O dia seguinte

Não sou ingénuo e sabia que o assunto se ia desvanecer. Mas, como profissional que actua sobre justiça social, evidentemente que me desagrada a falta de atenção mediática regular ao tema.

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Enquanto escrevo já estamos imersos no folhetim do Ruben Amorim e, quando este artigo estiver vivo, estaremos a escalpelizar outra novela, provavelmente sobre o ego dos homens: entretenimento vendável como informação.

Da semana que passou, apesar das dezenas de especialistas convidados para falar sobre a morte do Odair e os consequentes incidentes, foi Claúdio Gonçalves “Tibunga” – modelo e morador do Bairro do Zambujal – que disse na televisão o mais óbvio e certeiro. Qualquer coisa como: “Quando mataram o meu amigo não quiseram saber, quando começaram a incendiar caixotes começaram a interessar-se”.

Obviamente, não sou ingénuo e sabia que o assunto se ia desvanecer. Mas, como profissional que actua sobre desigualdades, pobreza e justiça social, evidentemente que me desagrada a falta de atenção mediática regular a estes assuntos; porque deviam fazer parte de um compromisso central a todos.

Infelizmente generalizou-se a expressão “Estado de Direito”, adequando-a apenas ao aparelho repressivo. E pondo o ónus sobre aqueles a quem não oferecemos os restantes direitos do Estado: saúde, habitação, cultura, cidadania, educação e emprego.

Solidificar esses direitos – múltiplos nos territórios de exclusão das Área Metropolitanas de Lisboa e Porto, Algarve e nas demais cidades do país é resolver grande parte dos piores indicadores sociais do país. Nunca será despesa, mas sempre investimento.

Aqueles que acham que a semana que passou permitiu uma mais sensibilidade e caminhos de política pública enganam-se.

À mesma hora a que o Governo se encontrava com um conjunto de associações – numa lista, em modos gerais, sem critério e afastada das comunidades – para uma reunião que classificou como histórica, mesmo que sem agenda, medidas ou itinerário (eles devem chamar-lhe road map), o Estado despejava cerca de 80 moradores no Monte da Caparica através do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana.

Suprimiram-se carreiras na periferia da cidade e em Loures aprova-se (com os votos do PSD e PS) uma recomendação do Chega para despejar de casas públicas quem seja condenado por estar envolvido nos tumultos, como se desse para separar filhos de pais e avós, num atentado ao Estado de Direito só possível por se olhar para estas populações como sub-humanas.

Entretanto, as forças policiais exaustam os seus recursos varrendo as redes sociais à procura de jovens que de algum modo possam ter opiniões instigadoras, enquanto deputados do país ocupam impunemente os directos da televisão pública a sugerir que se mate mais.

No Bairro do Zambujal já se avista polícia a dançar de forma jocosa música africana – e não, não é um acto de policiamento de proximidade; enquanto noutros espaços, políticos assessores municipais ameaçam retirar financiamento a quem participe em protestos democráticos e por melhores condições de vida.

É este o dia seguinte para quem não os ouve mais, que é o mesmo dia de todos os outros de quem lá vive, até nova explosão.

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