Esperança

O que terá mais impacto para o desenvolvimento de uma postura antibélica? A familiarização com imagens do horror ou uma formação baseada nos valores.

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"Durante a infância, as crianças devem ter a oportunidade de ser crianças" August de Richelieu/pexels
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Falamos com as crianças sobre todos os assuntos, mesmo sobre aqueles que, no tempo dos nossos avós, pertenciam ao mundo dos adultos. Falamos com as crianças sobre a guerra. Falamos com as crianças sobre a fome. Falamos com as crianças sobre a crise climática. Falamos com as crianças sobre as catástrofes naturais. Falamos, falamos, falamos.

E, por tanto falarmos com as crianças, até já contamos com ajuda para o fazer. Dispomos de livros sobre todas estas temáticas, escritos por especialistas, com uma linguagem simples e acessível, para que possamos lê-los, tanto em casa como na escola. E nós lemos, lemos, lemos. Lemos com a intenção de tornar as nossas crianças mais esclarecidas e sensíveis aos problemas que afetam o mundo.

Acreditamos que, quanto mais cedo refletirmos sobre estas informações com as crianças, mais estaremos a contribuir para que, quando crescerem, façam do mundo um lugar melhor. E refletimos, refletimos, refletimos. E, de tanto falarmos, de tanto lermos e de tanto refletirmos, podemos — sem querer e sem dar por isso — estar a caminhar em diversos sentidos, alguns porventura diferentes daqueles que desejávamos.

As crianças processam a informação que recebem de formas diferentes, mas há determinadas reações que são mais frequentes. Para algumas, uma exposição precoce e continuada a acontecimentos dramáticos pode contribuir para uma certa banalização do mal, tanto mais que ainda não têm maturidade para processar informação que até para um adulto é inquietante.

Outras recebem a informação de forma muito intelectualizada, debitando factos, datas e locais, quase como se os acontecimentos não fossem reais e não estivessem a ocorrer com seres humanos reais, nomeadamente com crianças da sua idade… reais. Quando confrontadas com o facto de a realidade ser verdadeira, as crianças passam à fase seguinte, que é a da angústia e da ansiedade.

Então, se os acontecimentos estão a ocorrer com crianças da sua idade, quer dizer que também podem acontecer com elas, sem que os seus pais as possam proteger? E, se continuarmos a poluir o planeta, que futuro vamos ter? Estas interrogações são altamente interpeladoras e as respostas às mesmas – se forem verdadeiras – podem ser ainda mais inquietantes.

Chegados a este ponto, não pretendo defender que devemos abster-nos de sensibilizar as crianças para os problemas do mundo. A minha dúvida reside na forma como o devemos fazer. Sem demasiadas certezas — porque, à medida que o tempo passa, fui deixando de me preocupar em ter demasiadas certezas e me predispus para fazer mais perguntas — inclino-me para que essa sensibilização não deva assentar sobre o discurso do medo. Crescer a temer um presente assustador e a projetar-se num futuro sombrio não parece muito animador.

Se a palavra positivo não estivesse tão gasta, poderia utilizá-la para defender que, ao invés de nos basearmos no discurso do medo, do assustador e do sombrio, poderíamos fazer uma abordagem ao contrário, pela positiva, sensibilizando as crianças para a construção de valores sólidos e proporcionando-lhes vivências gratificantes em contacto com o meio natural envolvente.

Continuando no domínio das interrogações, questiono-me: o que terá mais impacto para o desenvolvimento de uma postura antibélica? A familiarização com imagens do horror ou uma formação baseada nos valores, que muitas vezes é tão discreta que quase não se vê, na medida em que é construída, ao longo do tempo, através da observação dos adultos de referência e da interação com o mundo mediada por estes.

E como promover uma atitude de respeito pela natureza? A motivação deve ser sustentada no receio do fim do mundo, ou impulsionada por uma atitude de maravilhamento perante aquilo que nos rodeia? Ou seja, em vez de a abordagem estar centrada no lado do medo, temos a opção de escolher o lado de nos maravilharmos primeiro com aquilo que nos caberá preservar depois.

Tal como salienta o psicopedagogo Bruno Humbeeck, na obra Éduquer à l’émerveillement, se o mundo está mal não é porque lhe faltem maravilhas: é porque nos falta a capacidade de maravilhamento. Para inverter esta situação, defende que “devemos ser capazes de nos maravilhar com a vida, se queremos salvar aquilo que resta a salvar no nosso planeta”.

E para que não conotem a sua visão com uma forma de ingenuidade, bem-intencionada, mas desprovida de realismo, coloca em causa que apenas as visões críticas, os comentários lúcidos, as propostas amargas e as perspetivas pessimistas revelem uma inteligência acutilante, que confunde a maturidade com o cinismo.

Ao invés, na sua perspetiva, o maravilhamento não se situa naquilo que nos é dado ver, mas sim na qualidade do olhar com contemplamos o mundo em nosso redor. É por esse motivo que, para desenvolver a abertura ao maravilhamento por parte das crianças, nem sequer é necessário fazer nada de especial. Basta preservar essa natural aptidão que faz parte do património com que vieram ao mundo.

Neste sentido, a demanda consiste em não desperdiçar este património inato, minando-o com um realismo excessivo, com um desencanto abusivo e com uma necessidade de explicação constante acerca de tudo, que se sobreponha à possibilidade de se ser surpreendido por paisagens, obras de arte ou até por simples objetos, grandes ou pequenos, que se evidenciem pela sua beleza.

Tudo isto para dizer que, durante a infância, as crianças devem ter a oportunidade de ser crianças. Acredito que uma infância bem vivida constitui um reduto inalienável que nos acompanha pela vida fora, contribuindo para nos tornar melhores adultos. E, para que a infância seja bem vivida, deve ser um tempo de uma certa inocência, com espaço para a fantasia, para o maravilhoso, para o surpreendente, para o deslumbramento. E também com lugar para a esperança. Não retiremos às crianças aquilo que é suposto terem: esperança.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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