Na morte de Augusto M. Seabra (1955-2024)

Num país em que não dizer muito bem de tudo é ir fazendo uma colecção de inimigos, ele tinha a coragem de dizer mal e não poupar ninguém. Sabia que, para saber gostar, é preciso saber não gostar.

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Augusto M. Seabra na redacção do PÚBLICO em 2013, com o realizador Miguel Gomes, a directora Bárbara Reis e a directora de arte Sónia Matos Nuno Ferreira Santos
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A actividade crítica do Augusto M. Seabra, nos vários jornais em que, durante décadas, colaborou, é única e valiosíssima pela informação exaustiva que tinha sobre o que escrevia, pelo rigor obsessivo com que falava, pela coragem com que dizia o que pensava, pela qualidade moral e intelectual da sua atitude.

Num país em que não dizer muito bem de tudo é ir fazendo uma colecção de inimigos activos e vingativos, ele tinha a coragem de dizer mal e não poupar ninguém. Mesmo quando eu discordava dos juízos que ele fazia sobre obras, espectáculos, acontecimentos, programações, intervenções, políticas, pessoas, não deixava de admirar a firmeza do seu desassombro crítico e a solidez com que a manifestava. Ele sabia que, para saber gostar, é preciso saber não gostar.

Tinha uma cultura enciclopédica: extensa, intensa, vasta, profunda, atenta à complexidade infatigável das ideias e do mundo. Como crítico, ensaísta e programador cultural, o seu amor à teoria nunca o deixou cair na armadilha da opinião de ocasião, fútil e frívola, sem fundamentos nem argumentos, estúpida e insolente. A sua admiração por Theodor W. Adorno, entre outros, foi-lhe sempre um bom exemplo moral e uma grande inspiração cultural.

No entanto, apesar do imenso aparelho teórico de que dispunha, isso não o impediu de escrever alguns dos mais pessoais e comovidos textos sobre as obras de arte e de pensamento que amava com um amor perseguidor e quase proustiano: na música, no cinema, na literatura, na filosofia.

Infelizmente, a longa e grave doença não permitiu, nos últimos anos, a sua participação activa na vida cultural, com a antiga ênfase, assiduidade e impacto. E foi quando essa participação nos fez mais falta. No meio das consagrações constantes e indecorosas dos medíocres de todos os géneros e das mediocridades de todas as espécies, a voz do Augusto teria sido um magnífico sinal de que ainda nem tudo está perdido.

Fui amigo do Augusto desde os anos 70 do século XX. Houve sempre entre nós um diálogo entusiasmado e afectuoso. Mas isso nunca foi razão para que ele, quando era caso disso e nos encontrávamos, não arrasasse ferozmente o que tinha a arrasar, mesmo quando era de amigos meus (políticos, por exemplo) que falava.

A memória que guardo dele é a de um homem que tinha uma forma aristocrática de não ter dinheiro, que queria saber sempre mais do que sabia e que percebeu que a vida só vale a pena ser vivida se for maior do que é costume fazermos dela.

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