A noite na biblioteca: Crepúsculo

Será o silêncio uma espécie de buraco negro, um vazio, o nada, ausência total de comunicação? O meu “não” é definitivo. No silêncio, há perguntas e respostas, caminhos e labirintos.

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Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira Nuno Seabra
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Em maio deste ano, visitei a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira no contexto da Road Trip Literária — 18 Distritos, 18 Bibliotecas, 18 Livros. Apaixonei-me pela arquitetura da sala de leitura, que tem uma espaçosa varanda acessível por uma romântica escada em caracol. Esta varanda, de onde se consegue observar toda a sala, fez-me lembrar um momento icónico do cinema, quando o detetive William Somerset (Morgan Freeman) visita a biblioteca à noite para procurar informações sobre os crimes que está a investigar no filme Se7en (Sete Pecados Mortais), dirigido por David Fincher, e no qual Brad Pitt (detetive David Mills) é coprotagonista.

Na sequência dessa visita, desafiei a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira a disponibilizar-me guarida na sala de leitura para uma aventura durante uma noite, sem guião, entre livros.

Feito o preâmbulo, escrito nos primeiros minutos, prossigo o relato em “direto”.

São 17h35. Ocupo uma mesa na sala de leitura da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira. Ao fundo, por uma das janelas, entre nuvens brancas, vejo o topo da Igreja da Misericórdia, onde meia dúzia de pombos flutuam em volta dos crucifixos. Rodeiam-me milhares de livros, linhas e linhas de partilhas, viagens, lições, devaneios, encantamentos, paixões, amores, ódios, esperanças, desilusões, nascimentos, mortes, vidas, morte e vida. O Mundo na Biblioteca.

“Assusta-me sempre escrever as primeiras linhas, atravessar o limiar de um novo livro. Quando percorri todas as bibliotecas, quando os cadernos transbordam de notas febris, quando já não me lembro de pretextos razoáveis, nem sequer insensatos, para continuar à espera, atraso-o ainda vários dias durante os quais chego à conclusão que é apenas cobardia. Simplesmente, não me sinto capaz. Devia estar tudo ali — o tom, o sentido de humor, a poesia, o ritmo, as promessas. Os capítulos ainda por escrever já deviam adivinhar-se, lutando por nascer, na sementeira das palavras escolhidas para começar. Mas, como é que isso se faz? Neste momento, a minha bagagem são as dúvidas”, diz-me Irene Vallejo, entregando-me em mão um exemplar de O Infinito num Junco, um livro sobre a história dos livros.

À minha volta, há mais de vinte almas em silêncio. Aprecio a quietude sagrada das salas de leitura. Falo e escrevo muito sobre o silêncio. Uma vez, uma senhora já com alguma idade confidenciou-me: “Não gosto nada do silêncio, que horror, já basta o silêncio quando morrer.” Não discuti. O silêncio dependerá sempre do contexto e da perspetiva de quem o vive. Mas, pergunto eu, será o silêncio uma espécie de buraco negro, um vazio, o nada, ausência total de comunicação? O meu “não” é definitivo. No silêncio, há perguntas e respostas, caminhos e labirintos. Tanto nos diz, o silêncio.

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Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira João da Silva

“Vivemos na era do ruído. O silêncio está em vias de extinção”, diz Erling Kagge, autor de Silêncio na Era do Ruído, como se lesse os meus pensamentos. Levanto a cabeça na esperança de perceber de onde vem a voz. Em vão. A voz de Kagge ecoa na minha mente. Li o seu livro uma dúzia de vezes. Prossegue: “Que vias levam ao silêncio? Certamente as viagens por lugares selvagens. Deixem os vossos instrumentos eletrónicos em casa, e sigam numa direção até que não haja nada à vossa roda. Ou então permaneçam sós durante três dias. Não falem com ninguém. Gradualmente, começaremos a descobrir outros aspetos de nós mesmos. É possível atingir o silêncio em qualquer lugar. Só temos de subtrair”. Como por magia, o livro de Kagge aparece na minha mesa.

A maioria das pessoas à minha volta é jovem, vinte, vinte e cinco anos no máximo. Falei com uma dúzia. Quase todas me confidenciaram que estudam. Há duas exceções (acima dos trinta) que estão a trabalhar. As raparigas — na faixa etária que referi ainda se pode utilizar “raparigas”? — são em muito maior número do que os rapazes. Comigo, somos seis. (Descarto da contagem um dos rapazes que chegou há cinco minutos para fazer companhia à namorada e que está a jogar no telemóvel)

Não admira esta disparidade. Os estudos mostram-nos que as mulheres estão em maioria nas universidades, o que me leva, empiricamente, a deduzir que estudam mais, que leem mais, e que trabalham e se esforçam mais em prol da sua educação e desenvolvimento pessoal. Olho para as mulheres que aqui estão e integro-as mentalmente na escultura A Vida é uma Missão, um livro com quatro figuras envolvidas nas suas páginas, que faz parte da exposição O Mistério que as Coisas Têm, da autoria de Isabel de Andrade, atualmente em exibição na biblioteca de Santa Maria da Feira.

Às 18h, verifica-se a primeira debandada. Pergunto a um rapaz o que vai fazer? “Treinar. Jogo à bola num clube aqui perto.” Arrisco a mesma pergunta a uma rapariga que arruma o computador na mala, a dois metros do meu lugar. “Vou para o ginásio.” Inspirado pelas revelações, avalio as posturas dos meus vizinhos. As raparigas estão mais direitas do que os rapazes. Entre os últimos, o meu colega de secretária é o pior. Está todo torto, parece um corcunda. Aconselho-o a endireitar-se. Ele não percebe e tira os auscultadores. Repito o conselho. (Arrisco, eu sei, não me pediu nada) Ele sorri e endireita-se. Em 30 segundos, está novamente curvado, quase fundido à mesa, como se o espaço em redor o tivesse engolido, tornando-o quase invisível.

Olho pela janela. A Igreja da Misericórdia apresenta-se tenuemente visível. A claridade foi, aos poucos, desfalecendo, e as cores esmorecendo à medida que o crepúsculo se estabelece. Quando planeei iniciar a escrita desta crónica ao entardecer, imaginei um pôr do sol magnífico. Mas o tempo não se rege pelo que imaginamos; o tempo caracteriza-se por uma “caprichosa variabilidade”, esclarece Alain Foucault, autor de O Clima — História e devir do meio terrestre, em voz alta e com firmeza. Levanto-me para o procurar. O geólogo acrescenta que “apesar dos parâmetros temporais que se repetem mais ou menos dum ano para o outro”, não é possível “quer prever as suas alterações, quer compreender perfeitamente as causas de tal variabilidade”. Ao despedir-me, digo a Foucault, em concordância: “Ainda ontem esteve um dia de sol.”

Digito “crepúsculo” na lupa do catálogo digital da biblioteca. (Bem-haja o progresso!) Escolho As Cores do Crepúsculo, de Armando Pinheiro, e delicio-me com o prefácio de Álvaro Magalhães:

“E é ao fim da tarde que nós envelhecemos e envelhece o mundo; e é por isso que a essa hora todas as coisas nos parecem tão carregadas de tempo. Mas essa luz agonizante que se dissolve no ar e devagar se transforma na poeira dos dias é já uma luz prenhe de claridade, prestes a renascer. Esse último aceno da Beleza é também o primeiríssimo aceno dessa mesma Beleza: a luz da próxima aurora. O fim de um dia é o fim de um ciclo (de um círculo), dum incessante movimento de regeneração. A claridade espera a claridade que renova e vivifica, a luz espera a luz que a torna mais alta e mais brilhante, a nova matéria espera a matéria restante. E como muito bem sabe o poeta ‘depois da vindima/faz pena ver as uvas que ficaram esquecidas na ramada...’ são essas as uvas que morrem e não as outras, que vão ser transformadas. É um trabalho puro e simples, esse, um trabalho total que exige a presença de limites. E é essa noção de limite que nos leva a outra importante referência deste conjunto de textos: a linha do horizonte. Há uma idade em que a linha do horizonte/se afasta sempre de nós, à medida dos nossos passos/Depois nós andamos mas ela está fixa: espera. Trata-se ainda aqui do homem e de todo o seu itinerário ao longo dos ciclos sucessivos da vida, do homem cercado pelos seus próprios limites, pela nítida linha que cerca toda a atividade solar. A linha do horizonte é, assim, não apenas um limite mas simultaneamente um limite e um limiar, o invisível fio que liga uma vida a outra vida”.

Entusiasmado, chamo pelo poeta. Armando não se demora:

“Quando tudo se vai alisando/como as rochas batidas pelo tempo,/e já sabemos perdoar mais e exigir menos o perdão,/quando a própria amargura se restringe,/ e olhamos o Sol, as flores e as crianças como se fosse a última vez,/ quando as uvas amadurecem,/ na véspera da vindima,/ e o amor continua a ser maravilhoso,/ Amigos, é o crepúsculo que chega tingido de tonalidades brandas,/ é a Beleza próxima do último aceno,/ é a bênção que damos aos nossos filhos e à Natureza,/ de que derivámos e a que finalmente nos devolvemos.”

São 20h. Saem mais cinco ou seis pessoas. A sala está quase vazia: na varanda estão três pessoas, cá em baixo, eu, um senhor de idade avançada e uma rapariga. Finda a contagem, junta-se a nós um casal na casa dos 30 que ocupa uma mesa com dois computadores. Ela apressa-se a publicar fotografias no Facebook. Ele vê o email. A dada altura, trocam algumas palavras. São estrangeiros. Parece-me que do Leste da Europa. Ela levanta-se com urgência. Juntos, analisam com preocupação o email. A rapariga aflige-se e levanta a voz para o rapaz, que lhe responde em voz baixa. Segundos depois, ela regressa ao Facebook. Não voltam a falar.

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Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira Nuno Seabra

Eu deveria ir jantar, mas a novela amoleceu-me. Levanto-me e sento-me num sofá. Instalado numa estante aqui perto, Umberto Eco sussurra-me um trecho do seu magnífico Em Nome da Rosa: “Acordei pouco antes de soar a hora da refeição da noite. Sentia-me entorpecido pelo sono, porque o sono diurno é como o pecado da carne: quanto mais se teve mais se queria ter, e no entanto sentimo-nos infelizes, saciados e insaciados ao mesmo tempo.”

Regresso à biblioteca uma hora depois, saciado. A noite já se instalou há muito, tornando a palavra “crepúsculo”, que titula esta crónica, cada vez mais datada. De entre as estantes, observo o senhor de idade avançada sentado ao computador, quase submerso numa pilha de livros. À medida que se aproxima a hora de encerramento da biblioteca, começa a arrumar os livros nas estantes. Acho que não é suposto fazê-lo, mas ele parece familiarizado com o espaço. Sou capaz de apostar que sabe de onde os tirou. Com livros e mesa ordenada, percorre a sala a arrumar as cadeiras. Às 11 em ponto, dirige-se à saída e sai, sem se despedir de ninguém. O casal continua a jogar. Não despegam. Tossico. O rapaz tira os olhos do computador, olha para mim e depois para o relógio. Abandona o jogo e diz à rapariga que desligue o computador. Ela resiste, mas pouco depois dirigem-se para a saída de mão dada. Ele segura a porta para que ela saia primeiro. Passam três minutos das 23h. O senhor Joaquim roda a chave da porta e regressa ao seu posto na receção. Eu fico sozinho na sala de leitura. Sozinho e mais acompanhado que nunca.

“Muitas vezes, mesmo de noite, a igreja parece cheia de gente. Os assentos estão gastos e gordurosos, as sotainas estão no seu lugar e os hinários estão nos bancos. É um navio com a tripulação toda a bordo. A madeira esforça-se por conter os mortos e os vivos, os lavradores, os carpinteiros, os senhores que vão à caça de raposas e os agricultores que cheiram a lama e Brandy”, expõe Virginia Wolf, depositando O Quarto de Jacob na minha mesa.

— Faça o favor de se sentar, estimada Virginia. A noite promete ser longa — digo, puxando uma cadeira para que a escritora se instale.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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