O Coração Ainda Bate. Imperdoável
O perdão a esta mulher pertence. Inês Meneses escreve sobre “Disclaimer”.
Acabei de ver Disclaimer, a série que anda na boca e no pensamento de muita gente. Mulheres em maioria, acredito.
É fácil querer ver um conteúdo qualquer com Cate Blanchett: ela é distante e ao mesmo tempo magnética. Há uma elegância em tudo o que faz, até quando é uma mulher fria, sem emoções. Raras vezes a vemos realmente a perder a compostura, mesmo que a personagem esteja interiormente desfeita. Tenho Carol como um dos meus filmes de eleição, a que volto muitas vezes. E é sublime em Tár ou em Blue Jasmine. Há muitas actrizes de quem sou admiradora de forma militante, Tilda Swinton, Susan Sarandon, Julianne Moore, Meryl Streep, Naomi Watts, Diane Keaton, Kate Winslet ou Cate Blanchett. Blanchett e Tilda Swinton têm uma elegância difícil de pôr em palavras, porque deixam um rasto subtil, enigmático. As mulheres podem ser muito misteriosas.
Volto então a Disclaimer. Andei às voltas com a série de Alfonso Cuarón, porque se fui imediatamente seduzida nos primeiros dois episódios, pelo meio zanguei-me com alguns buracos numa narrativa por vezes incongruente, sem perceber que o fim ia levar-me a escrever hoje sobre Catherine. Catherine é Cate. Cate que se chama Catherine. Quanto dela há neste papel? Também isto pesa e faz parte desse mistério de mergulharmos numa personagem esquecendo quase tudo à nossa volta.
A série, disponível na Apple TV (são apenas sete episódios), apresenta-nos a uma mulher bem-sucedida, casada, mãe de um filho. Catherine é projectada no ecrã como se representasse o triunfo da mulher emancipada que teve de amputar determinadas virtudes ou aquilo que a sociedade vê como virtudes, para se evidenciar. Terá sido pouco maternal? Pouco afectuosa? Implacável no trabalho, onde é reconhecida e admirada? Cuidado com as primeiras impressões. Esquecendo por momentos a ficção, a vida também me tem mostrado que um tímido pode escudar-se numa aparente arrogância para se proteger. Todos queremos ser especiais na vida de alguém. Todos. Até quando já conquistámos meio mundo. Uma mulher tímida pode insistir num certo distanciamento para nunca se magoar. Ou por não saber como chegar aos outros. Não condenem ninguém antes de se disponibilizarem para os conhecer. Conhecer implica tempo e trabalho. Condenar é rápido.
Voltemos a Catherine. A série vai mostrá-la capaz de quase tudo, antes de sabermos que é vítima. Sabem quantas mulheres foram vítimas? Demasiadas. Em silêncio. Hoje, ontem. Desde sempre. A lutar agora para que não seja para sempre.
Quase todas as mulheres têm uma história de abuso para contar camuflada numa vida bem-sucedida.
Há uma reviravolta muito interessante no último episódio desta série. O que ainda me perturba, e não será facilmente que isto me vai sair da cabeça, é o diálogo entre marido e mulher, onde, perante um pedido de perdão dele, ela diz: “Eu não sei se te consigo perdoar. Porque estás a aceitar a ideia de eu ter sido violada por alguém muito mais facilmente do que a ideia de alguém me ter dado prazer. É quase como se estivesses aliviado por eu ter sido violada. Não sei como perdoar isso.”
Ele era um homem bom. Talvez imberbe, apesar da idade. Ela foi-nos apresentada como uma mulher astuta, sagaz, implacável. Ela tinha uma história para contar que ele não se permitiu ouvir.
As pessoas são muitas camadas. Ninguém é só uma coisa ou outra. Já a condenação é fatal. E todas a pessoas que condenam sem ouvir dificilmente podem ser desculpadas. Tenho uma relação ambivalente com o perdão, achando que a capacidade de perdoar não é sequer terrena. Mas isto é ficção e nesta história as desculpas seriam insuficientes.
Um rasto pesado ficou no ar depois de acabar a série. Como mulher sei bem como me sinto. Talvez haja lugar para a redenção nos homens.
O coração ainda bate.