O ressurgir do discurso político nacionalista e neocorporativo
É preciso promover à escala europeia o reencontro entre o melhor do liberalismo e o melhor da social-democracia.
Nicolas Baverez, conceituado economista e ensaísta de pendor liberal, autor de uma preciosa biografia de Raymond Aron, publicou numa das mais recentes edições do jornal diário de referência da direita francesa – Le Figaro – um artigo assaz interessante que merece ser objecto de reflexão. O tema consiste no conflito que presentemente opõe a Comissão Europeia à empresa norte-americana Apple e ao Governo irlandês. Aquele que é uma autêntica bête noire da esquerda anti-capitalista saúda com entusiasmo a posição da Comissão Europeia e deplora veementemente as atitudes assumidas quer pela Apple, quer pelo Estado irlandês. Fá-lo em nome de uma visão exigente dos princípios liberais.
Recordemos sucintamente os factos em causa. A Comissária Europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, curiosamente ela própria oriunda da família política liberal, considerou que o valor ínfimo (0,005%) de taxação fiscal aplicado pelo Estado irlandês à Apple configurava uma indevida e ilegal ajuda de Estado violando, assim, o princípio da concorrência. Na sequência dessa posição a Comissão decidiu obrigar a empresa a pagar treze mil milhões de euros à Irlanda. Este valor corresponderá ao valor do imposto que ao longo de vários anos o Estado irlandês terá indevidamente “perdoado“ a uma das mais lucrativas empresas do mundo. As reacções negativas não se fizeram esperar juntando num autêntico coro as vozes do Presidente da Apple, do Secretário norte-americano do Tesouro e de um porta-voz de Executivo de Dublin. A Comissária Europeia, contudo, não se deixou intimidar lembrando, sobretudo aos norte-americanos, que ainda recentemente tinham sido tomadas medidas de natureza idêntica visando uma grande empresa europeia, a Fiat.
O que está em causa da parte do Estado irlandês não é o valor do imposto aplicado a pessoas colectivas (12,5 %), mas sim os acordos estabelecidos especificamente com algumas empresas multinacionais americanas que acabam por transformar aquele país numa autêntica praça financeira offshore. O comportamento do Governo irlandês neste domínio produz ainda o efeito de prejudicar directamente as finanças públicas dos outros Estados-membros, já que se vêem impossibilitados de arrecadar receita fiscal inerente à actividade comercial levada a cabo por estes grupos económicos. No caso específico da Apple o valor em causa já terá sido calculado, será brevemente publicado e deverá ser transferido para cada país deduzindo aos treze mil milhões de euros que a Irlanda deverá receber desta empresa.
Há várias ilações a retirar quer deste episódio em si mesmo, quer do texto já citado de Nicolas Baverez. Comecemos pelas ilações negativas: algumas das mais importantes e inovadoras empresas do mundo aproveitam-se do processo de globalização em curso para, de uma forma arrogante e anti-social, se procurarem eximir ao cumprimento dos seus mais elementares deveres fiscais; há países europeus, habitualmente muito enaltecidos por liberais de pacotilha, que optam por uma política tributária própria de uma zona offshore com o intuito de empolarem artificialmente o crescimento económico e assegurarem a criação de algum emprego, por definição muito volátil e sob permanente estado de chantagem. Já as ilações positivas têm que ver com a atitude assumida pela Comissão Europeia e pela progressiva tomada de consciência das várias famílias políticas europeias quanto à necessidade de pôr cobro a situações desta natureza. Para isso tem contribuído fortemente a pressão de uma opinião pública cada vez mais informada a respeito destes assuntos. Uma outra ilação muito positiva consiste na constatação de que ainda há espíritos eminentemente liberais preocupados com a boa regulação do mercado interno europeu e com uma correcta ordenação normativa da globalização económica e financeira. No seu texto Baverez contesta as práticas de dumping prosseguidas por vários países no âmbito das relações comerciais internacionais, preconiza um maior intervencionismo europeu nesse campo, usa com propriedade o conceito de soberania separando-o de qualquer forma de exaltação nacionalista e faz a apologia do Direito como condição imprescindível ao correcto funcionamento das economias de mercado.
Assistimos hoje em quase todo o mundo ocidental ao ressurgimento de um discurso político anti-liberal, proteccionista, nacionalista e neocorporativo. Para a extrema-esquerda, para a extrema-direita e para alguns sectores que até há pouco tempo se integravam nos espaços quer da esquerda, quer da direita liberais e democráticas, este parece ser o único antídoto possível a uma globalização desregulada. Claro que uns adoptam este discurso por convicção e outros apenas por decepção. Daí a importância de lembrar que há um outro caminho de carácter liberal, democrático e social. Nicolas Baverez enunciou uma parte desse caminho, aquele que tem a ver com a importância das normas e dos procedimentos para a organização do mercado. O contributo histórico da social-democracia foi o de acrescentar a essas normas algumas outras de carácter especificamente social a fim de garantir o máximo de igualdade possível no respeito pelo valor superior da liberdade. É esse reencontro entre o melhor do liberalismo e o melhor da social-democracia que é preciso promover à escala europeia. Tudo o resto significará apenas regressão civilizacional.