Máquina de gerir sentimentos

Milhares de anos de evolução fizeram pouco pela capacidade de lidarmos com emoções complexas. De todas as invenções que poderíamos pôr ao serviço da Humanidade, esta seria das mais importantes.

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"Confiar a gestão do que sentimos a uma máquina talvez nos oferecesse o álibi perfeito para as nossas más decisões" Cottonbro studio/pexels
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Este verão, uma amiga cumpriu o velho cliché de se apaixonar por um homem casado. Percebendo que estava ali a receita para o desastre, dei-lhe o único bom conselho que se pode dar numa situação destas: que saltasse fora o mais depressa possível. “É mais fácil dizer do que fazer”, respondeu-me, com razão. Poucas semanas depois, enquanto a minha amiga tentava resolver a previsível embrulhada em que se tinha metido, caí também na armadilha de me deixar enredar por quem pouco tinha para me oferecer.

A Maria tinha saído de um casamento abusivo com o pai dos seus filhos para logo se entregar a uma relação, igualmente tóxica, com um homem casado que controlava todos os seus passos. Quando a conheci, tinha urgência de se libertar dessas amarras e viver a vida que acreditava merecer. Sem grande surpresa, repeti um guião já gasto: acreditei que seria eu quem a salvaria daquele caos. Não é difícil adivinhar o desfecho.

“O melhor é largares isso quanto antes”, aconselhou-me a minha amiga. Quando lhe disse que o seu conselho era muito ajuizado, mas que, ainda assim, queria ignorar os perigos e arriscar aquela vertigem, enfureceu-se comigo. Como poderia estar a fazer o contrário do que lhe recomendara? A verdade é que nem esbocei grande defesa. Acusado do crime de contradição, declarei-me culpado. “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, já dizia o velho ditado. Mas depois aleguei circunstâncias atenuantes: não há lugar para a lógica nos assuntos do coração. Olhe-se, por exemplo, para a idealização que fazemos das pessoas pelas quais nos encantamos. Haverá exemplo mais evidente de como a paixão corrompe a nossa razão?

Quando aconselhei a minha amiga a sair do caos emocional em que se estava a meter, todo eu era razão. Já quando me vi numa situação semelhante foi como se o lado racional da minha mente entrasse em modo de férias e ela se enchesse de fantasias românticas. A ciência dá pistas sobre este fenómeno: estudos sugerem que, quando nos apaixonamos, há uma diminuição da atividade do córtex pré-frontal, a área do cérebro associada à razão e ao pensamento crítico. É por isso que, quando estamos cegos de paixão, é importante confiarmos nos nossos amigos mais próximos. Os olhos deles conseguem ver mais longe.

Centenas de milhares de anos de evolução humana fizeram pouco pela nossa capacidade de lidarmos com emoções extremamente complexas. De todas as invenções que a ciência poderia pôr ao serviço da Humanidade, eis seguramente uma das mais importantes: uma máquina de gerir sentimentos, capaz de tomar por nós (ou ajudar-nos a tomar) as decisões racionais que as emoções nos negam. Começamos a encantar-nos por uma pessoa que está emocionalmente indisponível? A máquina aciona imediatamente um impulso — qual desfibrilhador — que nos impede de fantasiar com finais felizes. Estamos de coração partido depois de mais uma desilusão amorosa? Basta premir “Restart” para sermos novamente uma página em branco, pronta a abrir um novo capítulo. Queremos desculpar um amigo que nos traiu? É só carregar no botão “Perdoar” para dar uma nova oportunidade à amizade.

Consigo lembrar-me de muitas ocasiões em que uma máquina assim me teria facilitado a vida. Por exemplo, há uns anos, quando um amor antigo quis que tentássemos de novo, seria tentador ter um botão que pudesse pressionar para sentir outra vez o que antes sentia. Noutros momentos, marcados pela dor, a angústia ou a saudade, talvez gostasse de apagar uma pessoa da minha memória, mesmo que com isso eliminasse também as recordações felizes que com ela vivi. O problema é que, ainda que dispusesse de um interruptor “On” e “Off” para os meus sentimentos, nada garante que o soubesse usar bem. Ou que tivesse sequer coragem de o acionar. Daí ser tão útil ter uma inteligência artificial que pudesse tomar essa decisão por mim, sem estar condicionada pelo que sinto num dado momento.

Ou talvez sejam realmente as emoções que fazem de nós humanos. Mesmo que sejam muitas vezes complexas, imprevisíveis, difíceis de gerir. Mesmo que possam causar-nos mais dor do que gostaríamos de suportar. Que nos impeçam de seguir em frente. E que, por causa delas, falhemos mais do que acertemos. Mas é em cada um desses falhanços que crescemos e desenvolvemos a nossa inteligência emocional. Confiar a gestão do que sentimos a uma máquina talvez nos oferecesse o álibi perfeito para as nossas más decisões e falhanços sentimentais, mas roubar-nos-ia o que temos de mais precioso: as nossas imperfeições e contradições. Que graça teria acertar sempre se cada erro nos oferece uma nova lição?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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