As palavras erradas

Repetimos os mesmos erros, uma e outra vez. E por vezes repetimos as mesmas palavras e os gestos que a elas conduzem, na esperança de corrigir os erros, numa cópia irreparável da realidade.

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"Os meus erros acompanham-me, mas acho que me afeiçoei a eles" David/Pexels
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Certa vez, quando tinha eu 20 anos, e era uma ávida estudante de Teatro que usava casacos cor-de-rosa choque e cabelo vermelho, entrei na secção dos livros da Fnac do Chiado, em Lisboa, e dirigi-me ansiosa à secção dos livros de neurociências. Usava, com a mesma vaidade com que usava casacos de cores berrantes, a convicção de que o "cérebro” e tudo o que nele se encontra: neurónios, tecidos, células, ideias, emoções, memórias, palavras… Era um dos mais fascinantes enigmas do universo (largados os casacos berrantes, mantenho a convicção). Dirigi-me a uma funcionária de colete cinzento escuro e pedi-lhe com o queixo erguido e aquele orgulho exasperante de aspirante a atriz que se quer interessar por muito mais do que Shakespeare, o novo livro do neurocientista António Damásio, agitando sorridente as pestanas coladas com rímel e os lábios — também eles choque(!) — abrilhantados com gloss coral, e anunciei:

— Venho buscar o novo livro do António Damásio, Ao encontro da espinal medula

A funcionária girou as sobrancelhas como dois escorregas desdenhosos sobre os óculos de lentes espessas e com um tom igualmente espesso, corrigiu-me:

— Ao encontro de… “Espinosa”?

— Ou isso… —, respondi com as bochechas tão cor-de-rosa quanto o meu casaco, numa reação que agora sei ser reflexo do meu sistema nervoso simpático, diante da nada simpática funcionária da livraria. Ela revirou os olhos, e entregou-me o exemplar, não sem antes perguntar:

— É para oferecer, certo?

E eu encolhi os ombros, e murmurei um:

— Não… É para mim mesmo… —, muito baixinho, e com letras muito pequenas, estrangulada pelo embaraço, pela confusão ortográfica, mas sobretudo pela minha ignorância. Eu não fazia a mais pequena ideia do que era, ou antes, de quem era Espinosa, o filósofo racionalista de descendência portuguesa do século XVII, e muito menos que era a ele que Damásio se referia, e não à “espinal medula” — a estrutura células que se estende pela coluna vertebral, responsável por conduzir informações de diversas partes do organismo para o cérebro…

Li o livro, sôfrega, fantasiando que num futuro próximo, talvez reencontrasse a senhora da Fnac, desta vez envergando um casaco azul-escuro sóbrio, usando os meus óculos para ver ao longe, para demonstrar como desforra, a minha sabedoria atualizada. Mas sempre que voltava à loja, e me cruzava com ela, escondia-me fortuita atrás das prateleiras dos CDs, paralisada por uma espécie de cãibra na confiança vertebral.

A minha relação com as palavras sempre passou pelo meu corpo, como as coisas passam pela espinal medula: vitais e reflexas, como se as palavras não pudessem ser outra coisa senão matéria que me constitui, e que compõe os nervos, os fluidos, e o que sou. Sempre precisei delas não só para existir, mas também para dar uma existência aos outros. Para dar corpo aos outros.

Quando era criança sentia mesmo que elas jorravam da minha cabeça, caóticas, frenéticas, como um fluido descontrolado, e eu tinha de as cuspir cá para fora, da mesma forma que quando mergulhava no mar, entusiasmada, tinha de vir à tona para cuspir a água que tinha entrado inadvertidamente pelas narinas, pela boca, sem controlo… Aliás, o excesso de palavras tornara-se uma queixa, um sintoma. Às vezes cuspia as coisas todas durante as aulas, para desespero da professora que tinha de suportar uma pequena mas barulhenta estreante entusiasta das palavras.

Tal apreço pelas palavras levou-me a achar que viria a ser Poeta — atividade profissional que me parecia perfeitamente conciliável com a de Astronauta (dois CAES compatíveis no registo da atividade nas Finanças e Segurança Social), e por isso eu anotava as palavras num caderno, enquanto ia para a escola, enquanto brincava com os meus gatos — que sendo gatos, não eram propriamente “meus”, já que eram tão vadios como os poemas trôpegos que eu soltava.

Curiosamente, apesar deste apreço pelas palavras, sempre me entalei nos erros ortográficos. As minhas composições, apesar de apreciadas pela professora, eram riscadas de alto a baixo a tinta vermelha por causa dos erros ortográficos, e para emendar os erros era obrigada a fazer cópias e mais cópias, o que sempre me pareceu a tarefa mais aborrecida e inútil do universo: a de reproduzir uma coisa, uma e outra vez, tal qual como ela é, sem poder inventar nada.

Apesar disso, sempre que voltava à composição, e mergulhava entusiasmada nas palavras, voltava a repetir os mesmos erros. A palavra teimava em errar no papel, atraída pela ternura de um “gosto tãoto de ti” em vez de “tanto”, atiçada pela potência de um “cãoboio”, ou pela lógica anatómica de um es“cu”rrega! As palavras difíceis. Era como se o cérebro se afeiçoasse ao erro, à palavra mal escrita e não a quisesse reparar. Como se a palavra estivesse entalada na coreografia da ponta dos dedos. Por muito que a repetisse…

Há aquelas pessoas que repetem a mesma palavra em português para um visitante estrangeiro que nada percebe a não ser a estranha fonética, achando que se a repetirem mais vezes e mais alto, ele irá acabar por entender: “Vira à direita na rotunda! Rotunda!”

Eu sempre que visito um país, tenho a mania (embaraçosa, para quem me acompanha) de achar que sei falar a língua de origem desse país assim que piso solo estrangeiro, e o hábito de me expressar a todo o custo com as míseras duas palavras que aprendi por ocasião da viagem — por norma “olá” e “obrigado” na língua nativa — acompanhadas de muita linguagem gestual. Numa farmácia em Hangzhou, na China, estabeleci todo um diálogo com as palavras “nǐ hǎo” (olá em mandarim) para explicar que tinha sido mordida por mosquitos aos quais era alérgica, que a pomada que tinha não me servia. Foi qualquer coisa como:

Nǐ hǎo… Nǐ hǎo nǐ hǎo? nǐ hǎo?? Nǐ hǎo!

Saí da farmácia com um chá para infeções nos rins. As palavras não me serviram.

Noutra ocasião (vantagens de fazer teatro, que traz pouco dinheiro, mas por vezes algumas surpresas) fui convidada para passar uma semana no sul italiano, a discutir Arte e Democracia, com a condição de ministrar uma palestra em italiano.

— Sabe falar italiano? —, perguntara-me a anfitriã.

— Claro que sei —, respondera eu, sem hesitar, nem me considerar impostora, porque, como era habitual, considerei que entre latinos, com um ciao e grazie, lá havia de me safar. Fiz a viagem e durante a palestra falei diante de um grupo de interlocutores desnorteados, que deduziram que eu estava a fazer uma demonstração de teatro, e que tudo não passava de uma improvisação de teatro clownesco. Não voltei a ser convidada a palestrar. Valeu pelas praias e pelo vinho. A minha mania repetitiva de me meter em alhadas.

Parece que temos uma espécie de compulsão à repetição… Repetimos os mesmos erros, uma e outra vez. E por vezes repetimos as mesmas palavras e os gestos que a elas conduzem, na esperança irremediável de corrigir os erros, numa cópia irreparável da realidade.

Cometo muitas vezes o mesmo erro. E uso muitas vezes as palavras erradas.

“Já gastámos as palavras, meu amor…”, diz Eugénio de Andrade, num poema que li dezenas de vezes, nos meus 20 anos, indignada por achar que as palavras nunca haviam de se gastar nem de se esgotar, que só poderiam ser sempre infinitas, tão infinitas quanto as ideias, que era só não ter preguiça de as procurar.

Percebo agora que talvez o que se esgote não sejam exatamente as palavras, mas a mesma palavra dita, vezes sem conta, sem nunca ser escutada devidamente.

Desta vez fiquei em silêncio. Que é sempre cheio, cheio de palavras, mesmo as que ainda não existem. Mergulhei no fundo da piscina, entre os erros ortográficos, as palavras difíceis, os “se’s”, os “talvez”, os “quase…” e os “nunca”, e em vez de cuspir as palavras, achei que o melhor era não dizer nenhuma.

E sei que quando isso acontece, o silêncio pode ser ensurdecedor. Mas às vezes é a única forma, de voltar a ganhar corpo. Mesmo quando parece que ele se dissolveu e se afogou em tantas palavras. O corpo guarda a palavra e o sentido. c Oorpo sabe sempre, sabe primeiro, mesmo antes de a palavra ganhar forma.

“Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega… Gastámos tudo menos o silêncio.”

Certamente voltarei a repetir as mesmas palavras e a errar nas mesmas. Os meus erros acompanham-me, mas acho que me afeiçoei a eles: os meus erros de estimação. E talvez nunca venha a ser Poeta como vaticinei em criança (o Leonard Cohen dizia que ser-se Poeta é um veredito, não uma coisa que se diz ser), mas sei que vou sempre precisar das palavras para existir.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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