O regresso da malfadada estratégia Barroso
Com Centeno no Eurogrupo mudam as caras, certamente para melhor, mas não mudam as regras do jogo
Além dos copos e das mulheres (ou da célebre alusão a ambos) há uma outra razão imediata para querermos ver-nos livres de Jeroen Dijsselbloem: o facto de ele ter por hábito recusar-se a prestar contas ao Parlamento Europeu. O desprezo que Dijsselbloem demonstra pela única instituição da UE diretamente eleita pelos cidadãos é tal que motivou já um protesto formal por parte do presidente do PE e levou um respeitado deputado francês de direita, Alain Lamassoure, atual presidente da Comissão parlamentar sobre evasão fiscal, a sugerir que Dijsselbloem fosse declarado persona non grata nos edifícios parlamentares.
Para perceber as origens dessa recusa e as consequências dela é preciso mergulhar na história de como a UE (não) encarou a atual crise na zona euro. De caminho entenderemos também por que é um erro, por parte do governo português, dar apoio ao espanhol Luís de Guindos para substituir Dijsselbloem. E também que a nomeação de Mário Centeno para o lugar não resolveria o assunto. Vamos a isso?
A raiz de muito do nosso sofrimento está nos anos de 2010-2011, quando a Grécia entrou em colapso e arrastou também a Irlanda, Portugal e a banca espanhola. A UE poderia ter reagido de duas maneiras: enquanto União ou enquanto coleção de países. Os ministros das finanças dos países endinheirados, capitaneados por Schäuble, insistiram na segunda opção: que o resgate dos países endividados fosse tratado multilateralmente entre países e não no quadro da União. A diferença é subtil e legalista, mas as consequências são importantes. A vantagem dessa abordagem, do ponto de vista dos países que em breve trataríamos como “países credores”, estava em concentrar o poder de decisão nos governos, o que poria a futura troika fora da alçada do Parlamento Europeu e retiraria os programas de resgate à jurisdição da Carta dos Direitos Fundamentais da UE — acabada de entrar em vigor um ano antes, com proteções e garantias sobre acesso à saúde ou direitos laborais que foram imediatamente castradas.
Esta estratégia deu um poder desmesurado a uma “coisa” chamada Eurogrupo, até então (e até agora) uma reunião informal de ministros das finanças, com apenas uma breve menção nos tratados e sem enquadramento legal que a constranja. O cargo mais importante de Jeroen Dijsselbloem, por virtude de presidir às reuniões do Eurogrupo, é até o menos conhecido: ser presidente do Mecanismo Europeu de Estabilidade, onde está o dinheiro para os resgates na zona euro.
Chegados a este ponto, já podemos explicar por que razão não deve o governo português apoiar o ministro das finanças espanhol, Luís de Guindos, para o cargo de presidente do Eurogrupo — embora seja justificadíssimo pedir a demissão de Dijsselbloem. Se o governo português leva a sério a sua bandeira de reformar a governação da zona euro e dotar a UE de um pilar social então o seu objetivo deveria ser mudar as regras do jogo no sentido de mais democracia e mais direitos sociais. E isso só se consegue, sem mudar os tratados, se o Eurogrupo for presidido por alguém que esteja legalmente obrigado a responder perante o Parlamento Europeu e a respeitar a Carta dos Direitos Fundamentais. A escolha óbvia seria a do comissário socialista francês Pierre Moscovici, que pela sua função está legalmente constrangido pelas obrigações atrás descritas, além de ter sido adepto da não-aplicação de sanções a Portugal e se ter posicionado nos últimos anos como opositor à linha dura de Schäuble.
Apoiar simplesmente um espanhol para substituir um holandês não representa mais do que o regresso da malfadada estratégia Barroso, quando os governos português e espanhol apoiaram por “solidariedade ibérica” a renovação do mandato de Durão Barroso em que este acabou acompanhando os programas de austeridade e aceitando meter a Comissão Europeia como subordinada do Eurogrupo na troika. Se o presidente do Eurogrupo pertencer à Comissão, a situação inverte-se a favor do controle do Parlamento Europeu e da jurisdição da Carta dos Direitos Fundamentais.
E Mário Centeno? A resposta é a mesma: com ele mudam as caras, certamente para melhor, mas não mudam as regras do jogo. E para Portugal é francamente mais vantajoso que mudem as regras do jogo.