O uso do historicismo para justificar o "ajustamento"
São argumentos conservadores, destinados a impor às democracias uma noção da história que não depende da vontade e da escolha humana no presente.
É cada vez mais comum a utilização de argumentos de carácter histórico para justificar o “não há alternativa” do presente, ou seja a política do “ajustamento”. Todas as semanas eles são repetidos em comentários políticos, descrevendo um país preso nos atavismos de uma história multissecular, que o amarra no seu atraso e que explica a resistência às “reformas”. Estes argumentos funcionam como um diagnóstico que aponta os “maus” e os “bons”, os que fazem parte do Portugal imobilista e os que o querem a “desenvolver-se”. É também uma espécie de ”luta de classes” com outro nome, como é óbvio, e com outras “classes”. Não é nada de novo na história portuguesa, os argumentos historicistas encontram-se na geração dos “Vencidos da Vida”, nos seareiros, nos integralistas lusitanos. Por interessante e irónica coincidência, são habitualmente usados pelas mesmas elites que essas interpretações da história pretendem atacar. Por singular coincidência, esta “história” encaixa como uma luva no presente.
Na verdade, não se trata de história mas de historicismo, e de mau historicismo. São argumentos instrumentais para a luta política dos dias de hoje, não têm valor como interpretação histórica, quando muito são manifestos políticos de qualidade variada. Para além desse papel na luta política actual, que justifica ser discutida de per si, eles tem o efeito nefasto de divulgar uma espécie de história fast food, simplificada ao limite, e que depois impregna argumentários que se caracterizam exactamente por iludir a história, ou melhor o tempo histórico como mudança. São argumentos conservadores, destinados a impor às democracias uma noção da história que não depende da vontade e da escolha humana no presente, e que demoniza sempre o presente ou em nome de um passado atávico, ou de um futuro pré-escrito. O seu papel é condicionar as escolhas numa democracia a uma interpretação monolítica dos “males” do país e legitimar políticas no presente.
Ora, o tempo histórico na sua percepção pública, não é o mesmo em ditadura e em democracia. Em ditadura tende a ficar fixado, – como o Reich de mil anos, ou a visão nacionalista do Portugal multissecular e do seu Império no salazarismo, – enquanto em democracia move-se muito mais. Parar o tempo em democracia e ainda mais a pretexto de um passado construído, é corroer os fundamentos da própria democracia. Por outro lado, o papel político do presente é sempre minimizado. Em democracia o tempo presente domina todos os outros tempos. É por isso que, quer as teorias da história de raiz hegeliana e marxista, quer as variantes do destino manifesto e do atavismo rácico, legitimam “setas da história”, sentidos e direcções pré-definidas, assentes muitas vezes em interpretações neo-malthusianas, em detrimento da efectiva liberdade das escolhas humanas, do seu carácter caótico e complexo, e das “surpresas” que dia a dia a história traz. Ou seja, o tempo do Senhor D. João VI, do conselheiro Luciano de Castro, de D. Carlos, de Afonso Costa, de Salazar, de Delgado, de Marcelo Caetano, do 25 de Abril, de Otelo, de Mário Soares, mesmo já de Sócrates, não é o nosso tempo e é preciso muito cuidado para os paralelismos, a não ser como boas metáforas.
No caso actual, dizem-nos que o único meio de sair deste passado que nos aprisiona é uma purga nacional, uma espécie de acto punitivo e doloroso, que nos últimos anos se chamou de “ajustamento”. O “ajustamento” destinava-se a fazer voltar o estado, o povo, as elites a um estado natural de “pobreza”, que é o que é Portugal, um país “pobre”, e que foi “desonrado” pelas suas elites, que criaram uma riqueza artificial para o seu próprio usufruto, garantindo assim que, “vivendo acima das suas posses”, o país permanecesse “estagnado”. O “ajustamento” ao restituir a “verdade” à economia e à sociedade, eliminando os sinais dessa falsa riqueza, ou seja cortando nas despesas e prestações sociais, criava um ponto de partida para um recomeço sadio. Esse crescimento não se preocupava em ser distributivo, mas agravava as desigualdades, entendidas como um efeito colateral. A ideia de que o “ajustamento” poderia ser no fundo uma deslocação maciça de recursos de muitos para uma pequena minoria, seria irrelevante. Não por acaso teria que ser um processo longo, de décadas, e não poderia ser afectado pelas escolhas eleitorais, que estragariam tudo, como parece que estragaram. Tinha uma componente punitiva do “mal” e de abertura de oportunidades para os “bons”. Era e é um caminho tendencialmente autoritário, para pôr na ordem os conflitos sociais.
De forma grosseira, esse historicismo diz-nos que pelo menos desde o “ouro do Brasil” do Senhor D. João VI, passando pela tragédia nacional das lutas liberais, que os “maus” ganharam, instituindo um sistema de corrupção nacional associado à criação de partidos políticos, de formas várias de “bloco central de interesses”, de rotativismo, que deram a liberdade e a bancarrota regular aos portugueses, um par que parece vindo das conversas de taxistas, mas que está sempre presente – liberdade e bancarrota – Portugal estava condenado ao atraso. A República era vista pelo olhar do Estado Novo: um interregno violento, caceteiro, corrupto, ruinoso e instável, o reino da “desordem” que provocou o levantamento das Forças Armadas e explicava a ditadura. O marcelismo, visto com muita ambiguidade, era ao mesmo tempo o momento da traição colonial, e o da regeneração económica das forças vivas da economia, abrindo Portugal para a modernidade. Deste curso maldito, salvavam-se Mouzinho, João Franco e Salazar.
Curiosamente, muitas vezes, a excepção mais referida a esta história da decadência nacional é Salazar. Não estou a dizer que quem usa a excepção gosta de Salazar ou pretende o seu regresso, – alguns querem-no de forma tecnocrática e “moderna”, singapuriana – mas a descrição que fazem da “paz” salazarista, a enfâse que colocam no controlo das contas públicas, a ideia de um oásis (aliás historicamente falso), de um Portugal sem corrupção e voltado para o que era permanente, como a geopolítica do Império, uma repressão branda e mitigada, ajudam a dar uma aura ao Estado Novo.
A oposição povo-elites (ou oligarquia) que é usada neste historicismo, é igualmente curiosa, porque quando ela se detalha mais, vê-se que as elites não são verdadeiramente as elites que existem e o povo é um pouco uma versão dos “bois” de Afonso Lopes Vieira, "leões com corações de passarinhos". O povo bom é que não se revolta, não reivindica, não quer direitos, quer é “trabalhar”.
As elites são hoje descritas em termos de “interesses corporativos” (curiosa a utilização da palavra) e incluem a elite política (principalmente as dos partidos de esquerda e no limite a do PSD da “meia branca”, ou seja o de baixo, porque o de cima faz parte dos “bons”), os sindicatos e os funcionários públicos e os empresários do “sistema”, ou seja aqueles que não se reciclaram de acompanhantes da corte de Sócrates, para Passos Coelho, que aliás são poucos. Aquilo que em Portugal são os grandes interesses económicos, aquilo a que Portas erradamente chamava o “velho dinheiro”, na verdade incluindo os Espírito Santos (e o “PSD em que me revejo, o de Ângelo Correia”, como uma vez disse Portas), esses pelos vistos não fazem parte da elite malfazeja, o que os poria ao lado da CGTP. Excluída dessa elite, está também o “círculo de confiança” do poder económico e político, dos jornalistas “bons” aos advogados de negócios, aos “empreendedores” do Compromisso Portugal, ou seja, essa elite acaba por ser nos dias de hoje o PS, o PCP, o BE, os malvados críticos de Passos Coelho no PSD, a CGTP, os professores da FENPROF, os funcionários públicos e os reformados e pensionistas. E os seus antepassados históricos, os revolucionários liberais, os setembristas, os rotativos, os republicanos, a carbonária e a “formiga branca”, o Buíça e o Costa, a oposição pró-comunista à ditadura (e não era quase toda?), os esquerdistas de 68, os capitães de Abril, e os políticos da democracia acabando no “monhé”.
Estão a ver para que serve esta “história”? Percebe-se, não é verdade?