E se acabássemos com “Sua Excelência, o Presidente da República”?

Desde a Primeira República, que todos os presidentes se assemelham: são todos homens. Proponho que se reflita, no mínimo, sobre a possibilidade de uma rotatividade de género.

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A mais de um ano das próximas eleições presidenciais, já há muitos meses que vários nomes de potenciais candidatos circulam, tais como: António Guterres, Pedro Passos Coelho, Henrique Gouveia e Melo, Mário Centeno, Santana Lopes, Augusto Santos Silva ou Luís Marques Mendes. Quando olhamos para o perfil destes possíveis candidatos, torna-se evidente a homogeneidade que perpetua uma tradição centenária. Desde a Primeira República que todos os presidentes se assemelham: são todos homens, média de idade de sessenta anos em início de mandato e de sessenta e sete no final. Além disso, parecem enquadrar-se na categoria amplamente dominante, em cargos de poder, da heterocisnormatividade branca, de classe média, alta ou burguesa, sem que qualquer um deles, salvo erro, tenha origem operária.

“O Presidente da República representa a República Portuguesa…”, diz a Constituição. E é caso para perguntar: representa de que forma? O que significa termos sempre os mesmos perfis como representantes máximos de um país? Mérito? Quem se arrisca a dizer que mulheres, pessoas racializadas ou queer não têm mérito? As mulheres representam metade da população. Como é possível que, até hoje, nenhuma tenha tido o mérito de nos representar na Presidência da República? A quem serve fazer de conta que as desigualdades estruturais são desigualdades individuais? E onde está a diversidade que se espera de um cargo de representação nacional?

Imagine-se que todos os presidentes tivessem sido mulheres ou pessoas negras — a singularidade dessa representatividade seria imediatamente notada. Bastaria que duas mulheres tivessem sido eleitas consecutivamente para surgirem vozes a defender que “desta vez era bom ser um homem”. Ora, é precisamente para perpetuar esta dominação homogénea que surgem argumentos como “eu não vejo géneros” ou “eu não vejo cores”. E assim se compreende a defesa fervorosa da figura da pessoa universal e neutra (PUN), que, na prática, funciona como um biombo para ocultar privilégios e estruturas de dominação. No fundo, se declararmos que todos os presidentes foram “pessoas universais e neutras”, estamos a afirmar que puderam, e podem, representar todas as pessoas sem qualquer tipo de contestação. Contudo, não podemos esquecer que hegemonia não é universalidade. Se os perfis que têm ocupado a Presidência são de facto hegemónicos, isso não significa que representam, nem podem representar, a universalidade de todas as experiências e identidades.

Para repensarmos o modelo actual da Presidência da República, proponho que se reflita, no mínimo, sobre a possibilidade de uma rotatividade de género. No entanto, poderíamos ir ainda mais longe e questionar a própria ideia de uma figura singular e centralizada que ocupa um palácio, cercada por uma aura de subserviência quase monárquica, expressa em termos anacrónicos como “Sua Excelência”. Não se trata, obviamente, de cair no extremo de tratar toda a gente por ou sócio, mas de simbolicamente reforçar a essência de poder horizontal de uma democracia. É caricato que servidores do Estado, “representantes do povo” sejam colocados em tão incongruente pedestal. Representar não implica dominar nem ocupar uma posição de superioridade, ou de inferioridade. É possível encontrar um compromisso entre o palácio e a rua.

Continuamos a perpetuar uma visão patriarcal e aristocrática do poder, em que o Presidente da República encarna uma figura paternalista, o paizinho” que cuida dos nossos problemas. E se abandonássemos, então, não só este modelo de deferência exagerada, mas até a própria figura singular da Presidência? Poderíamos pensar num modelo colegial rotativo que integraria e seria o reflexo de uma maior representatividade, diversidade e horizontalidade. Apesar de já existirem modelos similares como o suíço, o país poderia liderar pelo exemplo, mostrando caminhos inovadores, criativos, inclusivos, não apenas para ser original, mas porque reforça a Democracia.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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