Em período de incerteza, para gerir a ansiedade na gravidez, é preciso confiar

Num período de instabilidade nas urgências obstétricas por todo o país, as grávidas devem preparar o plano de parto e, se possível, visitar várias maternidades.

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À medida que se aproxima o parto, a ansiedade aumenta Nelson Garrido/Arquivo
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Desde Junho até ao final de Agosto, a Linha SNS Grávida atendeu mais de 24.900 chamadas. As grávidas sentem-se perdidas num país onde nunca há certeza sobre onde poderão parir, culpa do fecho das urgências obstétricas. Este é mais um dos principais motivos de ansiedade numa fase tão frágil para a saúde física e mental como é a gravidez. Para mitigar a ansiedade, é preciso preparar e ter uma boa rede de suporte emocional, deixando de lado a romantização deste “estado de graça”, aconselham os especialistas, a propósito do Dia Mundial da Grávida, que se assinala nesta segunda-feira.

“A ansiedade é uma emoção natural de qualquer circunstância que pode ser ameaçadora. E pode ser boa porque nos põe alerta e nos dá apetência para reagirmos”, começa por contextualizar ao PÚBLICO Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A também psicóloga Sofia Andrade aponta no mesmo sentido, lembrando que a ansiedade “serve para nos proteger dos perigos”. Ou seja, explica, “é um mecanismo de sobrevivência, uma emoção primária. Agora, pensamentos como ‘não sou suficiente’ e ‘não serei boa mãe’ acabam por gerar uma ansiedade mais aguda.”

Este tipo de pensamento em que a grávida começa a duvidar de si própria também fará parte do processo de um início de gravidez, confirma a obstetra Mariana Torres, que tranquiliza as grávidas em consulta para estas dúvidas. “A ansiedade tem a vantagem de fazer com que nos preparemos. É uma mudança tão grande que toda a gente fica com receio. Até porque aquela ideia de a gravidez ser um estado de graça não é muito realista”, lamenta.

Mas, neste tema da ansiedade, há dois tipos de grávidas: as que precisam de informação para as tranquilizar; outras para quem o consumo de notícias ou ouvir conselhos as deixa ansiosas. “Há pessoas que se sentem mais tranquilas quando controlam o que podem. Aconselho a lerem para saberem quais são as mudanças esperadas no corpo, quais são os sinais de alarme e os desconfortos mais comuns, mas que não são alarmantes”, aconselha Mariana Torres às que gostam de ser tranquilizadas — as mais comuns, diz. E defende: “É preciso acreditar que as coisas vão correr bem e confiar que a reprodução humana funciona bem no geral.”

Ter esta confiança também depende da regulação emocional de cada mulher, lembra Miguel Ricou, que coloca a culpa para parte desta ansiedade em factores externos, nomeadamente na sociedade, pela forma como olha para a gravidez e para “o papel da mulher enquanto mãe”, pressionada desde o primeiro dia. “A pressão conduz a esta sensação de que queremos que as coisas corram muito bem, o que nos leva a racionalizar tudo. Quando racionalizarmos muito, aumenta o esforço e a sensação de compensação é menor. É um factor de desequilíbrio porque é um período da vida desafiante”, declara.

É por isso que Sofia Andrade fala de “uma peneira” no consumo de informação, “procurando segurança e preparação nos especialistas”, deixando de lado as opiniões “romantizadas” da sociedade sobre temas como a amamentação, o nome do bebé ou o parto. E deixa um conselho prático: “Em alguns casos é melhor relativizar e perguntar-se interiormente: ‘Consigo responder a este pergunta e inquietação?’ Se não consigo, dissolvo esse pensamento.” Além disso, lembra a importância do autocuidado na gestão emocional desta fase, com meditação, relaxamento ou exercício físico.

A rede de suporte

Algumas mulheres têm circunstâncias de vida que levam a que ansiedade seja exponenciada além do que é expectável e é preciso estar atento aos sintomas, em especial os prestadores de cuidados de saúde primários, como os médicos de família e enfermeiros que estão na primeira linha do apoio à grávida.

“Para quem não é psiquiatra, existem rastreios de saúde mental​ que seguimos para perceber se a pessoa precisa de ajuda mais especializada”, confirma Mariana Torres. Mas Miguel Ricou lamenta o tom condescendente com que, por vezes, se aborda o tema. “Todos precisamos de aprender. A forma como falamos destes cuidados é muito importante e deve ser adaptada à história e contexto de cada um.”

Entre os sinais de alerta, o psicólogo fala da dificuldade em dormir, da infelicidade ou da sensação constante de incapacidade. De resto, a ansiedade é normal e afecta “cerca de 20 a 30% das grávidas”, adianta, lembrando que “não vale a pena dramatizar as consequências além dos sintomas porque nada na saúde mental é unifactorial”. Ou seja, a saúde mental de um bebé vai-se construindo de vários factores que se conjugam com os biológicos, ainda que se saiba que “os prejuízos estão mais relacionados com a forma como se vai viver a vinculação e os cuidados depois do parto”.

A ansiedade tende a concentrar-se em dois períodos específicos da gravidez: o primeiro e o terceiro trimestre. Na fase inicial, paira a dúvida sobre a viabilidade da gravidez, sobretudo em grávidas que já passaram por uma perda gestacional. “Começa-se a gerar uma expectativa do bebé idealizado. Há logo uma mudança no corpo que também é preciso assimilar. Mas é preciso visualizarmo-nos com o nosso bebé, envolver-nos em pensamentos positivos e, se não os tivermos, irmos buscá-los à rede de suporte”, observa Sofia Andrade.

A rede de suporte tem de ser liderada pelo companheiro, que deverá fazer a grávida “sentir-se compreendida, segura, especial e confortável”, pede a psicóloga, colocando a tónica nos afectos. “Tudo o que a mulher não precisa é de estar com medo se o marido ainda gosta dela, se ainda se sente sexualmente atraído. O papel da mulher tem de ser valorizado, por ela própria e pelo outro”, insiste.

Miguel Ricou concorda e lembra que é fundamental não ridicularizar o que a grávida está a sentir. “Não devemos desvalorizar e diminuir aquelas que são as sensações das pessoas, mas apoiar e confortar, reforçando que tudo vai correr bem.” Depois, é fundamental encontrar pontos de distracção para a grávida com actividades sociais porque “a ansiedade cresce à medida que nos focamos nela”.

E o mesmo apoio deve ser dado por parte da entidade patronal, apela Sofia Andrade, que lamenta que tantas grávidas sintam ansiedade por deixar o emprego para a licença de maternidade. “São mulheres que chegaram a um determinado patamar e, de repente, engravidam. Vivem a gravidez em pânico com a possibilidade de lhes ser retirado o posto. Continuam a trabalhar até ao fim e até abdicam de amamentar para ir trabalhar mais cedo”, relata, recorrendo a exemplos que encontra frequentemente no consultório.

A incerteza do parto

A caminho do final da gravidez, o mistério do parto começa a adensar-se, sobretudo tendo em conta o caos nas urgências de obstetrícia por todo o país. Mariana Torres reconhece que esse é um dos principais motivos de stress que encontra actualmente nas grávidas que acompanha. “Não devia acontecer esta dúvida: será que vou ter a urgência aberta? Quantos quilómetros terei de percorrer em trabalho de parto? Acho lamentável o ponto em que estamos”, critica a obstetra, que, “não podendo resolver”, apoia as grávidas na mitigação desta incerteza.

“O que tenho aconselhado é que vão visitar várias maternidades; muitas permitem a visita e conseguem ambientar-se e perceber onde pode acontecer. Torna-se mais palpável e tiram as suas dúvidas”, continua Mariana Torres, reiterando que é preciso ter confiança que, “em qualquer lugar, vão ser capazes”. Depois, é hora de preparar o plano de parto, que serve quase como uma arma para antever o que acontecerá. “Escreverem o que é importante para si e para que a equipa que as vais receber conheça a história da grávida, tentando que o parto se vá desenrolando de acordo com o planeado”, acrescenta a autora de O que É que se Passa Aqui Dentro?.

Miguel Ricou considera que a informação é importante para que as grávidas sintam que “diminuem a possibilidade de não correr de acordo com aquilo que desejam”, mas pede que não estejam “sempre a ouvir notícias, o que se torna alarmante”. E desenvolve: “Os serviços estão prontos as receber e o SNS continua a funcionar. Devem aconselhar-se com os médicos que as seguem e terem as coisas controladas sem pessoalizar os casos menos felizes de que ouvem falar”, declara o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Para tranquilizar, Sofia Andrade assevera que é importante ter sempre um plano B para o parto, antevendo onde pode acontecer, e ter “um plano de contingência”, depois de visitar as várias maternidades sempre na companhia da rede de suporte. “É preciso entender em que condições queremos ter o bebé”, continua, pedindo “uma maior humanização dos serviços”, nomeadamente no que toca aos métodos de alívio da dor.

Chegada a hora, é preciso confiar, resume Mariana Torres. “Não quero transmitir a ideia de que a natureza é perfeita, mas é importante termos a convicção de que, mesmo que surja um desafio, vamos ser capazes de o ultrapassar. É possível, é a nossa biologia a funcionar.”

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