Com três letrinhas apenas: AMS

Morreu o mais criativo, cosmopolita, culto e abrangente crítico cultural da sua geração. Para quem o leu no Expresso, para quem o acompanhou no PÚBLICO, foi uma escola de cinema.

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Nas últimas vezes que falei com o Augusto, a conversa telefónica prosseguiu depois por mensagem. Ela chegava abruptamente ao telemóvel... "E o que é feito da Sean Young?". Passámos a uma espécie de "quem é quem?" dos desaparecidos, John Byrum, Harold Becker, John Badham, Molly Ringwald, Richard Dreyfuss, Timothy Hutton, John Heard, Nick Nolte...

Nas últimas, últimas vezes, já não falámos. Enviei mensagens e links de filmes que se tinham estreado, mas não sei se ele as leu e se os viu.

O cinema dos anos 80, esquecido e ainda hoje à espera de que os nossos programadores proponham a sua reavaliação, enchia o Augusto de nostalgia. Não podia ser de outra forma. Nesse tempo ele era o A.M.S., iniciais que fechavam as suas notas de cinema da revista do Expresso, caderno que nada tinha a ver com aquilo que existe agora — falo de algo que era fundamental, como pão para a nossa boca. Era o tempo em que as páginas de cultura dos jornais eram respeitadas, desde logo pelas direcções e administrações, em que os críticos não eram despedidos ou escondidos por não acrescentarem números aos sites, em que a curiosidade e o sentido de aventura dos leitores não tinham sido adormecidos e colonizados pelas redes sociais.

No fundo, o Augusto e os outros, o Vicente Jorge Silva, o Eduardo Prado Coelho, tiveram sorte, tiveram tudo: coube-lhes escrever nesses anos. Foram os últimos. Uniam-nos muitas coisas, os sonhos e projectos comuns, as referências, a cultura francesa, mas o Augusto nunca perdoava um texto ou uma opinião por causa de um afecto e nunca se esqueceu quando um filme os separava. O ET meteu-se entre ele e o Eduardo, que era muito puritano com as emoções; o Do Fundo do Coração entre ele e o Vicente.

O Augusto sabia ser intimidante quando queria. Quando aparecia perante o povo, por exemplo esgueirando-se por entre a pequena multidão que enchia o cinema Quarteto, em Lisboa, chapéu e o olhar alto sobre a mole humana. "Olha o A.M.S." Ficava-se à espera das estrelas. Foi essa figura que encontrei quando, no final dos anos 80, o projecto do PÚBLICO veio a público com a selecção do grupo de estagiários que viriam a integrar o futuro diário. O Augusto era uma figura fundamental do projecto mas já nessa altura com uma postura que, para o bem e para o mal (para o mal: condenou-o à extrema precariedade nos últimos anos de vida), fazia dele uma eminência parda. Estava dentro mas queria estar fora, renitente a "vestir a camisola", em integrar-se. Para, dizia ele, manter a "independência". Para, quando se zangava, ser apropriado atirar: "Esse jornal...".

No processo de selecção dos estagiários, o seu (pouco simpático) rosto era uma muralha que era preciso enfrentar. "Então o que é que lê?". Sei que ele foi decisivo para me integrar na equipa da Cultura nos primeiros dias do jornal. Que foi ele que me atirou de pára-quedas para um trabalho a ver o que eu conseguia fazer — ir até à Praia das Maçãs procurar nem mais nem menos do que a casa que ali teve Gloria Swanson — e também ele que um dia me disse: "Faça as malas, depois de amanhã vai comigo para Cannes." Obrigado.

Morreu o Augusto. A notícia da morte apanhou-me no Festival de Veneza à espera de um filme com o actor Lee Kang-Sheng, musa de um nome muito da preferência do Augusto, Tsai Ming-liang. Lembro-me de outros festivais com ele: em Berlim, excitadíssimo por irmos arrasar a concorrência com um dossier sobre Hong Kong, Stanley Kwan, Wong Kar-wai e outros; em Cannes, no ano em que ele foi membro do júri, e em que me convidou para jantar na véspera da abertura do festival porque a partir de então não iria mais falar comigo já que um jurado não deve falar com os jornalistas o que cumpriu, alguma vezes fazendo um pequeno teatro à AMS nos corredores do Palácio dos Festivais ou na Croisette, desviando a cabeça, fingindo que não me via; sobretudo, lembro-me dos tempos heróicos, dele, do PÚBLICO e dos seus leitores, quando o jornal era pioneiro na cobertura dos festivais internacionais e o Augusto decidia quando queria escrever, porque não o fazia diariamente, e nesse momento ocupava três ou quatro páginas do jornal diário com os seus, expressão do director Vicente, "lençóis". Era definitivamente um jornal utópico. Chegavam por fax esses textos, eram escritos à mão, cabia-me decifrá-los porque conhecia os nomes: Wong Kar-Wai e Days of Being Wild, Hou Hsiao-hsien e A Time do Live and a Time to Die, Tsai Ming-liang e Vive l'Amour. Fui o primeiro espectador desses filmes. Alguns tiveram a sua formação na RTP 2, outros na Cinemateca, outros os faxes do Augusto.

A doença tornou-o mais dócil, tornou-se comovente, o Augusto. O que lhe acontecera, a diminuição física com uma cabeça que continuava activa, a inexistência de um meio de sustentação na sua vida, é um aviso a todos nós, jornalistas, críticos dos jornais. Pode ser o nosso futuro.

Às vezes amuava, às vezes tornava-se exasperante. O mais criativo, cosmopolita, culto e abrangente da sua geração, era também o mais inflexível no trabalho. Uma vez em que nos exaltámos um com o outro, telefonei-lhe a dizer que lhe devia tudo e que não havia problema. Ele era o Augusto, eu aguentaria. Não vou esquecer: AMS.

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