Manuel, que não voltou: o poder do cão

Quero falar-vos do Manuel, um galgo que fugiu do Pai Natal. Na sua reserva aristocrática talvez residisse o seu passado triste de abandono. Voltou à rua, de novo entregue às merdas dos homens.

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"Não podia ser um gato, não podia ser um coelho, por causa do tamanho, mas o camarão no ecrã do controle do drone só podia ser um animal"
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Vi o Manuel no ecrã do controle de um drone de visão nocturna. Não é certo que o tenha visto, que aquela vermelha mancha de calor, enrolada como um camarão, fosse o galgo caramelo que adoptei há dois anos, resgatando-o à rua e aos maus tratos dos seus criadores em Espanha.

Não sei, por isso, se alguma vez o vi realmente desde que, na tarde até então calma, prazerosa, de 15 de Dezembro, ele se assustou com a chegada do Pai Natal às ruas de Lisboa. O gordo barbudo tinha-se multiplicado por dezenas de motards ufanos, exibicionistas e anafados que dispararam sons como petardos para o ar da avenida Almirante Reis.

O Manuel tem um problema com os sons, certamente memória dos tiros das caçadas. Tem medo também dos veículos de grande volume. Mais misterioso, mas sabe-se pouco do seu passado turbulento de cão de trabalho em terras espanholas depois abandonado à rua: entra em pânico, vê-se pelo olhar que se perde, que divaga, quando aparecem no campo de visão jogadores e uma bola; não vê neles abandono doce ou brincadeira mas algo de tão tétrico e tão violento que ameaça rasgar o pescoço com a pressão exercida sobre a coleira ao puxar em sentido contrário.

Não podia ser um gato, não podia ser um coelho, por causa do tamanho, mas o camarão no ecrã do controle do drone só podia ser um animal. "Enrolado" foi palavra de esperança: era assim que o Manuel se sentava, se deitava, fechado sobre si próprio, como ali, debaixo de uma árvore e à beira de um lago na colina que se eleva da avenida Almirante Gago Coutinho em direcção às imediações do colégio Valsassina e onde mal se notam os traços — mas estão lá os lagos... — de um antigo campo de golfe com restaurante, hoje abandonado, e uma vista sobre a cidade como cereja em cima de um bolo.

O lugar é inóspito, o que acontece quando a natureza nos lembra que é tudo dela. A vegetação inunda-nos de uma humidade que tem vida própria e rapidamente nos coloniza o corpo. É um percurso perigoso para a saúde humana: escorrega-se facilmente nos acidentes de terreno escondidos como ratoeiras.

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Natalia Algaba Jimenez abraça um galgo na Fundação Benjamin Mehnert, em Utrera, perto de Sevilha, Espanha — este centro acolhe mais de 600 animais, na sua maioria galgos que sofreram maus tratos ou abandono Nacho Doce/Reuters

Foi assim que na manhã seguinte ao suposto avistamento nocturno cheguei à árvore e ao lago. Não havia Manuel à vista mas um respiradouro com cobertura grelhada no chão. Era um ponto de saída de calor. O sítio, debaixo da tal árvore, que um cão em fuga, perdido, com medo, podia escolher para se aquecer. E com água ao lado. Assim se explicou a mancha vermelha com forma de camarão. O Manuel sobrevivia, aquecia-se, enfim...

Nunca vi o Manuel desde o dia da fuga mas vários (disseram que) o viram. Na tal tarde que os Bad Santa estragaram, ele galgou a alameda Afonso Henriques acima, atravessou o Instituto Superior Técnico, correu pela avenida Duque de Ávila "foi impossível apanhá-lo" e foi a partir daí que se tornou fantasma. Não continuou em frente, terá invertido a corrida. Porquê?

Reagindo ao anúncio que camaradas e cúmplices partilharam nas redes sociais, nos sites de associações de amigos dos animais, de organismos camarários, começaram a chegar mensagens, apareceram posts, telefonemas: o maravilhoso Manuel de olhos desenhados a eyeliner terá estado nas hortas da Avenida da Igreja; deram por ele a correr assustado pela avenida Marechal Gomes da Costa, quando já era escuro; apareceu nos Olivais Sul ("Vi o seu cão, há uma hora atrás") e finalmente — e eu esperava que fosse, "finalmente", mas não, não foi o fim... — pernoitou em Chelas. "Vi o cão há 45 minutos perto do edifício da televisão", alguém escreveu. "Perto" quer dizer o quê visto que a área é gigantesca? Ninguém se lembrou nunca de o fotografar, nem a ele nem ao local da visitação. Ninguém o conseguiu.

Incrédulo ao início, julguei ver uma lógica vitoriosa neste périplo: o Manuel procurava o regresso a casa ainda que pelo percurso mais longínquo, dando a volta à cidade em vez de apenas refazer em sentido inverso a linha de fuga, procurando talvez chegar ao Parque da Bela Vista cujos cheiros ele conhece.

Dias depois, foi visto noutro ponto da cidade, na avenida de Roma junto a Alvalade, a correr no sentido da Praça de Londres. "Grande Manuel!", alguém exclamou, a tentar chegar a casa, a Alameda Afonso Henriques, por todas as formas e feitios. "É muito inteligente o seu cão", gabaram-no.

Depois dessa noite em que fui para a rua desejando o reencontro, em que esperei por ele até de madrugada num banco de parque, o Manuel nunca mais foi visto. Se é definitivo, foi brutal. Já passou mais de uma semana.

"Está no circo! desenrasque-se"

Não é inteiramente verdade, alguns "viram". "Boa tar​de, penso saber onde possa estar o seu Galgo desapar​ecido", começava assim o email. "Para informação do paradeiro peço 100 euros por envio de código mbway, [se] não tiver essa possibilidade que me faz falta para os meus filhos diga-me que eu pela situação não quero o seu mal e envio na mesma a informação 99% certa". Uma série de emails depois em que pedi ao suposto espectador de um cão desaparecido que fotografasse o animal para ter a certeza que era mesmo o Manuel, e para despistar as vigarices que o próprio assegurou que não praticava, descreveu um cão de "porte grande" mas "magro e esguio", "agitado e expressão de assustado" — o que me pareceu tão certo e tão conforme as fotografias colocadas nos avisos de desaparecimento quanto excessivamente genérico com "três homens a olhar para ele". Tudo isso tinha como cenário Chelas "junto à construção dos prédios da parte de trás do circo onde tem um descampado".

Outro mail ainda, mas nunca uma fotografia do animal: "Bom dia, agora no meu passeio matinal com mais atenção vi ele numa das mais de 20 casas, se quiser saber qual das 20 rolotes envie os 100eur por código mbway antes do meio-dia". Sobre a fotografia... "Não me vou meter em assuntos a tirar fotos a pessoas ou locais privados, moro ali, não vou entrar em situações q não me dizem respeito". Zangado, sem os 100 euros que ele queria que lhe dissessem respeito, decretou que merecíamos tudo o que estava a acontecer. "Está no circo! desenrasque-se". Como um pesadelo macabro de um filme de Tod Browning: já sonhei com o Manuel escravizado obrigado a empinar-se, a fazer acrobacias. Já me apareceram sem pedir licença imagens mentais bem acordadas de brutalidades conhecidas.

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"'Enrolado' foi palavra de esperança: era assim que o Manuel se sentava, se deitava, fechado sobre si próprio, como ali, debaixo de uma árvore e à beira de um lago"

Há quem, resolutamente formado pela sociedade laica e pela cultura que ela produziu, me tenha enviado O Responso de Santo António como um bálsamo e porta aberta ao milagre. "Não me faças perguntas, não penses, lê, no último local onde o cão foi visto, e se quiseres faremos isso os dois". Não faço perguntas nem tiro conclusões, espanta-me a disponibilidade para o espiritual que o cão abriu, o seu poder federador.

Há também quem tenha visto de longe, de muito ao longe, e graciosamente partilhou a visão. Através de radiestesia terapêutica, utilização de pêndulos, uma sessão de comunicação espiritual foi assim enviada por email: "Pendulou-se hoje, mais uma vez e continua a dizer que está preso por alguém, muito perto de casa (não sei onde mora). Querem ficar com ele mas ele não gosta do ambiente e quer voltar para o tutor. No entanto, o pêndulo confirma que ele vai voltar. Rápido? Nem sim nem não, a resposta foi talvez".

Talvez...

"Talvez" é insustentável para mim. Ou sim ou não. Vou confessar à Diana, à Cristina, à Patrícia, à Sofia — elas sabem quem são — aquilo que não lhes tinha ainda dito. Elas, não me conhecendo, surgiram prontas, de mangas arregaçadas, para a acção e para estratégia, desenhando linhas sobre mapas, sem tempo a perder, alertando e convocando uma rede de fontes construída em anteriores operações de resgate e que cobrem com conhecimento e desvelo o mais labiríntico dos territórios escolhido para um cão se esconder: as fronteiras insidiosas entre campo e cidade, vegetação e cimento, hortas e bombas de gasolina na linha que vai dos Olivais Sul ao Beato e que passa por Chelas e Parque da Belavista. Confesso-lhes então aqui que a energia delas — ​ainda que com elas esteja também uma memória de cães que nunca voltaram, que perderam, que não conseguiram resgatar: o João, o Banksy ou a Bolota, há meses, há anos, desaparecidos —, em suma, é uma energia com feridas cicatrizadas e que elas cuidam para que não se voltem a abrir. É essencialmente vital. A minha é a de um traumatizado.

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"Nunca vi o Manuel desde o dia da fuga mas vários (disseram que) o viram"

Quero falar-vos do Manuel.

Chegou um ano e meio depois do Negro e não sabia mas tinha uma missão, r​eabilitar​, estimular com a sua presença, a introversão doentia daquele que seria o seu companheiro, o galgo que primeiro adoptei. O Negro e o Manuel, nomes de origem que eu não quis mudar para tranquilizar as suas existências, são resultado da cultura da crueldade ibérica que se desenvolveu à volta dos galgos. Parecia uma relação à distância, a dos dois, cada um fazendo por ignorar o outro, mas como em todas as relações há coisas profundas que ficam por explicitar. O Manuel invadiu-nos a casa e o coração, sem contemplações par​a com as hierarquias de um primeiro amor. Manteve no entanto a sua reserva essencial, pernalta e aristoctica, onde talvez residisse todo o seu passado triste de abandono. Não a dobrava a troco de uns quaisquer croquetes oferecidos por desconhecidos — dobrava era a pata quando estava indeciso. Era uma forma elegante, só aparentemente pouco envolvida, de vida com o seu trauma.

O Manuel ria-se — há cães que o fazem, sem se poder dizer​ com toda a cer​teza o que é isso do riso de um cão — quando as suas coxas tr​aseiras er​am massajadas.

O Manuel, que na intimidade era um palhaço, tinha dos mais gloriosos acordares. O soalho de casa está todo picado pelas suas unhas.

O Manuel colocava-se no desafio da brincadeira como um corredor no bloco de par​tida.

É uma saudade imensa, uma mágoa por ter ficado por cumprir a promessa: salvar o Manuel das merdas dos homens.

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