âmbito da Comissão Europeia, risco para o qual alertámos, em artigo anterior, nas páginas de opinião do PÚBLICO.

Escrevem os autores desta carta-comentário: “Coincidimos na necessidade de se obter um efectivo equilíbrio entre os titulares de direitos e o público, mas esse equilíbrio não pode alcançar-se à custa da comunidade dos criadores, que é cada vez mais frágil”. Os autores desta carta sublinham a necessidade de se encontrar um justo ponto de equilíbrio em matéria de excepções e limitações ao direito de autor unicamente na perspectiva dos benefícios reservados aos utilizadores, sem se levar em conta o impacto do chamado “acesso livre” sobre os interesses morais e económicos dos criadores.

Por outro lado, no que diz respeito à duração do tempo de protecção dos direitos de autor, os autores deste documento rejeitam a tese defendida pela eurodeputada Reda, segundo a qual deverá ser um período que não exceda as actuais normas internacionais vigentes, o que representa, segundo eles, uma tentativa de redução do prazo estabelecido em toda a Europa. “Agora que as tecnologias digitais permitem aceder à fruição das nossas obras, e protegê-las para sempre, parece mais justificado que nunca dilatar o prazo de protecção”, afirmam.

Em conclusão, os autores da carta, com a força de nomes como Jean Michel Jarre, Angélique Kidjo ou Marcelo Piñeyro, exigem que a eurodeputada Reda “faça o que é correcto”, “garantindo o futuro dos criadores da Europa" e “apoiando um mercado mais justo para os autores”. E está longe de ser uma exigência pesada quando é a cultura que se encontra em jogo.

Os autores desta carta sabem que têm a razão do seu lado, mas não ignoram que a lógica prevalecente no seio da Comissão Europeia, na linha do que tem sido a acção de vários governos nacionais, aponta para a defesa dos consumidores em detrimento do interesse dos criadores, como se não fosse claro e definitivo que o empobrecimento real de quem escreve, pinta, filma, realiza ou compõe acabará por afectar a riqueza dos países, bem como a solidez das suas identidades nacionais e toda a atractividade internacional que eles conseguem criar com as suas obras em circulação cada vez mais ampla e partilhada.

Aqui vale a pena destacar uma afirmação muito recente do realizador alemão Wim Wenders, numa breve entrevista ao programa 28 do canal Arte: “A Europa tem de perceber, enquanto é tempo, que a cultura é verdadeiramente o seu único capital”.

Também por isso, é justo que recuperemos uma conhecida afirmação de François Mitterrand, quando lhe perguntaram quem iria ser o seu ministro da Cultura escassos dias após a sua eleição presidencial e ele respondeu com certeira eficácia: “No meu Governo, todos são ministros da Cultura”. Enquanto este princípio não tiver força bastante para definir regras e prioridades, haverá sempre governos que despromovem a Cultura do estatuto de ministério para o de secretaria de Estado, ou de secretário de Estado, com toda a perda de poder negocial decorrente e com o consequente e inevitável apagamento político do papel da cultura na definição de grandes estratégias estruturantes e mobilizadoras para o futuro. É também essa clareza e essa coragem que se espera e exige do que virá a ser o próximo Governo português, desejavelmente com vontade de reformular questões de fundo que vão desde a comunicação social à promoção internacional da nossa cultura como factor de prestígio e de congregação de energias e vontades. E já não falta muito para vermos o que (e com quem) irá acontecer.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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