Sobre o crime de violação ser crime público

Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais são crimes iminentemente pessoais, pelo que a vítima deve ser um dos principais focos de atenção.

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Discute-se a possibilidade de o crime de violação passar de crime semipúblico para crime público.

Na prática, o Ministério Público tem obrigação e legitimidade para abrir inquérito sempre que tem conhecimento de um crime, como consagra o artigo 262º do Código de Processo Penal. Contudo, este princípio tem excepções, e o crime de violação é uma delas pela sua natureza processual, isto porque o crime de violação é um crime semipúblico, ou seja, a pessoa ofendida tem de apresentar queixa nos termos apresentados no artigo 113º do Código Penal por forma a dar lugar à instauração do inquérito. Sem esta queixa o Ministério Público não pode promover o processo penal.

Várias razões têm sido dadas para manter o crime como semipúblico, desde possíveis falsas declarações à possível sobrelotação de processos. Todavia, é necessário focar no aspecto mais importante quando se trata de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais: a vítima.

A protecção da vítima nos casos de crime de violação é uma situação complexa. As experiências mais comuns entre as vítimas de violação são o medo, a ansiedade, o stress pós-traumático, a depressão e problemas em futuras relações íntimas. Ao contrário da crença popular, a maioria das vítimas de violação preocupa-se mais em saber a razão de ter sido vitimada do que com a punição do ofensor (Rudolfsson, 2024).

Perante tais e diversas consequências as vítimas de violação podem ter reacções diferenciadas, desde querer e ter vontade de fazer o procedimento criminal andar em frente, até àquelas que desejam deixar todo o episódio para trás. Por outro lado, vítima de violação é essencial para a produção de prova, desde o relato dos acontecimentos a exames médico-legais ao corpo e à vagina ao encontro de lesões ou secreções de sémen.

Este contacto é incontornável se se quiser que o procedimento criminal chegue a bom porto, independentemente se o crime é público ou semipúblico. A partir daqui o contacto da vítima com o sistema de justiça pode ser mais prejudicial que benéfico. A título de exemplo, Rudolfsson novamente constatou que no momento de contar os factos muitas vítimas eram descredibilizadas porque não choravam ou não estavam suficientemente perturbadas.

A vitimização secundária é uma realidade, principalmente quando falámos de um crime que toca a um nível pessoal a vítima como o crime de violação. Informar a vítima, ter alguém que possa dar apoio jurídico e psicológico é algo a reforçar, para esta decidir de forma informada, mas tornar o crime público e forçar todo este processo à vítima contra o seu desejo pode ser precoce.

O bem-estar da vítima e a reabilitação do ofensor são dois dos grandes objectivos do sistema penal português. É um equilíbrio impossível por vezes, mas decerto este não me parece o caminho a fazer para prosseguir estes objectivos, não se instrumentalize a vítima para finalidades terceiras.

Sendo um crime iminentemente pessoal, devemos dar algum controlo à vítima numa situação em que esta sente que perdeu todo o controlo e minimizar a vitimação que pode surgir com o contacto com profissionais de saúde e de justiça.

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