Cada vez mais viticultores lutarão por uma Casa do Douro pública
A região precisa de uma Casa do Douro democrática, dotada de atribuições que sirvam para defender a produção e regular o mercado.
Em recente artigo de opinião no PÚBLICO, o eng. Luís Mira roga ao Governo que suspenda as eleições para os órgãos da Casa do Douro, e que faça “marcha-atrás”, recuperando para esta instituição o estatuto que vigorou a partir de 2014 até à publicação da Lei 28/2024.
Escora este seu rogo, em primeiro lugar, fazendo eco do suposto ataque à liberdade associativa que representaria a inscrição obrigatória dos viticultores durienses na Casa do Douro. Por um lado, omitindo que o registo obrigatório dos viticultores se mantém uma realidade na Região Demarcada do Douro (RDD), apenas junto de outra entidade, no caso, o IVDP. Por outro lado, usando o truque hoje recorrente de invocar a liberdade em geral, nem que daí resulte apenas a liberdade concreta de os grandes esmagarem os pequenos.
Os problemas estruturais da RDD radicam em boa medida no desequilíbrio de poder entre as grandes casas comercializadoras e exportadoras, e a produção, em favor daquelas, afetando sobretudo os pequenos e médios viticultores, pilar essencial do valor económico, social e cultural da região. E foi para corrigir este desequilíbrio que os viticultores durienses lutaram para que fosse criada uma organização que regulasse a produção e o comércio, no que viria a ser a Casa do Douro. Esta surgiu em 1932, exatamente quando a RDD atravessava uma grave crise, mais uma das que ciclicamente a afetavam, e perante a histórica oposição das tais grandes casas exportadoras, ainda que estas tivessem mantido o exclusivo das exportações.
Integrada na organização corporativa do Estado Novo, o seu funcionamento foi democratizado após 1974, com a introdução de eleições para os seus órgãos sociais. Nesta altura, e já como associação pública, mantinha atribuições no domínio do cadastro vitivinícola, comércio de aguardentes, controlo das declarações de produção e escoamento de vinhos não comercializados, entre outras. Contudo, vários governos sucessivos impuseram o esvaziamento de competências e fontes de financiamento, entre outras diatribes, as quais, a par da compra de 40% das ações da Real Companhia Velha, num negócio também ele boicotado pelos poderes estatais, levaram à asfixia financeira da Casa do Douro.
Nas palavras de Luís Mira, o Douro atravessa hoje a sua “pior crise de sempre”. Uma crise que surge com uma Casa do Douro transformada numa comissão liquidatária sem qualquer papel relevante na região, com os pequenos e médios viticultores com a corda ao pescoço, com a representação da produção diminuída, no plano da arquitetura institucional da RDD, e sem nenhuma instituição que sirva de estabilizador nesta e noutras crises. De que serviu uma década de privatização da Casa do Douro e de “liberdade associativa”? Aos pequenos e médios viticultores, não serviu de nada! E este é o “legado de que se deveriam orgulhar” aqueles a quem roga o secretário-geral da CAP.
Pelo caminho, sugere-se que a reversão do estatuto da Casa do Douro operada no final da passada legislatura foi apenas revanchismo e ideologia, contra os quais se arremete com ideologia e revanchismo. O círculo fecha-se quando se argumenta contra a “estatização” e a “sovietização” da Casa do Douro invocando a usurpação de funções “a organismos públicos já existentes como IVV e o IVDP”, bem como a “associações de viticultores livremente constituídas”. A questão parece bem ser, não o caráter público da Casa do Douro, mas o alívio que ela pode significar ao garrote que é, para muitos, a manutenção dos mesmos preços pagos há 25 anos pelas uvas, num contexto de enormes aumentos de custos de fatores de produção, enquanto uns poucos acumulam lucros, terras e poder.
Até as “regras comunitárias respeitantes à concorrência” e à “liberdade económica” no espaço da União Europeia são invocadas. Afinal, a questão não é haver regras. É não serem determinadas regras.
O Governo decidirá o que fazer “com o apoio incondicional da CAP”.
Mas associar esse apoio a “todos os viticultores”? Gostava de ver alguém a ir ao Douro dizer isto.
Muitos, e arrisco, cada vez mais viticultores continuarão a lutar por uma Casa do Douro pública, democrática, dotada de atribuições que sirvam para defender a produção e regular o mercado. Atribuições essas que, já agora, ainda que, na cabeça do eng. Luís Mira pareçam “privilégios inimagináveis”, são, na atual lei, menores do que já foram, incluindo nesses velhos tempos em que os partidos que sustentam o atual Governo ainda as apoiavam, pelo menos, enquanto estavam na oposição.
Finalmente, é também esclarecedor de que tal arremedo a favor da liberdade se produza a propósito da marcação de umas… eleições.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico