João da Silva quer dar voz às mulheres que sofreram (e sofrem) de violência doméstica

Ama, mas Cuidado com Quem Amas é o primeiro romance do cronista do PÚBLICO. A pretensão não é “parecer culto”, mas alertar para um tema banalizado na sociedade portuguesa.

NFS Nuno Ferreira Santos - 01 Outubro 2024 - João da Silva em entrevista acerca do livro "Ama, mas cuidado com quem amas"
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João da Silva é também cronista do PÚBLICO Nuno Ferreira Santos
NFS Nuno Ferreira Santos - 01 Outubro 2024 - João da Silva em entrevista acerca do livro "Ama, mas cuidado com quem amas"
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João da Silva Nuno Ferreira Santos
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No dia em que lhe “caiu nas mãos” a história de uma vítima de violência doméstica, João da Silva sentiu o ímpeto e o dever de a contar. No primeiro romance, Ama, mas Cuidado com Quem Amas, editado pela Oficina do Livro, o jornalista tece uma teia de histórias sobre a violência doméstica, colocando-se na pele das vítimas, mas também dos agressores. “Há muita gente ao nosso redor que é afectada pela violência doméstica, e o livro serve para que estejamos alerta. São, por vezes, pequenos sinais”, declara o cronista do PÚBLICO.

João da Silva não tem receio de confessar que não tinha por pretensão escrever “uma grande obra literária” ou de “parecer culto”, mas, sim, contar as histórias destas mulheres cuja vida foi marcada pela violência. “O conceito de violência doméstica banalizou-se. São coisas que estão enraizadas, como o 'entre marido e mulher, não se mete a mulher', e isso incomoda-me”, começa por contextualizar, assegurando que a escrita não foi uma catarse pessoal.

“Acho que devemos defender as mulheres. Tenho uma mãe, uma irmã, mulher e uma filha”, justifica sobre a decisão de narrar a história pela voz das mulheres. Não há muitos homens a escrever sobre o tema, mas João da Silva decidiu fazê-lo, sem pensar nos estereótipos de género. “A violência doméstica afecta sobretudo as mulheres, e talvez os homens entendam que devem ser elas as denunciantes, mas a minha perspectiva em relação a tudo o que escrevo é simples: sou um ser humano.”

Foi pelas mulheres da sua vida e por tantas outras anónimas que escreveu o romance, que acompanha a história de Aguinalda, vítima do marido, Manuel. Passa-se no Alentejo, mas “podia ser em Lisboa, no Algarve ou no Porto”, lamenta. “A violência doméstica é transversal ao nosso país.” Para colocar os holofotes sobre a dimensão do tema, a história é contada em diversas dimensões temporais e várias gerações, mostrando que o ciclo da violência é difícil de quebrar. “Essa é uma das minhas grandes preocupações. Não é tanto aquilo que dizemos aos nossos filhos, mas aquilo que fazemos”, sublinha.

O objectivo foi não tecer qualquer tipo de julgamento, nem adoptar um tom moral, deixando essa tarefa para os leitores. “É de tal forma que há reacções estranhas de leitores que desenvolvem simpatia por personagens violentas”, relata. João da Silva dá voz ao principal agressor da história na fase final do livro. “Tive vontade de o fazer e foi o meu principal desafio. Da forma como ele fala, é natural que se desenvolva alguma condescendência. Até porque não acredito que as pessoas sejam más 100% do tempo”, analisa.

Habituado às crónicas semanais ou às palestras motivacionais, foi uma inevitabilidade para João da Silva colocar-se no romance, ainda que de forma subtil. “Há uma personagem que sou eu num outro formato. Mas não sou só eu: é também a minha avó”, desvenda, apesar de reiterar que a obra não é biográfica.

Há também vestígios das décadas de jornalismo no processo de escrita. “A atenção, o espírito crítico, o querer saber as coisas e os contextos, para que, quando contasse a história, os leitores não tivessem dúvidas”, enumera. E traz ainda a imparcialidade do ofício. “Não venho falar de certezas, mas contar histórias. O que fiz foi convidar a uma reflexão.”

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No fundo, diz o também autor da Road Trip Literária, uma viagem por bibliotecas e autores desconhecidos, todo o trabalho do autor tem a mesma base: a condição humana na sua complexidade. Como tal, foi intuitivo basear o romance nesse emaranhado da mente humana. “A condição humana é tão rica que nunca se esgota”, insiste, desvendando que será o tema do seu próximo romance, no qual já está a trabalhar — antes de Amar, mas Cuidado com Quem Amas tinha publicado duas obras de não-ficção sobre a experiência de sobrevivência ao cancro.

Sem levantar demasiado o véu, conta que o próximo romance tentará “entrar dentro da cabeça das pessoas”, dissimulando pessoas que conhece nas personagens. “Assistimos a manifestações tão bonitas e tão absurdas que têm de ser contadas para que possamos pensar sobre a existência”, sublinha. Até lá, deixa o convite para a reflexão com o primeiro romance. “É só mais um livro, mas espero mesmo que sirva para alertar”, termina.

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