Foi você que pediu as 35 horas?
O regresso às 35 horas na Função Pública é um manifesto de que o irrealismo, o facilitismo e o corporativismo permanecem por aí.
Portugal, terceira semana de 2016. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental garante que a estratégia anunciada pelo Governo vai fazer crescer a dívida em 11 mil milhões de euros até 2019; o défice subirá para acima dos 4% à custa do Banif e Mário Centeno deixa subentender que a Comissão Europeia vai impedir a saída do país do procedimento por défices excessivos; o consumo privado cresce e só o baixíssimo preço do petróleo nos salva de um persistente desequilíbrio da balança externa; fontes da Comissão Europeia e o próprio Banco Central Europeu criticam o Governo por não ter implicado os titulares de obrigações sénior do Banif a pagar o resgate do banco, poupando aos contribuintes mil milhões de euros; um pouco por todo o lado (incluindo cá), vão-se revendo em baixa as perspectivas de crescimento e há até quem avise que 2016 pode ser um ano de recessão e deflação global. Perante este cenário, fica-se com a ideia de que toda a Gália está cercada pela crise. Toda? Não, há uma pequena aldeia gaulesa que resiste. A da Função Pública.
Pedro Passos Coelho era muitas vezes (e quase sempre justamente) acusado de promover uma guerra desnecessária e perigosa entre os trabalhadores do sector privado e os funcionários públicos. António Costa há-de ser muitas vezes (e quase sempre justamente) acusado de a manter ou até de a acirrar. Porque se nos anos de chumbo do ajustamento se deixou instalar a ideia inaceitável de que os funcionários públicos eram uma casta de privilegiados que se alimentava da seiva da nação que trabalha e produz, o regresso de algumas benesses decidido pelo novo Governo faz regressar a percepção de que vivem protegidos por um sistema de partidos que os salva da crise como pagamento de supostos favores eleitorais. Não, não se trata das devoluções dos salários cortados, nem do fim da lista da mobilidade, nem do eventual regresso dos privilégios da ADSE. O que coloca os funcionários públicos sob a desconfiança do país é o regresso das inenarráveis 35 horas de trabalho semanal.
Diz António Costa, e os registos confirmam-no, que o que está em causa é o cumprimento de uma promessa eleitoral. Acrescenta o diploma aprovado esta semana no Parlamento que se pretende apenas garantir direitos básicos da civilização, como o da estabilidade familiar. Nota a cada passo o primeiro-ministro ou o seu ministro das Finanças que tudo isto se fará sem que se gaste mais um cêntimo do Orçamento. Tudo bem, mas não é isso que está em causa e, principalmente, não é isso que interessa. O que interessa é saber as razões que levam o Governo a avançar já com esta medida, precisamente no momento em que os sinais de que os perigos de uma recessão, do agravamento do défice e do crescimento da dívida alastram. O que interessa é saber se faz sentido que haja uma classe profissional favorecida com o regresso de um privilégio injusto e absurdo quando se sabe que, para sobreviverem, muitas empresas exigem aos seus trabalhadores esforços e horas de trabalho que estão para lá da lei e da decência.
A CGTP, António Costa, Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa hão-de ver na pressa do Governo um definitivo manifesto do sentir da esquerda que está no poder. Não notam que essa é a esquerda fossilizada das corporações. Não percebem que essa não é a esquerda que promove a igualdade ou que protege os mais fracos. Não sentem que essa não é a esquerda empenhada na justiça social. Por que razão há-de uma funcionária de uma repartição trabalhar menos que a balconista de uma empresa privada? Por que razão há-de um contínuo de uma escola trabalhar menos horas do que um operário têxtil? Por que carga de água há-de um jurista de um ministério passar menos horas com processos do que um jurista de um escritório privado? Caso não tenha o Governo notado, todos têm famílias. Mas nem todos têm as mesmas condições e, principalmente, a mesma protecção política. Fiscalizar e punir os que abusam da precariedade seria, sim, uma ideia de esquerda; colocar toda uma classe profissional acima das outras é claramente um privilégio que pouco tem a ver com os valores que o Governo e os seus parceiros reclamam.
E é por ter essa certeza em mente que António Costa tanto se esforça por garantir que o recuo do horário de trabalho para as 35 horas não vai ter impacte no Orçamento. Era o que faltava separar o mundo entre os que trabalham mais horas e os que trabalham menos e pôr todos a pagar por essa benesse. Mas como não há almoços grátis nem trabalho sem salário, poucos acreditam que o Governo seja capaz de organizar os serviços ou convencer todos os funcionários públicos a abdicar das remunerações a que têm direito ou a trabalhar a desoras. É por isso que, na proposta que entregou na Assembleia, o ministro das Finanças não tratou de esclarecer como pode haver redução de horários sem gastos suplementares nas horas extra. Com o tempo, sempre haverá maneira e oportunidade de esconder esses pagamentos numa qualquer alínea da conta geral do Estado.
Depois de prometer na campanha, António Costa faz bem em cumprir no Governo. Mas há um tempo político para tudo. Há prioridades a estabelecer. Há compassos de espera a fazer quando não se têm em mãos todos os dados do jogo para decidir. Há o dever de prudência quando se tomam decisões sensíveis. Sendo uma medida que faz regressar o fosso e as desconfianças entre servidores do Estado e trabalhadores do privado, que tem impacte num défice que está de volta ao patamar dos 4% e que acentua a ideia de que este Governo é o governo do Estado para o Estado, António Costa deveria ter esperado por uma melhor oportunidade. Não se sabe se não o fez por convicção ou por contingência. Sabe-se, isso sim, que o braço armado de um dos partidos que o apoiam no Parlamento, a CGTP, tratou de ir logo para a rua ameaçar com greve caso essa ideia lhe passasse pela cabeça.
O regresso às 35 horas na Função Pública (não se discute que algumas classes profissionais devem ser contemplados com este horário) é por isso um manifesto de que o irrealismo, o facilitismo e o corporativismo permanecem por aí – anda certamente na campanha eleitoral mais fútil e estúpida que há memória. Se há alguma certeza que podemos tirar destas semanas, é que o sentido de urgência a que nos habituámos se perdeu. Perdeu-se no discurso delico-doce da educação, perdeu-se na dádiva de um horário mais curto a uma parte dos portugueses, perdeu-se na sensação de que a fragilidade política do Governo permite o regresso ao paraíso perdido dos sindicatos, perdeu-se na relativização de que a dívida e o défice são números abstractos que se podem remeter para contas futuras. Não é caso para dizer que está tudo perdido. Mas o cepticismo que alastrou esta semana pelo espaço público é sinal de que começam aqui e ali a irromper sentimentos de frustração e de medo. Veremos se o Orçamento os consegue dissipar.