Alunos estrangeiros perdem meses à espera de visto para estudar em Portugal. Queixa chegou ao Governo

Há quem espere quase um ano para receber o visto para estudar em Portugal – e esse é um dos principais impedimentos para virem estudar. Muitos alunos perdem meses de aulas sem direito a reembolso.

Foto
Atraso dos vistos dos estudantes dos PALOP é o que mais dificulta integração no ensino superior joan corominas/ Getty Images
Ouça este artigo
00:00
11:15

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

A espera entre o momento em que os estudantes internacionais recebem a notícia de que foram aceites numa instituição de ensino superior em Portugal e a chegada ao país é um dos principais entraves ao sucesso académico, desde logo porque, em média, são precisos quase dois meses até receberem o visto. Mas há quem esteja à espera há quase um ano para poder viajar para Portugal — e as queixas já chegaram ao Governo.

O tempo de espera por um visto é um problema geral das universidades públicas portuguesas, confirma Paulo Jorge Ferreira, presidente do Conselho de Reitores e reitor da Universidade de Aveiro.

No caso de Aveiro, este atraso é também um obstáculo para os investigadores estrangeiros contratados: muitos não conseguem visto e desistem do cargo. “É mau para eles e para a universidade. E o problema não é só o atraso na emissão dos vistos. Se, eventualmente, estas pessoas precisarem de regressar ao país de origem, por exemplo, em caso de urgência familiar, não podem. Há demasiada burocracia que tem de ser resolvida”, aponta em entrevista ao P3.

O Instituto Politécnico de Bragança (IPB), um dos principais destinos portugueses dos estudantes internacionais, também tem conhecimento de atrasos nos vistos de alguns alunos que foram aceites nesta instituição este ano lectivo. Contactado pelo P3, o presidente Orlando Rodrigues afirma que o politécnico contacta todos os anos consulados e embaixadas para resolver o problema que diz ser “recorrente”. Os alunos mais afectados pelos atrasos dos vistos são os que vêm do Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Guiné, onde, afirma o presidente, “é praticamente impossível conseguir autorização a tempo”.

Há casos de estudantes que esperam seis meses pelo visto. Mesmo sem o terem, pagam a taxa de inscrição e o primeiro mês de propina. Se o visto for recusado não há lugar a reembolso.

Sem resposta do Governo

Esta demora não é um problema apenas das públicas — e também afecta as privadas. A Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado (APESP) diz ter conhecimento de mais de 60 alunos internacionais que aguardam por um visto para fazerem mestrado em Portugal. A situação, acrescenta esta entidade, é mais preocupante na Índia, já que o consulado português em Nova Deli tem pendentes dezenas de vistos de estudantes universitários”, sem resposta.

A Escola Superior de Saúde de Santa Maria (ESSSM), o Instituto Universitário Atlântica e a Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (​CESPU), com vários campi ​no Norte do país, são algumas das instituições de ensino superior que lidam todos os anos com estes atrasos. A primeira instituição tem seis alunos à espera de visto, a segunda, 14, e a terceira, 36. Os da CESPU foram aceites no ano lectivo de 2023/2024, estão há nove meses à espera e já perderam praticamente o primeiro ano do mestrado em fisioterapia.

Tal como no público, “é uma situação generalizada no ensino privado e que dura há vários anos. Acontece com o consulado português em Deli, com o de Cabo Verde, de Angola e de outros países”, explica José Manuel Silva, presidente do Colégio Politécnico da APESP e responsável pela ESSSM. Contudo, a situação no consulado da capital indiana, destaca, é a mais complicada.

José Manuel Silva diz que a APESP está há meses a pedir uma audiência ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, a quem já reportou esta situação, mas sem resposta até à data. Em comunicado, a entidade promete agora expor a situação ao primeiro-ministro, Luís Montenegro.

Os seis estudantes indianos do Santa Maria foram notificados das colocações no início de Setembro. Nessa altura, pagaram a taxa de matrícula e o 1.º ano de propinas para estudantes internacionais (que varia entre os três mil e os sete mil euros), e estão desde então a tentar contactar o consulado para obter o visto. O problema, explica José Manuel Silva, é que Deli ainda não abriu vagas para agendamento de entrevistas. E não há informação sobre quando ou se o irá fazer.

“Muitas vezes as vagas para agendar entrevista não abrem e nem os estudantes nem as instituições de ensino superior são informados. A DGES [Direcção-Geral de Ensino Superior] sabe disto, há mais de um ano que a APESP anda a reportar a situação ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas nada muda”, acrescenta.

Segundo Natália Espírito Santo, directora-geral da Atlântica, a demora dos vistos fez com que dois dos 14 alunos já tivessem desistido dos mestrados em Enfermagem e Gestão. A decisão, diz, não surpreende, e já está até a contar com mais desistências.

“Estou desde Julho a enviar emails ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e a resposta é sempre a mesma: dizem que estão a tratar. Também contactei a embaixada em Deli por email, porque por telefone nem atendem, e responderam a informar que o processo está a seguir os trâmites normais. Mas os trâmites normais não são compatíveis com o calendário de aulas”, expõe.

Tal como na Escola Superior de Saúde de Santa Maria, estes alunos indianos pagam as propinas antecipadamente, e a maioria vê-se obrigada a pedir empréstimos para poder estudar em Portugal. Antes de serem seleccionados, enviam comprovativos dos bancos às universidades que mostram que têm condições financeiras para viverem no país durante os dois anos do curso — e que vêm apenas para estudar.

“Se o consulado desconfia de que estas pessoas não vêm cá para estudar, que contactem as instituições de ensino superior. Nós entraremos em contacto com a embaixada e conseguimos informá-los sobre o estudante. Agora, iniciar o processo de visto e não ter resposta não me parece que seja o caminho correcto.”

Vistos afastam estudantes internacionais especialmente dos PALOP

Os alertas dos responsáveis académicos fazem ecoar, mesmo sem querer, as conclusões do mais recente relatório da Nova SBE e do NOVAFRICA, centro da Faculdade de Economia de Lisboa. O estudo A Adaptação dos Alunos dos PALOP no Primeiro Ano de Estudos do Ensino Superior em Portugal concluiu que o atraso na obtenção dos vistos é um dos principais entraves e, para muitos, o único obstáculo ao aproveitamento académico no país.

O estudo ouviu 135 alunos destes países que ingressaram no 1.º ano de licenciatura em Portugal em 2021/2022. Descobriu que, para 93%, a demora do visto foi um dos principais motivos de atraso da chegada a Portugal. E 76% disseram mesmo ser a única razão.

Os estudantes que participaram no estudo estão na casa dos 20 anos, sendo que 65% estudam em politécnicos e 35% em universidades. Grande parte dos inquiridos (39%) é de Cabo Verde, 29% são da Guiné, 16% de Moçambique, 11% de Angola e 6% de São Tomé e Príncipe.

A maioria dos alunos (68%) chegou a Portugal um mês depois do início das aulas, isto é, em Outubro. Contudo, também houve quem só tivesse o visto mais de três meses depois de entrar numa instituição de ensino superior portuguesa. Neste caso, lê-se no documento, foram 10%.

Tendo em conta que o ano lectivo começa sempre em Setembro, estes alunos só chegaram a Portugal perto do final do ano. A par disto, aponta o estudo financiado pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI), do Ministério da Administração Interna, 11% só chegam ao país no ano seguinte ao que foram aceites em determinada universidade ou politécnico. Já 15% chegaram depois do início das aulas por motivos financeiros.

Solução: colocações saírem mais cedo

De acordo com os investigadores, a demora na obtenção do visto poderia ser resolvida de duas formas: primeiro, se os resultados de acesso ao ensino superior dos alunos internacionais fossem divulgados mais cedo, por exemplo em Maio, para que os jovens já estivessem em Portugal entre Setembro e Outubro, meses de início de aulas.

No presente ano lectivo, os resultados das colocações dos regimes especiais de acesso ao ensino superior só foram conhecidos no dia 12 de Setembro, de acordo com o calendário da DGES. As matrículas decorreram de 13 a 20 de Setembro.

Outra das soluções apontadas é a aceleração do processo de atribuição dos vistos por parte do consulado, “dando especial prioridade à emissão de vistos de estudantes”, lê-se no relatório.

Luís Silva, membro do conselho de administração da CESPU, sugere o mesmo. Segundo o porta-voz, a universidade tem “mais de 800 alunos estrangeiros” de países europeus, africanos, asiáticos e sul-americanos. Os que precisaram de visto tiveram-no, no máximo, num espaço de dois meses, e chegaram às aulas a tempo. Os 36 alunos da Índia, explica, deviam ter começado o mestrado em Março. As aulas teóricas foram leccionadas online, mas as práticas ficaram sem efeito.

“Estamos a falar de alunos já licenciados em Fisioterapia e que querem apenas fazer melhoria dos estudos académicos O mestrado nem lhes dá direito a exercer cá. Se queremos que o país possa contactar alunos estrangeiros para fazer formação, temos de ser mais céleres. Não estou a dizer passar por questões de segurança, mas quando a pessoa mostra que só quer vir estudar, deveria ter prioridade para obter visto”, defende.

Os estudantes indianos, continua, não compreendem o motivo da demora, desde logo porque “há países europeus que emitem vistos num máximo de oito semanas”. Com oito ou nove meses de espera para estudarem em Portugal, é óbvio que nunca vamos ser competitivos”, completa Luís Silva.

Acompanhar matéria e encontrar casa são desafios

Regressando ao relatório sobre os estudantes vindos dos PALOP, e apesar de o tempo para a obtenção do visto também ser longo de mais (ainda que mais curto do que o dos alunos vindos da Índia), a chegada a Portugal após o início das aulas não está livre de dificuldades. Além de afirmarem ser mais difícil fazer amizade com alunos portugueses (69%), 79% revelam dificuldades em acompanhar a matéria. A criação de um programa pré-universitário, acreditam os investigadores, poderia facilitar a integração dos alunos antes do período de aulas.

Procurar alojamento também é um problema para 60% dos alunos, sendo que 54% têm dificuldades em suportar os custos associados. Perceber como funcionam serviços como transportes, bancos, saúde e a própria instituição de ensino que frequentam é outro dos obstáculos dos alunos após a chegada a Portugal.

A pensar nisto, os investigadores sugerem a criação (ou expansão, no caso de já existirem) de “programas de mentoria” entre alunos portugueses mais avançados nos estudos e recém-chegados, e uma aplicação sobre o acesso a transportes e outros serviços que possa ser consultada ainda antes de virem estudar para o país.

Trabalhar mais de 30 horas porque a bolsa não chega

Dos estudantes que participaram no relatório, 9,6% — ou seja, 12 alunos — receberam bolsa de estudos. Destes, apenas quatro afirmaram que o valor da bolsa é suficiente para suportar os custos de vida em Portugal.

O documento detalha ainda que 24% dos inquiridos dos PALOP (isto é, 30 estudantes) têm estatuto de trabalhador-estudante e que metade (60%) trabalha dez ou menos horas por semana. Cerca de 20% trabalham 10 a 20 horas e os restantes 20% mais de 30 horas semanais.

Para os investigadores, estas cargas horárias próximas de horários de trabalho completos podem ser outra das “barreiras ao sucesso escolar”, nomeadamente para os alunos que têm dificuldades em acompanhar a matéria.

Em relação ao aproveitamento escolar, os investigadores analisaram dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) e descobriram que só 36% dos alunos cabo-verdianos que começaram a licenciatura em Portugal em 2013/2014 conseguiram diploma ao fim de sete anos.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários