Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar os outros
Em Portugal chamaram-lhes “retornados”, o que significava que tinham supostamente voltado ao ponto de onde tinham partido. A viver em Angola, há quem sinta que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi.
Vivem em lusomódulos estes operários portugueses. É o nome da marca desses pequenos cubículos pré-fabricados com ar condicionado acoplado. Estaleiros como este incluem uma miniclínica, com enfermeiro e médico portugueses, uma cantina com cozinheiro português para que não se ressintam com a diferença de alimentação. De dia trabalham, nas horas vagas podem jogar dentro daquele recinto entaipado, matraquilhos, snooker, pingue-pongue, têm acesso à Internet.
Chamam-se “base de vida” a estaleiros de construção civil como este do Grupo Lena Angola, que está instalado no meio do mato, na aldeia do Luvuei, província do Moxico (Leste de Angola). É assim chamado porque é suposto conter tudo o que necessitam para ali viver, sem precisarem do mundo exterior. Assim, a ganhar dinheiro sem terem grande sítio onde o gastar, até terem férias e poderem regressar a Portugal.
João Duarte, engenheiro civil de 32 anos que trabalha há dois anos em Angola, é por isso que anseia, pelas férias. Angola é recurso, Angola é ponto de passagem. Tem a família, a mulher e a filha de três anos na Golegã. Veio para Angola adivinhando um fim que não foi surpresa para nenhum dos que trabalhavam na sua empresa. Ele antecipou-se e quando a Asibel Construções, na Batalha, anunciou insolvência já se tinha vindo embora.
Em Angola, veio trabalhar para uma empresa portuguesa de construção, mas agora já passou para uma israelita. Mudou porque a remuneração não é só o ordenado e nesta empresa, além de ganhar melhor, passou de 22 para 54 dias de férias, tinha direito a ir três vezes por ano a Portugal, agora são quatro. E é isso que ele quer, juntar o máximo de dinheiro e ir o máximo de vezes ter com a família. Se a Asibel continuasse de portas abertas, ele estaria em Portugal.
Júlio Almeida está hoje sentado numa esplanada próximo da marginal de Luanda, na cervejaria Rialto. Está sozinho, numa pose de observador. É o que tem feitos nos últimos anos, estudá-los, a estes portugueses “que chegam às malgas” empurrados pela crise, que chegam e vão, às temporadas. “Nos últimos sete anos, todos os dias chegam.” Ao falar desses portugueses é como se houvesse entre ele e eles um fosso que os separa, um “eu” e “os outros”. É verdade que ele só voltou definitivamente “a África” na década de 1990, mas, no seu caso, é como se nunca de cá tivesse saído.
Em Portugal, chamavam-lhes em tempos “retornados” — “não brinques com eles que são retornados”, ouviu Júlio na escola — porque supostamente tinham voltado ao ponto de onde todos tinham partido. A viver em Luanda, ele sente que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi. Não está sequer a falar de Angola. A sua infância nos tempos em que Portugal “ia do Minho a Timor” foi em Moçambique, mas lá ou em Angola, é como se tudo fosse uma continuação. Fala de “África” como se fosse um país.
Nasceu em 1968 em Moçambique, a sua foi a última família portuguesa a sair de Vila Pery, agora chamada Chimoio. Com o 25 de Abril e a chegada da independência do país, em sua casa foram ficando estacionados vários carros, cerca de 15. Pertenciam às famílias que não puderam fugir a conduzir para Portugal, pessoas desesperadas que tentaram transformar tudo o que possuíam em dinheiro. O avô de Júlio foi-lhes comprando estes carros que não podiam levar com eles, por ser “bom samaritano” e porque estava convencido de que ele próprio nunca ia fugir, como esses portugueses que lhe pediam ajuda.
A família de Júlio Almeida, portugueses radicados em Moçambique há três gerações, foi, de facto, ficando. Com os carros dos outros a apanhar pó, sem nunca lhes ligarem o motor. Ficaram mesmo quando viam passar “camionetas com pessoas estropiadas” a serem levadas para o hospital, mesmo quando na escola ficava triste porque havia colegas que deixaram de o chamar Júlio para se passarem a dirigir a ele como “o branco”, mesmo quando havia tiros na rua e as janelas de casa passaram a estar forradas a colchões, mesmo quando já não havia petróleo para comprar, nem sabão, nem massa, nem arroz.
O avô e o pai teimavam em ficar, “isto ainda há-de ser terra para todos”. Até que a matriarca, avó Maria Ernestina, a independência tinha sido declarada há cinco anos, corria já 1980, disse: “Se vocês quiserem ficar ficam, eu pego nos miúdos e levo-os.” Júlio tinha sete anos. E os homens da família acabaram por aceitar o inevitável. Passaram os últimos dias em Moçambique a comer lagosta e camarão, a gastar o dinheiro que em Portugal não ia valer nada. Os carros lá permaneceram, estacionados.
Espinho. 1980. “O frio.... Senhoras de lenços na cabeça.” Quando Júlio Almeida chegou a Portugal: “Pensei que aquilo era o inferno.” Ao avô e ao pai pareceu-lhes o mesmo. O avô morreu três anos depois de terem voltado para Portugal, e o pai, cinco anos. Acha que foi da amargura: “Definharam e morreram. Vi-os morrer de tristeza.” A avó ainda insistia com o avô, para ver se ele saía de casa e se animava — “vai lá fora, vai ao café”, e ele respondia-lhe “e vou conversar o quê com esta gente?”. “Com esta gente.” Era a completa falta de identificação. Júlio não deixou que isso lhe acontecesse. Tirou o curso na Escola de Hotelaria do Porto e voltou. Primeiro para Moçambique, depois para Angola. Para África.
Voltou uma vez a Vila Pery, com 22 anos. Não é de nostalgias mas teve necessidade de ir visitar a povoação onde foi feliz na infância, para ver se ainda existia a casa onde viveu. Foi só essa vez, garante. Está transformada em edifício do Governo e nada mais quer dizer sobre o assunto. “Foi o que foi. Do passado vivem os museus.”
Ele não voltou para o passado que deixou, com saudosismo do império português. Nada de material ficou desse tempo e o desapossamento na sua infância, o virem de mãos a abanar, talvez tenha ficado naquilo em quem ele se transformou. “Não tenho nada meu. A casa onde vivo é arrendada, nem o candeeiro da mesinha de cabeceira é meu.” Voltou para uma forma de vida, a que associa a liberdade com que viveu a sua infância, de quando era pequenino e roubava mangas das árvores e brincava nas linhas de caminho-de-ferro de Vila Pery. “Recuso a limitação. Tu podes, assim tu queiras”, dizia-lhe o avô que morreu de tristeza.
Quando mandou um currículo para vir trabalhar para Angola “calhou na guerra”. Foi trabalhar para uma empresa do grupo Espírito Santo, a OPCA, Obras Públicas de Cimento Armado.
Ele era o responsável de “bases de vida”, tratava do alojamento e do transporte de comida de locais onde tinham de ser criadas condições de vida para “os poucos brancos que tinham ficado”, normalmente engenheiros.
E parece que a guerra condizia com ele. “Adoro o caos.” As oportunidades, os improvisos, a desorganização. O seu trabalho vivia disso. “Numa cidade inteira sem água, imagine que conhece um gajo com um camião-cisterna?” Numa cidade sem fornecedores de alimentação, “comprava-se aos putos que roubavam dos contentores do porto. Isto é Fellini”. Conta tudo isto de camisa de alças e chinelos, a comer frango de churrasco com jindungo [malagueta].
A guerra civil angolana acabou em 2002, ele hoje é director de alimentação e bebidas da multinacional sul-africana Shoprite, um grande grupo de retalho africano. “É miraculoso o que se passou aqui em dez anos. Não havia restaurantes, estar aqui a comer frango no churrasco…” Agora, faz-se uma viagem Luanda-Lobito em cinco horas, mas durante a guerra levava cinco dias, até porque não se podia guiar à noite — parava-se o carro ao lusco-fusco, cobria-se com uma rede verde do exército e camuflava-se com ramos cortados até nascer o sol, lembra.
Fala como se tivesse saudade do tempo da guerra e do caos, e é como se os outros, os que chegaram há pouco só para ganhar dinheiro, não compreendessem Angola, porque não sabem o que é querer mesmo viver no país, sem as facilidades que há hoje, por mais que se fale das oscilações do preço do petróleo, de alguma insegurança, do preço alto do custo de vida, das dificuldades em mandar dinheiro.
Júlio Almeida faz parte de um pequeno grupo de portugueses que sempre quiseram ficar. E quando retornaram tiveram mesmo de querer ficar. “Esta é a minha terra.”
Ele sabe que nunca mais voltará a viver em Portugal mas que “na vida não há cesto cheio”. Tem três filhas no Porto, a mais velha tem 25 anos, a mais nova 18. “Ficarei sempre em África. Sou um híbrido, o branco mais preto de Angola.” Ouve com bonomia quando nas notícias angolanas às vezes se diz, por tudo e por nada, que o que corre mal na Angola de agora é “culpa do colono”. Está convencido de que é por falta de alternância política que se escolhe esse bode expiatório: não podendo dizer que o culpado é o outro partido, diz-se que é culpa do colonizador. Desvaloriza. Sorri.
Em 1975, quando Angola se tornou independente, Mário Pires tinha três anos. Não é por se lembrar mas por ouvir contar que sabe das dificuldades por que passaram os poucos portugueses que insistiram em ficar. De acordo com a História de Angola (de Douglas Wheeler e René Pélissier, Tinta da China Edições), dos 330 mil portugueses residentes em Angola em Abril de 1974, apenas 30 a 40 mil permaneciam no território em Março de 1976.
A família de Mário faz parte deste número. No apartamento da família, em Luanda, contam-lhe que chegou a haver destroços de morteiros e que houve um vizinho que um dia os protegeu, que mentiu por eles. Estavam em casa, e ele disse a um grupo de homens que um dia chegaram, muito provavelmente para a saquear, “a casa está vazia”.
Eram os tempos da ponte aérea, em que milhares de portugueses radicados em Angola fugiam em pânico para Portugal. Os pais não a apanharam, ficaram e, nessa altura, era mesmo preciso querer ficar. “Na fuga, prevaleceu o medo de morrer. Os meus pais também tinham medo de morrer”, mas ficaram. “Estavam bem misturados.” Mário lembra-se de ter conhecido Agostinho Neto, o primeiro Presidente angolano.
Tinha oito anos quando tiveram de dar o braço a torcer. Em 1981, o pai decidiu “que queria outra estabilidade”. Mas só aguentaram quatro anos em Portugal. Em 1985, estavam de volta, tinha Mário 12 anos. “Não aguentaram Portugal. Nunca se conseguiram adaptar ao modo de vida português.”
Naquele tempo, para voltar a Angola, também era mesmo preciso querer regressar, diz Mário Pires, engenheiro electrotécnico de 41 anos e proprietário de uma empresa de projectos e fiscalização (de electricidade). A mãe também vive em Luanda, o pai morreu no ano passado, “se fosse vivo, faria 60 anos de Angola” — não conta com a interrupção de quatro anos em Portugal. Os seus avós chegaram a Angola na década de 1940.
Da guerra civil angolana, que começou logo em 1975, ficaram aquelas histórias que, com o tempo, perderam o dramatismo e entraram no anedotário de família: como quando ele, quando era pequeno, e não percebia que havia uma guerra a correr, aprendeu a adorar pão sem fermento, como se aquele fosse o verdadeiro pão. Não percebia que o pão diferente não era uma iguaria mas uma consequência das dificuldades de acesso a alguns bens alimentares, não se conseguia comprar pão nem fermento para o fazer em casa. Eram tempos em que a mãe tinha de ir para a fila do pão ou da farinha. Não diz que passaram fome, fala de tempos em que tinha de haver “gestão da alimentação”. Era o tempo em que valia a troca directa, grades de cervejas, por exemplo, eram uma valiosa moeda, conta, até podiam dar para comprar um bilhete de avião.
Os pais mandaram-no estudar para Portugal em 1992, foi em Lisboa que tirou o curso de Engenharia e onde conheceu a mulher, que agora vive com ele em Luanda. Para casar com Mário, tinha de querer vir para Angola porque ele não se imagina a viver noutro sítio do mundo. Não é qualquer pessoa, e é como se essa adaptabilidade, “quando voltámos estava tudo revirado, em obras”, fizesse parte do encanto da mulher com quem se casou e com quem teve duas filhas.
Quando voltou definitivamente, homem casado, em 2005, Luanda não vivia os mesmos problemas de quando ele era pequeno e havia a guerra, mas ainda encontraram muitas limitações. Por exemplo, não podiam habituar as filhas, hoje com 6 e 11 anos, a uma determinada marca de papa ou de iogurtes porque de uma semana para a outra podia já não haver à venda. Dois pacotes de papas podiam chegar a custar 100 dólares. Havia muita imprevisibilidade.
Os que, como ele e a família, têm uma ligação afectiva com Angola são uma minoria de portugueses que se distinguem bem porque voltaram muito antes da crise.
Mário assistiu, nos últimos anos, à chegada de centenas de portugueses. O sociólogo Rui Pena Pires, coordenador científico do Observatório da Emigração, estima que “actualmente, se quisermos falar só de emigrantes portugueses (o que significa que os nascidos em Angola que aí viviam antes da independência e que ficaram não contam, mesmo tendo conservado a nacionalidade portuguesa), teremos sempre menos de cem mil pessoas (nascidos em Portugal e residentes em Angola). Mais provavelmente cerca de 60 mil”.
Mário Pires diz que é legítimo querer vir para Angola durante umas temporadas apenas para ganhar dinheiro. Veja-se o exemplo do seu primo Bruno Fontes, de 38 anos, que hoje o acompanha nesta conversa. “Está cá a ganhar o seu dinheiro, tranquilo.” O primo teve uma infância muito parecida com a de Mário, nasceu em Angola e os pais viviam em Luanda, mas os pais de Bruno saíram após a independência e nunca quiseram voltar. Ficaram em Portugal e quando visitaram Angola numa quinzena de férias, porque o filho cá está a trabalhar, não gostaram do que viram, houve áreas da cidade que o pai não conseguiu reconhecer. É a prova de como duas famílias com percursos parecidos podem ter atitudes tão diferentes em relação ao sítio de onde ambos partiram.
“Existem pessoas da geração do meu pai que guardam rancor. Houve muita gente no pós-independência que tentou recuperar património em Angola, os que conseguiram alguma coisa foram muito poucos”, diz Mário Pires. O primo, licenciado em Gestão de Empresas, está há sete anos na mesma Luanda que Mário, mas por razões pragmáticas. Porque nasceu cá ainda conseguiu aproveitar uma janela de oportunidade, conseguiu em 2005 adquirir a nacionalidade angolana. Mas é franco, veio porque em Portugal não conseguia arranjar emprego.
Prevalecem os portugueses que, como Bruno, vêm por quatro ou cinco anos para ganhar dinheiro. Se lhe saísse o Euromilhões, Bruno não ficava por cá, voltava para Portugal; se calhasse a Mário, este aproveitava para melhorar o seu negócio. “Eu sou angolano, dou muito valor a ser angolano. Daqui não saio.”
Mário Pires não tem nada contra os recém-chegados. Há entre os que chegam nos últimos anos “pessoas que se entusiasmam com o país e outras que têm medo e não atravessam a rua”. O que não aprecia é a atitude dos que só dizem mal do país, da cidade. Só lhe apontam a insegurança, a sujidade. “Sei que não é o maior país do mundo, mas fico chateado quando alguém vem para cá criticar. O trânsito é o grande problema da nossa cidade, isso e a falta de sinais, de passeios.”
O primo Bruno foi assaltado, à mão armada, dentro de casa, roubaram-lhe computador, PlayStation, documentação, telemóveis relógios, perfumes, conta. Mário Pires tenta arranjar atenuantes para aquele assalto, e ao fazê-lo está a defender Angola, “a minha terra”. Ninguém lhe tira da cabeça que foi alguém que conhecia o primo e que teve com ele um desentendimento ou que houve imprudência por parte do primo, todos os dias com o portátil às costas. Estudaram-lhe as rotinas, há que ter cautelas. Mário Pires faz jogging na marginal de Luanda e nunca teve problemas. Quanto ao clima político, diz que começa a haver abertura, há manifestações, há a TV Zimbo, que já é mais crítica.
Os pais de Sérgio Figueiredo, de 68 anos, trouxeram-no para Angola com quatro anos, os da mulher com três anos. Os dois membros do casal tiveram vivências parecidas. Quando chegou a independência e a guerra que se lhe seguiu, decidiram os dois ir para Portugal, “porque a confusão era muita”. Saíram ambos em 1976, levaram a filha bebé. Sérgio Figueiredo tinha 29 anos. À saída, ouviu “volta para a tua terra”. Na sua terra, onde nasceu e para onde voltou, São Mamede de Infesta, ouviu que tinha andado por Angola “a roubar os pretos”. “Não me adaptei àquilo. Estava mortinho por voltar.” Ficou só cinco anos.
Só que, na altura de voltar, a mulher não quis vir com ele. “Não volto para Angola, aquilo cheira mal”, disse-lhe. Referia-se talvez aos esgotos do prédio onde viviam, mas na verdade estava a falar do país. Ora para Sérgio “Angola cheira bem, cheira bem demais”. Mas um casal para quem o país cheira bem a um e a outro cheira mal não pode ficar junto, sobretudo se a pessoa a quem cheira bem não consegue viver noutro sítio. Foi essa a razão de as vidas se terem separado. Sérgio escolheu Angola. “Fugi de Portugal.
“Em Angola, no regresso, senti-me amado.” Quando voltou, diz, “éramos poucos”. Foi em 1981, “não gostava de guerra, mas vivia na guerra”.
No restaurante português onde hoje encontramos Sérgio Figueiredo, a marisqueira Brito, nos arredores de Luanda, está a comer cozido à portuguesa. Em som de fundo ouve-se o fado As canoas do Tejo — “Quando há norte pela proa/ Quantas docas tem Lisboa/ E as muralhas que ela tem” — cantado com sotaque angolano pelo cantor de karaoke de serviço. Vítor Brito, o filho do proprietário, diz que fideliza os seus clientes com pratos certos, leitão à Bairrada, cozido à portuguesa. A televisão está ligada num canal português que mostra notícias de um afogamento na Ericeira.
Sérgio Figueiredo vem cá regularmente. Este engenheiro civil, que trabalha desde que se lembra na construtora Mota Engil, diz que tem as coisas bem definidas. Quando há braços-de-ferro políticos entre Angola e Portugal, torce por Angola, diz que chegou a ser militante do MPLA, “vivi intensamente a libertação do fascismo, era contra o Salazar”; quando é futebol, “sou por Portugal”, quando toca a comida, “só portuguesa”. Nada de funge (papa de farinha de mandioca muito comum na cozinha angolana).
Sérgio diz que não tem saudades do passado, da Angola portuguesa. “Esta é a Angola que eu amo, é a Angola em que eu vivo.” Teve um AVC há um ano. Não volta a Portugal há quatro. Decidiu que nunca mais volta. Tem medo de morrer lá, ou no avião, “mesmo que me enterrem cá não é a mesma coisa”. Ele não arrisca. Está convencido de que o risco de os aviões caírem aumentou com a crise económica, que ajudou à deterioração das condições dos pilotos, a menos cuidados com a manutenção dos aviões.
Vive entre dois mundos. Fala todas as semanas com a mulher portuguesa que nunca quis vir com ele no regresso à sua Angola, mas que ele continua a sustentar à distância, porque, diz, “não acredito no divórcio”. À mesa da marisqueira Brito está sentado com ele uma criança, o Paulinho. O menino mulato grita “quero massa, quero massa”, embora Sérgio insista em tentar dar-lhe cozido à portuguesa, “come a carninha”.
É seu filho, tem sete anos. Fê-lo com uma mulher angolana. “Eu gosto da minha mulher, é uma pessoa séria. Damo-nos bem ao telefone. O facto de ter outras mulheres não quer dizer que desgostei. Um homem pode ter filhos até morrer e continuar a gostar da mulher. É saudável, é normal.”
Quis muito ter este filho, mesmo admitindo que é pai-avô. Chama-lhe “um clone do Paulo”. Paulo era o nome de um outro filho com o mesmo nome que lhe morreu com 28 meses, em 1972, em plena guerra colonial, era Angola portuguesa. Morreu de paludismo, “houve ignorância do médico militar português”. “Sempre quis ter um filho como aquele.”
Dá a este o que nunca pôde dar ao outro, deixa-o fazer de tudo. Diz que é “um menino livre, um guerrilheiro” – “pôs o telemóvel no microondas, o cão na máquina de lavar louça. Dei-lhe quatro iPad, partiu-os todos. Comprei-lhe mais dois.”
Sérgio nunca quis ter nada seu quando regressou a Angola, mas mudou de ideias por causa daquele seu filho novo, que tem a nacionalidade angolana e portuguesa. Anda há uns meses a construir uma vivenda próximo de Luanda para lhe deixar. Faltam uns meses para estar terminada.
Sobre Portugal, fala das “péssimas condições criadas pelo excelente Governo que temos, que faz com que as pessoas queiram sair, como os nossos antepassados emigrantes”, como o seu pai, que chegou a Angola na década de 1950, como trolha. Diz que Angola guarda oportunidades para quem tem de sair.
Foi isso que disse à sua filha mais velha que vivia em Portugal e não arranjava emprego, tinha o curso de Topografia e ele conseguiu trazê-la para Angola, e cá “estava lançada”. Colocaram-na na cidade do Soio, tinha 34 anos. Morreu com paludismo, que não foi logo diagnosticado. Sérgio continua a aconselhar os portugueses a virem para Angola. “Só lhes peço para terem cuidado com o paludismo.”
Sérgio pensa que a sua mulher portuguesa culpa-o até hoje pela morte desta filha, culpa até hoje Angola pela morte dos seus dois filhos portugueses. Até isso o separou de Portugal, o facto de agora já não ter lá nenhum filho. “Cá em Angola, tenho dois filhos vivos e dois filhos mortos.” Além de Paulinho tem a Rosete, uma outra filha, de 28 anos, que teve com outra mulher angolana, é licenciada em Economia numa faculdade angolana, diz com orgulho.
Este ano, Sérgio vai mandar o filho pela primeira vez a Portugal mas não o vai acompanhar, manda a filha mais velha. Quer que ele conheça os seus irmãos, quer que o filho conheça o sítio onde o pai nasceu, mas aonde não torna porque tem medo de morrer em Portugal.
Dentro do forte de Luanda estão guardados os restos do passado colonial do país. Há duas fileiras de estátuas de pedra impecavelmente tratadas, com placas douradas que parecem recém-estreadas. Ali estão Dom Afonso Henriques com a espada enterrada do chão, Vasco da Gama em pose de herói, Camões a dizer adeus, Diogo Cão a apontar para o horizonte do que seria a sua chegada ao território que veio a ter o nome de Angola. Ali estão expostas também duas peças piramidais de calcário que um dia assinalaram uma Avenida de Lisboa, têm o símbolo de Santo António e uma caravela.
Na Luanda do presente, as ruas têm nomes como Avenida Ho chi Minh ou Avenida 4 de Fevereiro. Mas ainda se vêem, perdidas, placas a que ninguém liga mas que ninguém se deu ao trabalho de retirar, como a Rua Oliveira Martins.
Houve um tempo em que todos aqueles objectos ocupavam o espaço público angolano, depois foram substituídos para serem colocados ali, para serem vistos como relíquias do passado.
Maria Ribeiro, casada com um português que quase não saiu de Angola a não ser para estudar e para a conhecer, veio mostrar a uma amiga espanhola o antigo forte de Luanda, que hoje se chama Museu Nacional de História Militar. “Neste museu nos é revelada a história de todas as guerras do heróico povo angolano”, lê-se numa placa.
As figuras de pedra estão dispostas ao lado da Renault 6 “utilizado pelo camarada presidente António Agostinho Neto”. porque são apenas um capítulo da história de Angola. A entrada para o forte tem uma primeira entrada que antecede a oficial, entra-se através de uma enorme estrela do MPLA com homens negros agrilhoados que se soltam e empunham arcos e setas e catanas. À entrada, a estátua mais gigantesca de todas — Afonso Henriques, a maior das figuras portuguesas, fica-lhe abaixo da anca — é Ginga, a rainha africana que ousou enfrentar os portugueses, tem um machado na mão.
“Isto é história, agora é uma Angola nova”, diz Maria Ribeiro, de 50 anos, apontando para as estátuas de Portugal. É preciso perceber que esse capítulo encerrou para se viver bem em Angola.
Olhando do forte de Luanda, contam-se hoje 18 gruas a girar no horizonte, estão a acrescentar arranha-céus à paisagem, uma é da construtora portuguesa Soares da Costa, os sons de rebarbadora e martelos pneumáticos abafam os sons dos apitos dos carros que circulam na marginal.